21/08/2010

O APELO DA SELVA: Células sintéticas para quê?

O DESIGN INTELIGENTE?


AS primeiras notícias que recebemos diziam que um grupo de cientistas tinha conseguido fabricar um genoma que não existe na natureza e inseri-lo numa bactéria. No entanto, depois de bem escrutinizados os dados, vários cientistas insistem que não é claro se aquele genoma foi fabricado de raiz ou é apenas a cópia de outro genoma pré-existente –– ou seja, se o que se fez não passará de um mero acto de clonagem.

Para os que acreditam no genoma sintético criado em laboratório, o grande sonho é ver chegar o dia, ainda muito distante, em que poderemos sentar-nos e pensar que forma de vida precisamos de construir –– e depois desenhá-la e construí-la, como se faz com um carro ou uma ponte.

Embora os seus resultados ainda venham longe, a chamada biologia sintética já existe há umas boas décadas. Baseia-se na premissa de que, na maior parte dos casos, os organismos podem partir-se numa série de partes. A mais importante destas partes seria o gene, a sequência de informação no braço do cromossoma que contribui para a passagem de uma determinada mensagem para a célula. Os genes contêm instruções para se fazerem proteínas, e estas moléculas formam-se em diferentes tipos e tamanhos. É também dos genes que vem a informação sobre onde e quando estas proteínas devem ser utilizadas. As proteínas interagem umas com as outras, comandando várias das funções da célula.

Sabe-se, desde há muito tempo, que certos genes são essenciais: sem as proteínas que codificam, a célula não funciona. Mas muitos outros genes, em contrapartida, são opcionais: pelo menos no laboratório, o organismo dá-se muito bem sem eles.

É também importante sabermos que termos um ou dois genes “extra” de fabrico humano não costuma ser um problema. Já experimentámos inserir um gene novo, por uma grande variedade de razões, em organismos que vão da petúnia à cabra. Desde 1980, a insulina humana tem sido produzida em massa por células bacterianas geneticamente alteradas para o fazerem.

Até agora, já tínhamos conseguido remexer na Natureza para criar versões de genes e proteínas que não existem espontaneamente. A proteína fluorescente verde, por exemplo, é feita naturalmente pelas alforrecas. Os cientistas conseguiram alterar esse gene para que a proteína brilhe com mais força e possa ter outras cores. A fluorescência é já desde há muitas décadas um instrumento essencial em Biologia Celular e Molecular.

E, mais recentemente, apareceram os genomas construídos em laboratório. O primeiro que se fez, há oito anos, foi de um poliovirus –– ou seja, da estrutura de DNA mais simples do mundo vivo. Depois tornou-se possível fazer cópias sintéticas de genomas pré-existentes de bactérias. Agora, com estes novos resultados, parece que nos tornámos capazes de fabricar genomas bacterianos que nunca existiram na Natureza.

Mas as dificuldades neste campo continuam a ser muito grandes. Esta última publicação pode ter sido uma enorme proeza, mas é só um passinho de bebé em direcção à vida sintética, não é nenhum salto de gigante. A bactéria resultante quase não difere da bactéria que já existia. A única diferença é que o seu DNA tem algumas “marcas de água” (sequências especiais), que a identificam como tendo sido fabricada, em vez de resultar da evolução.

Um dos grandes problemas em criar vida no laboratório é que os sistemas biológicos evoluídos são complexos, e comportam-se muitas vezes de formas que ainda não conseguimos predizer. Podemos especificar a sequência de DNA que faz uma determinada proteína, mas nem sempre conseguimos prever com que é que vai parecer-se a proteína ou como irá interagir com as outras proteínas da célula. E, de qualquer maneira, na maior parte dos casos, os sistemas biológicos não são todos iguais uns aos outros: é verdade que nos tornámos bons a produzir DNA, já sabemos copiar genomas, alterá-los ligeiramente –– mas ainda estamos muito longe de conseguir construir um genoma a partir do nada.

