30/12/2010

ENSAIO: O mundo segundo Mandeville

INTRODUÇÃO


SÓ PODEMOS VER AQUILO QUE JÁ VIMOS



Terá o cavaleiro inglês Jehan de Mandeville existido mesmo? Não temos dele um único retrato a óleo, nem sequer um perfil a tinta-da-china. Apenas duas ou três gravuras anónimas dos seus dias como peregrino e viajante lhe dão um rosto e uma cabeleira que, com algum esforço e muito hábito, conseguimos distinguir entre centenas de outros quase idênticos. Até hoje, não se chegou a qualquer consenso sobre as datas do seu nascimento e morte: alguns historiadores adiantam o período compreendido entre 1300 e 1372, enquanto outros protestam que não podemos estabelecer números precisos como estes para um autor anónimo que compilou centenas de histórias de viagens e depois as juntou num livro narrado na primeira pessoa, onde terá também, eventualmente, utilizado algumas experiências pessoais. Da mesma forma, e pelas mesmas razões, não estamos certos nem de onde veio nem onde foi sepultado, e muito menos onde viveu durante os seus dias de juventude insular. O autor do livro conta-nos que nasceu na cidade de Saint Albans, em Inglaterra; e que, no regresso forçado à Europa devido a problemas crescentes de gota artrítica, passou muito tempo a viver em Liège, em grande sofrimento, tendo nessa altura escrito o livro com as suas memórias, o que explicaria por que é que a primeira edição das Viagens apareceu em França, e não na Inglaterra, onde só chegou depois de já ter passado por traduções para várias outras línguas. Mas até isto pode não ser verdade. E o autor pode muito bem não ser só um.



Construção de um autor

Primeiraperguntar a retirar desta primeira exposição: Poderão as Viagens ter sido obra de um grande contador de histórias que decidiu manter-se para todo o sempre desconhecido, à sombra de um pseudónimo? Primeira resposta desarmante, onde começa a construir-se o mito de Mandeville como estrita figura de estilo: Não sabemos. Já foram propostas várias possibilidades, mas nenhuma delas é irrevogavelmente confirmável. Ultimamente, alguns académicos inclinam-se para a possibilidade de as Viagens serem obra de um tal de Jehan de la Barbe, de nacionalidade francesa. Ao construir o seu personagem, este homem confere-lhe várias das características obrigatórias do grande viajante temerário. Conta-nos que ele bebeu do Poço da Eterna Juventude na Costa Malabar e que depois disso “se sentia cada dia melhor”; que serviu Sultões e Imperadores; que lhe foram prometidos casamentos de sonho que o cobririam de honras e riquezas desde que abdicasse da sua fé, e que ele nunca aceitou tais ofertas por uma questão de respeito para com o Cristianismo; e até que contribuiu substancialmente para avanços científicos não de menor monta: fez observações astronómicas na Sumatra, na Alemanha, na Boémia, e ainda mais a Norte.

Este Jehan de la Barbe, também conhecido por Jehan de Bourgogne, não era uma pessoa qualquer. Era um médico bem sucedido de Liège, digno do maior crédito e respeito. Há fontes pouco claras que relatam que, na hora da sua morte, chamou para junto de si o seu amigo e colega d’Oultremousse, que declarara já como seu executor, para lhe confiar que no seu testamento aparecia descrito como “messire Jean de Mandeville, chevalier, comte de Montfort en Angleterre et seigneur de l’isle de Campdi et du château Pérouse”. Mais acrescentou que, tendo sofrido o infortúnio de matar um conde do seu próprio país, se dedicou sem demora a viajar por todas as partes da Terra; de tal maneira que, quando chegou a Liège em 1343 vindo dos confins do Oriente, se transformara num grande naturalista, num profundo filósofo e astrólogo, e num notável conhecedor da física. Esta identificação é confirmada pela existência de uma pedra tumular, na igreja dos Guilherminos que agora se encontra arruinada, assinalando repousar ali Mandeville, também conhecido por “ad Barbam”; que fora um grande professor de Medicina e falecera em Liège em 17 de Novembro de 1372. Em 1462 já se encontram na literatura referências a esta inscrição.

A construção do autor tem um retoque final que é uma verdadeira obra de mestre. Como veremos no Primeiro Livro, Mandeville permaneceu durante bastante tempo na corte do Sultão. Por essa altura, trabalhou lá como médico, por um breve período, um homem “das nossas partes da Terra” que o impressionou pelo seu porte altivo. Em 1355, exasperado por estar retido em Liège pelo peso da idade e pelas dores da artrite, Mandeville mandou vir todos os médicos da cidade, e escolheu aquele que lhe inspirou mais confiança por ser o mais idoso e mais altivo. Não demorou muito a reconhecer Ad Barbam, o médico europeu da corte do Sultão. O reconhecimento foi recíproco. A partir daí, enquanto Ad Barbam tratava Mandeville, exortava-o a escrever as suas memórias de viajante antes que começasse a esquecê-las, predispondo-se a ajudá-lo em tudo o que fosse necessário. “E assim, com a sua ajuda e conselho, fui compondo este tratado que jurara só escrever quando voltasse, por fim, aos meus domínios em Inglaterra”.

