24/11/2009

O APELO DA SELVA: O estranho caso da extinção dos ruivos

Bem. Era o que faltava. Agora, de repente, por causa de uma reportagem do National Geographic, meia dúzia de notícia, uma boa dose de blogues, e mais um anúncio à última novidade da Vodafone, desata toda a gente a dizer que os ruivos estão em vias da extinção.
Os ruivos. Uma pérola evolutiva.
Por muito que doa aos fieis devotos, é preciso recordar, uma vez mais, que nem tudo o que aparece no National Geographic é uma verdade científica estabelecida e escrita na pedra. Há hipóteses de trabalho, como esta que tantalizou os portugueses, que são extremamente sedutoras, parecem muito interessantes, chamam logo a atenção das pessoas, mas precisam de muito estudo, muito teste, muito controlo, muita verificação por outros colegas, até se poder dizer que estamos mesmo perante um dado científico. E este não é o caso, de maneira nenhuma. O argumento foi todo baseado nas ideias de ”uns geneticistas”, sem sequer sabermos o nome deles, nem onde tinham publicado os seus resultados. Isto é logo mau sinal. Assim que apareceram as primeiras notícias sobre a “extinção dos ruivos” fizeram-se logo vários estudos sérios sobre a hipótese, e o caso foi posto de lado como uma treta pura e simples. O gene dos ruivos é o gene de cor de cabelo mais raro de todos, e além de ser raro é recessivo, mas não está minimamente ameaçado de extinção. Há imensos genes raros e recessivos. Isso não quer dizer que desapareçam. Aliás, muitas vezes, no fim do dia, são exactamente esses genes raros e recessivos que salvam as populações quando, por exemplo, as condições ambientais mudam drasticamente.
Este gene, de facto, só existe em 1 a 2% da população mundial. A sua zona de maior incidência, onde vai dos 2 a 6% dos habitantes, está no Norte e no Oeste da Europa; e, daqui, passou para os descendentes destes povos em todo o mundo. O chamado redhead gene está localizado no cromossoma 16. Juntamente com o cabelo vermelho, causa uma pele muito branca, sardas, e sensibilidade aos ultravioletas. Tem outros efeitos colaterais, como estimulação de pontes dissulfido (e daí a ondulação do cabelo dos ruivos), sensibilidade acrescida à dor, maior facilidade de pequenas hemorragias internas, e (muito especulativo, isto) maior resistência aos anestésicos. O que esse gene produz é a mutação proteica MC1R, onde se dá a formação de níveis elevados do pigmento vermelho FEOMELANINA, em vez do pigmento normal EUMELANINA, que é mais escuro. É um gene recente: apareceu há qualquer tempo entre 100.000 e 20.000 anos, sendo que o Homo sapiens tem cerca de 1 milhão de anos. Pode ter sido mais difundido no Norte por conservar melhor a luz e o calor do que a pele mais escura, e também por ser sexualmente mais atractivo –– ah, imagine-se uma cabeleira vermelha contra um fundo todo branco, e o resto vem por acréscimo. Mas também pode ter sido varrido para fora de África for deriva evolutiva, por causa da sensibilidade da pele branca aos ultravioletas. Só podemos especular. Sabemos que os homens do Neanderthal também não eram estranhos ao ruivo. Mas era outro gene. A Natureza fazia experiências com o vermelho. Porquê, não tem que haver.
É importante ressalvar, para evitar mais fantasias de extinção, que ser raro e recessivo não implica ser frágil. O redhead gene é danado. Estão a ver aqueles cabo-verdianos ruivos? Traços fisionómicos africanos mas pele muito mais clara, olhos verdes, sardas, cabelo avermelhado em carapinha? Não tem nada que saber. Descendentes de negros trazidos de África para as ilhas desertas e de piratas holandeses que passavam a vida a rondar a costa. O gene encontrou o seu par e fez o que tinha a fazer. E deixou as suas marcas bem visíveis contra genes africanos dominantes como tudo. A beleza da genética, que é a beleza da humanidade, está nesta sua capacidade infinita de hipóteses combinatórias. E o tempo que um gene recessivo pode esperar, de geração em geração, até ser passado à descendência e encontrar um par que lhe sirva, já que a gente nunca sabe o que é que os nossos tetravós andaram exactamente a fazer? Se vos nascer um filho ruivo, isso não foi necessariamente por causa do canalizador da Lituânia que lá andou a fazer obras em casa. Há muito homem que só se lembra da sua ascendência irlandesa quando deixa crescer a barba e ela vem toda vermelha, ao contrário do cabelo. Muito respeitinho por este gene. Ele esperneia.
Já agora, para limpar bem o ar, convém esclarecer que a ideia da tal campanha da Vodafone que pôs toda a gente em polvorosa (“ouvi dizer que os ruivos estavam em vias de extinção e então convidei os meus amigos ruivos do mundo inteiro para uma grande festa na Praça Vermelha…”) também não tem nada de novo. Na cidade de Breda, na Holanda, celebra-se todos os anos, no primeiro fim de semana se Setembro, o festival REDHEADAY, em que se juntam milhares de ruivos naturais de 20 países diferentes. Dedicam-se a várias actividades lúdicas, todas ligadas à cor vermelha. Não tem sponsors. É todo patrocinado pelo governo. E claro, nesse festival os participantes vestem-se de verde. É a cor da roupa dos duendes. Que são ruivos. Como tudo o que é raro, o ruivo é pródigo em mitologias associadas. Do panteão celta então, onde havia montes deles, nem se fala.

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