Embora não consigamos expressar-nos fluentemente na linguagem genética da Natureza, não deixa de existir a possibilidade excitante de um dia escrevermos a nossa. Começámos pela engenharia de proteínas que não ocorrem normalmente no mundo vivo, e estamos a começar a construir moléculas que se parecem com o DNA na sua capacidade de acumular informação, mas que pode ser lido de forma diferente pela maquinaria da célula. Isto deve permitir-nos construir uma “segunda natureza”: um grupo de organismos que usam uma linguagem diferente, e que não podem interagir facilmente com as formas de vida que evoluíram na Natureza.

Note-se que o processo de inventar uma nova linguagem genética permite-nos perceber melhor aquela que já evoluiu. E isto já começou. As primeiras tentativas de criar DNA alternativo revelou rapidamente que cada “corrimão” da dupla hélix é muito mais fundamental para a forma como a célula trabalha do que tudo o que pudéssemos ter imaginado antes.

Claro que há muitas formas em que poderemos utilizar organismos feitos por design, umas boas e outras mais. Mas o que é realmente importante é que, ao tentarmos criar vida artificial, aprendemos cada vez mais sobre que a vida que foi evoluindo desde o princípio dos tempos.

O APELO DA SELVA: Morte aos feios!

A EUGENIA TEM RAÍZES PROFUNDAS
O inglês Francis Galton cunhou a palavra "eugenia" a partir do grego "eugenés", ou seja, "bem nascido". Portanto, esticando um bocado a corda, foi fácil declarar que a Eugenia, oficialmente criada na Grã-Bretanha em 1883, já era uma ideia corrente na Antiguidade Clássica. Sempre era mais bonita. Os Gregos já tinham por prática envidar esforços no sentido de ir diminuindo os números dos menos equipados para o funcionamento da sociedade. Os primeiros eugenistas britânicos gostavam de repetir esta memória, evitando até o esclarecimento de que por menor capacidade de integração na sociedade se aplicava fosse por tolice ou por aleijão. Dizer isto causava menos desconforto, e era francamente menos chocante, do que a noção subjacente à eugenia de que, já que se nem todos os indivíduos são dotados das melhores qualidades físicas e mentais, nem todos podem ter o direito a reproduzir-se.


A ideia pode ter conhecido variações mais ou menos interessantes, mas a eugenia tal como a conhecemos hoje ganhou os seus primeiros contornos no início do século XIX, nomeadamente com o trabalho de Thomas Malthus. Os seus estudos sobre as “leis” da inevitabilidade biológica da sobrepopulação assombraram sobretudo a alta finança europeia, que ouviu o estatístico inglês com muita atenção. Malthus fez notar que não era de forma nenhuma impossível que, com cruzamentos selectivos “pode ocorrer entre os homens, por métodos idênticos aos praticados nos animais, um certo grau de melhoramento”. Mas acrescentou, muito claramente, “como a raça humana não pode ser atingida por esta via, a menos que condenemos todos os maus espécimes ao celibato, não é provável que se generalize a atenção ao cruzamento selectivo”.

Claro que, ao fazer a afirmação pela negativa, Malthus estava, na realidade, a estimular os seus colegas a atacarem-na pela positiva. E não foram poucos os que lhe responderam ao repto.

Por exemplo, em 1850 o cientista francês Prosper Lucas escreveu um dos tratados sobre hereditariedade mais lidos e circulados do período. O tratado continha as árvores genealógicas das características morais e mentais de criminosos condenados, com um pedido veemente endereçado ao governo francês para que impedisse a continuação da propagação destas linhagens, para que, desta forma, a criminalidade fosse desaparecendo de geração para geração e a sociedade francesa melhorasse substancialmente.

Depois de Mendel e Malthus, seria Darwin o cientista a contribuir de seguida para o estabelecimento da eugenia. O pai da eugenia, o cientista, viajante, geógrafo e estatístico Francis Galton, começou a publicar ensaios sobre a hereditariedade humana e as políticas sociais em 1865, pouco depois de ter lido A Origem das Espécies. A evolução deu a Galton as ideias que faltavam para formar o núcleo duro da eugenia: o significado das variações hereditárias nos cruzamentos domésticos, a sobrevivência do mais apto na luta pela vida, a analogia entre os cruzamentos domésticos e a selecção natural. Estas ideias foram desenvolvidas substancialmente no livro Hereditary Genius, de 1869, que é considerado, ainda hoje, como o texto fundador da eugenia.



