16/11/2009

ENSAIO: A Ciência dos Bem-Nascidos

O inglês Francis Galton cunhou a palavra "eugenia" a partir do grego "eugenés", ou seja, "bem nascido". Portanto, esticando um bocado a corda, foi fácil declarar que a Eugenia, oficialmente criada na Grã-Bretanha em 1883, já era uma ideia corrente na Antiguidade Clássica. Sempre era mais bonita. Os Gregos já tinham por prática envidar esforços no sentido de ir diminuindo os números dos menos equipados para o funcionamento da sociedade. Os primeiros eugenistas britânicos gostavam de repetir esta memória, evitando até o esclarecimento de que por menor capacidade de integração na sociedade se aplicava fosse por tolice ou por aleijão. Dizer isto causava menos desconforto, e era francamente menos chocante, do que a noção subjacente à eugenia de que, já que se nem todos os indivíduos são dotados das melhores qualidades físicas e mentais, nem todos podem ter o direito a reproduzir-se.
A ideia pode ter conhecido variações mais ou menos interessantes, mas a eugenia tal como a conhecemos hoje ganhou os seus primeiros contornos no início do século XIX, nomeadamente com o trabalho de Thomas Malthus. Os seus estudos sobre as “leis” da inevitabilidade biológica da sobrepopulação assombraram sobretudo a alta finança europeia, que ouviu o estatístico francês com muita atenção. Malthus fez notar que não era de forma nenhuma impossível que, com cruzamentos selectivos “pode ocorrer entre os homens, por métodos idênticos aos praticados nos animais, um certo grau de melhoramento”. Mas acrescentou, muito claramente, “como a raça humana não pode ser atingida por esta via, a menos que condenemos todos os maus espécimes ao celibato, não é provável que se generalize a atenção ao cruzamento selectivo”.
Claro que, ao fazer a afirmação pela negativa, Malthus estava, na realidade, a estimular os seus colegas a atacarem-na pela positiva. E não foram poucos os que lhe responderam ao repto.
Por exemplo, em 1850 o cientista francês Prosper Lucas escreveu um dos tratados sobre hereditariedade mais lidos e circulados do período. O tratado continha as árvores genealógicas das características morais e mentais de criminosos condenados, com um pedido veemente endereçado ao governo francês para que impedisse a continuação da propagação destas linhagens, para que, desta forma, a criminalidade fosse desaparecendo de geração para geração e a sociedade francesa melhorasse substancialmente.
Depois de Mendel e Malthus, seria Darwin o cientista a contribuir de seguida para o estabelecimento da eugenia. O pai da eugenia, o cientista, viajante, geógrafo e estatístico Francis Galton, começou a publicar ensaios sobre a hereditariedade humana e as políticas sociais em 1865, pouco depois de ter lido A Origem das Espécies. A evolução deu a Galton as ideias que faltavam para formar o núcleo duro da eugenia: o significado das variações hereditárias nos cruzamentos domésticos, a sobrevivência do mais apto na luta pela vida, a analogia entre os cruzamentos domésticos e a selecção natural. Estas ideias foram desenvolvidas substancialmente no livro Hereditary Genius, de 1869, que é considerado, ainda hoje, como o texto fundador da eugenia.