Embora muitos cientistas europeus de grande nível, como o próprio Darwin, se sentissem atraídos pelo conceito de controlar a hereditariedade humana no sentido de melhorar as suas populações, a verdade é que, até ao fim do século XIX, a repugnância moral e política pela interferência na reprodução humana continuaram a impedir que os argumentos eugénicos se transformassem em acções. Basicamente, os seguidores de Galton defendiam que, à medida que evoluía, a sociedade se tornava cada vez mais capaz de proteger os seus membros mais frágeis e menos capazes de adaptação –– mas essa mesma sociedade poderia melhorar muito mais rapidamente se, ao mesmo tempo, se tomassem medidas expeditivas para que esses mesmos desadaptados não deixassem descendência, por forma a irem sendo eliminados geneticamente. No entanto, de início nenhum país europeu quis enveredar por este tipo de políticas.

As atitudes sociais só começaram a mudar no final do século XIX, quando as consequências mais perniciosas da revolução industrial deram lugar a uma atmosfera generalizada de pessimismo que fez com que, em vez de evolução, se passasse a falar em degeneração. O crime, os vícios, a entrada das mulheres para o mercado de trabalho, a imigração, a vida em ambientes maioritariamente urbanos, eram geralmente acusados da sua ocorrência. A crença generalizada de que as "doenças dos pobres", como a tuberculose, a síflis, o alcoolismo e os problemas mentais, eram hereditárias, tornava a perspectiva ainda mais alarmante e começou a levar a apelos para que não se perpetuasse a cadeia de "multiplicação rápida dos inadaptados". Galton insistia que a sociedade estava a sustentar mais do que podia e ou começava a aplicar sistematicamente a selecção dos seus melhores espécimes para reprodução em cada geração, fazendo em poucas gerações o que a selecção natural faz em milénios, ou acabaria completamente degenerada.

Na última década do século XIX, o biólogo austríaco August Weissman anuncia, pela primeira vez, que o material genético contido do núcleo é "imortal" (no sentido em que se transmite de geração em geração sem nunca se alterar, ao longo de toda uma linhagem), e que é ele que assegura a transmissão dos caracteres hereditários, em total independência dos restantes acontecimentos celulares. Isto, obviamente, é música para os ouvidos de quem defende teorias de engenharia social segundo as quais os "inadaptados" não devem reproduzir-se: se a mensagem hereditária é imortal e não há nada que possa alterá-la, então, logicamente, um inadaptado só poderá dar origem a mais inadaptados.

É sempre difícil dizermos se cientistas como Francis Galton são neutros em relação ao material científico que produzem e é a sociedade que se apropria dos seus dados para legitimar políticas moralmente complexas, ou se os próprios cientistas já tinham, à partida, essas mesmas ideias, e apenas procuraram dar-lhes uma qualquer forma de validação científica. O que é certo é que, depois de Weissman e do aproveitamento que Galton fez da sua teoria da imortalidade da linhagem germinal, começou a ser vulgar encontrarmos nas publicações científicas passagens como esta, de Karl Pearson, o primeiro Professor de Eugenia da London University: "Nenhum conjunto de espécimes degenerado e pobre de espírito poderá alguma vez dar a origem a populações saudáveis e produtivas pelos efeitos acumulados de boa educação, boa legislação, e boas condições sanitárias. Gastámos o nosso dinheiro no ambiente onde afinal é a hereditariedade quem ganha". Embora os eugenistas tenham sido sempre uma minoria, e tenham encontrado resistência sobretudo nos países em que a tradição dos sistemas nacionais de saúde já se encontrava bem desenvolvida e enraizada, despertavam suficiente curiosidade e eram suficientemente sedutores para constituírem sociedades em numerosos países, e ocuparem novas cátedras em numerosas universidades. Em 1930, o eugenista inglês Wicksteed Armstrong não hesitou em escrever no seu livro The Survival of the Unfittest: "Para diminuir a fertilidade perigosa dos inadaptados há três métodos: a câmara letal, a segregação e a esterilização".