Embora muitos cientistas europeus de grande nível, como o próprio Darwin, se sentissem atraídos pelo conceito de controlar a hereditariedade humana no sentido de melhorar as suas populações, a verdade é que, até ao fim do século XIX, a repugnância moral e política pela interferência na reprodução humana continuaram a impedir que os argumentos eugénicos se transformassem em acções. Basicamente, os seguidores de Galton defendiam que, à medida que evoluía, a sociedade se tornava cada vez mais capaz de proteger os seus membros mais frágeis e menos capazes de adaptação –– mas essa mesma sociedade poderia melhorar muito mais rapidamente se, ao mesmo tempo, se tomassem medidas expeditivas para que esses mesmos desadaptados não deixassem descendência, por forma a irem sendo eliminados geneticamente. No entanto, de início nenhum país europeu quis enveredar por este tipo de políticas.
As atitudes sociais só começaram a mudar no final do século XIX, quando as consequências mais perniciosas da revolução industrial deram lugar a uma atmosfera generalizada de pessimismo que fez com que, em vez de evolução, se passasse a falar em degeneração. O crime, os vícios, a entrada das mulheres para o mercado de trabalho, a imigração, a vida em ambientes maioritariamente urbanos, eram geralmente acusados da sua ocorrência. A crença generalizada de que as "doenças dos pobres", como a tuberculose, a síflis, o alcoolismo e os problemas mentais, eram hereditárias, tornava a perspectiva ainda mais alarmante e começou a levar a apelos para que não se perpetuasse a cadeia de "multiplicação rápida dos inadaptados". Galton insistia que a sociedade estava a sustentar mais do que podia e ou começava a aplicar sistematicamente a selecção dos seus melhores espécimes para reprodução em cada geração, fazendo em poucas gerações o que a selecção natural faz em milénios, ou acabaria completamente degenerada.
Na última década do século XIX, o biólogo austríaco August Weissman anuncia, pela primeira vez, que o material genético contido do núcleo é "imortal" (no sentido em que se transmite de geração em geração sem nunca se alterar, ao longo de toda uma linhagem), e que é ele que assegura a transmissão dos caracteres hereditários, em total independência dos restantes acontecimentos celulares. Isto, obviamente, é música para os ouvidos de quem defende teorias de engenharia social segundo as quais os "inadaptados" não devem reproduzir-se: se a mensagem hereditária é imortal e não há nada que possa alterá-la, então, logicamente, um inadaptado só poderá dar origem a mais inadaptados.
É sempre difícil dizermos se cientistas como Francis Galton são neutros em relação ao material científico que produzem e é a sociedade que se apropria dos seus dados para legitimar políticas moralmente complexas, ou se os próprios cientistas já tinham, à partida, essas mesmas ideias, e apenas procuraram dar-lhes uma qualquer forma de validação científica. O que é certo é que, depois de Weissman e do aproveitamento que Galton fez da sua teoria da imortalidade da linhagem germinal, começou a ser vulgar encontrarmos nas publicações científicas passagens como esta, de Karl Pearson, o primeiro Professor de Eugenia da London University: "Nenhum conjunto de espécimes degenerado e pobre de espírito poderá alguma vez dar a origem a populações saudáveis e produtivas pelos efeitos acumulados de boa educação, boa legislação, e boas condições sanitárias. Gastámos o nosso dinheiro no ambiente onde afinal é a hereditariedade quem ganha". Embora os eugenistas tenham sido sempre uma minoria, e tenham encontrado resistência sobretudo nos países em que a tradição dos sistemas nacionais de saúde já se encontrava bem desenvolvida e enraizada, despertavam suficiente curiosidade e eram suficientemente sedutores para constituírem sociedades em numerosos países, e ocuparem novas cátedras em numerosas universidades. Em 1930, o eugenista inglês Wicksteed Armstrong não hesitou em escrever no seu livro The Survival of the Unfittest: "Para diminuir a fertilidade perigosa dos inadaptados há três métodos: a câmara letal, a segregação e a esterilização".
É preciso ver que nem todas as propostas dos eugenistas chegavam a estes extremas, e nem todas vinham da extrema-direita ou se destinavam a purificações raciais de cariz proto-nazi. Na Dinamarca, entre 1930 e 1949, esterilizaram-se mais de 8.500 pessoas na tentativa de erradicar anormalidades sexuais e físicas, ao abrigo de uma lei de 1929 que, nas palavras do médico dinamarquês Tage Kemp, visava permitir à sociedade "tornar as condições de vida toleráveis para todos". Na Suécia, onde o Estado criou em 1921 o Instituto para a Biologia da Raça em associação com a Universidade de Upsala, pelo menos 15.000 doentes mentais foram esterilizados por razões de eugenia ao abrigo de uma lei aprovada em 1934, destinada a "proteger os indivíduos do sofrimento individual causado pela hereditariedade".
Mas o país de políticas eugénicas mais activas antes de 1930 foi de longe os Estados Unidos. Em 1920, 24 estados já tinham aprovado leis de esterilização, aplicadas sobretudo aos pobres (e negros) trancados em instituições psiquiátricas. No total, cerca de 70.000 pessoas foram esterilizadas nos EUA entre 1909 e 1930.
É verdade que estas políticas caíram totalmente em desuso no Ocidente depois do pesadelo Nazi –– mas quantos não se sentem tentados a aplicados, e quantos não voltam a levantar a voz em defesa da sua aplicação?

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