É preciso ver que nem todas as propostas dos eugenistas chegavam a estes extremas, e nem todas vinham da extrema-direita ou se destinavam a purificações raciais de cariz proto-nazi. Na Dinamarca, entre 1930 e 1949, esterilizaram-se mais de 8.500 pessoas na tentativa de erradicar anormalidades sexuais e físicas, ao abrigo de uma lei de 1929 que, nas palavras do médico dinamarquês Tage Kemp, visava permitir à sociedade "tornar as condições de vida toleráveis para todos". Na Suécia, onde o Estado criou em 1921 o Instituto para a Biologia da Raça em associação com a Universidade de Upsala, pelo menos 15.000 doentes mentais foram esterilizados por razões de eugenia ao abrigo de uma lei aprovada em 1934, destinada a "proteger os indivíduos do sofrimento individual causado pela hereditariedade".

Mas o país de políticas eugénicas mais activas antes de 1930 foi de longe os Estados Unidos. Em 1920, 24 estados já tinham aprovado leis de esterilização, aplicadas sobretudo aos pobres (e negros) trancados em instituições psiquiátricas. No total, cerca de 70.000 pessoas foram esterilizadas nos EUA entre 1909 e 1930.

É verdade que estas políticas caíram totalmente em desuso no Ocidente depois do pesadelo Nazi –– mas quantos não se sentem tentados a aplicados, e quantos não voltam a levantar a voz em defesa da sua aplicação?

10/08/2010

BIOGRAFIA: Carlos Almaça (1934-2010)


Já neste espaço se falou da importância que tem nos estudos presentes o conhecimento do passado relativo aos sucessos científicos. Carlos Almaça, importante biólogo e investigador português, não deixou de explorar o passado, para que se não esquecessem os factos que conduziram os trabalhos científicos até onde actualmente se encontram. É deste professor universitário, antigo director do Museu Bocage e falecido no passado dia 3 de Agosto, que vamos falar brevemente. Carlos Alberto da Silva Almaça nasceu em Lisboa a 29 de Dezembro de 1934. Em Outubro de 1957, quase a fazer 23 anos, licenciou-se na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa em Ciências Biológicas. Na mesma instituição, concluiu o doutoramento em Março de 1968, com a tese Estudo das Populações Portuguesas do Gén. Barbus Cuvier, 1817 (Pisces, Cyprinidae). Exercendo a docência na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, pôde também dedicar-se à investigação por meio das bolsas de estudo de que beneficiou. Além de se ter dedicado à Zoologia e aos estudos evolutivos de várias espécies, Carlos Almaça deixou importantes contributos para a História da Ciência e das ideias em Biologia. Teve ainda durante 20 anos o cargo de director do Museu Bocage, departamento de Zoologia do Museu de História Natural de Lisboa. Diz Maria Amélia Martins Loução, vice-presidente da Universidade de Lisboa: “Constituiu os primeiros gabinetes de história natural e foi ele quem começou a coleccionar documentos sobre fauna e flora relacionados com o pensamento filosófico dos séculos XVII e XVIII”. Como docente e investigador, Carlos Almaça, que estudou sempre e persistentemente, apoiou muitos dos seus alunos, sendo em parte responsável pelo caminho profissional que alguns tomaram. Da sua obra, destacamos alguns volumes:

Contribuição para o Estudo da Zonação Marinha do Litoral Português, 1960
Variabilidade de Alguns Caracteres Usados na Taxonomia do Gén. Carcinus Leach, 1961
Sur les Crabes du Genre Xanto Leach, 1815, du Muséum Zoologique de l’Université de Coimbra, 1963
Contribution à la Connaissance des poissons des eaux intérieurs du Portugal, 1965
As Classificações Zoológicas. Aspectos Históricos, 1991
Evolutionism in Portugal, 1993
Bosquejo Histórico da Zoologia em Portugal, 1993
Evolutionism and Mendelism, 1994
Fish species and varieties introduced into Portuguese inland waters, 1995
"Falconers: the first Portuguese naturalists", in Archives of Natural History, 24, pp. 175-187, 1997
O Homem Medieval e a Biodiversidade, 2000


Fontes:

Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Lisboa - Rio de Janeiro, Editorial Enciclopédia Limitada, vol. 1 (Actualização), p.236, s.v. "Almaça (Carlos Alberto da Silva)";

Diário de Notícias, Ano 146º, nº 51620, p.53 [6 de Agosto de 2010].
(Daqui vieram quer a imagem, quer a citação que temos no texto.)