Mandeville poderia também ter-se chamado simplesmente John de Bourgogne, e ter fugido para a Terra Santa na sequência de uma punição real, no que teria sido acompanhado por outro fugitivo, de seu nome Johan Mangevilain. Os dois companheiros poderão ter estado juntos no Egipto, poderão ter-se reencontrado em Liège, e, com ou sem a colaboração do médico de la Barbe, poderão ter escrito as Viagens em conjunto, depois do que o auto-proclamado cavaleiro inglês terá assinado o livro com uma corruptela do nome do amigo. Tudo é possível.

Mas, no essencial, estas Viagens acompanharam os viajantes durante tantos séculos, foram tão importantes na definição das novas rotas marítimas, e integram hoje com tamanho destaque a literatura do género do período medieval, que o seu autor está indelevelmente reconhecido como Mandeville, fosse ou não fosse esse o seu verdadeiro nome – e tivesse ou não personalidades múltiplas.



O mundo como prodígio

Outra questão que se levanta é se este Mandeville foi mesmo um grande viajante por terra, ou se apenas devorou compulsivamente todas as narrativas de viagens que o antecederam e a que conseguiu deitar a mão. Na realidade, existiram vários grandes personagens que viajaram antes dele, uns conhecidos e outros anónimos. A partir de cerca de 1000, por iniciativa individual ou em grupo, homens e mulheres de todos os estratos da sociedade recomeçaram a

cruzar constantemente os caminhos que bordejavam as velhas estradas romanas, entretanto arruinadas, ou os carreiros que a transumância dos pastores e as récuas de mercadores e arrieiros abriam na nova paisagem do Ocidente. Na sua vasta maioria, faziam estes percursos para conseguirem chegar a Jerusalém e honrarem presencialmente todos os seus lugares sagrados, tal como descritos e assinalados nas Escrituras.

No entanto, os novos caminhos que conduziam ao Templo não estavam ainda claramente marcados na geografia física, e muito menos na sua representação mental. Daí que o viajante mais avisado se socorresse da memorização de listas de etapas, isto é, de relações dos lugares por onde convinha passar ou que, pelo contrário, se deviam evitar para atingir o local de culto. Transmitidas oralmente nos séculos X e XI, estas informações foram posteriormente passadas a escrito sob a forma de guias de viagens. Deste ponto de vista, as Viagens de Mandeville são um expoente perfeito do género, com constantes indicações de rotas, alternativas, lugares e povos, suas línguas e seus costumes, até um pouco da sua história sempre que possível. O texto revela, sem dúvida, citações de diferentes autores que o antecederam. Mas, por outro lado, a peregrinação à Terra Santa, que ocupa todo o Primeiro Livro, tem características muito próprias, derivadas de um enorme conhecimento de causa que dificilmente poderia ser de origem exclusivamente literária. Quem poderia descrever com tanto pormenor as características físicas e biológicas do Mar Morto, ou a fossa de Mynon onde a gravilha dá origem a vidro de grande qualidade, se não tivesse observado esses fenómenos, geralmente omissos noutros roteiros de peregrinação, com os seus próprios olhos? No entanto, é evidente que, mesmo aqui, Mandeville não foi a todos os sítios de que fala, nem viu tudo o que nos relata: a história do “país chamado Adalia” que se perdeu para sempre porque o jovem apaixonado foi ao túmulo amar a sua noiva já morta e assim gerou um horrível monstro não é, obviamente, verdadeira – mas não podemos de forma nenhuma esquecer-nos de que este lado fantasioso da narrativa é uma característica quase atávica da arte medieval de contar uma boa história. Ao chegar ao Oriente e ver as árvores do algodão, não faria qualquer sentido, à luz dos cânones da época, descrevê-las apenas como tal: Mandeville remete-as sem uma hesitação para o mundo das maravilhas, descrevendo-as como “uma árvore pequena em cujas pontas crescem carneirinhos muito pequeninos. Os seus ramos são tão flexíveis que se inclinam para que os carneirinhos possam comer quando têm fome”. Como escreveu lapidarmente Fernando Pessoa, só podemos ver aquilo que já vimos.

A este propósito, veja-se o que aconteceu, por exemplo, com o Livro das Maravilhas de Marco Polo, publicado na Europa durante o século XIII, e rapidamente transformado naquilo a que poderíamos chamar um verdadeiro sucesso de vendas entre a classe média-baixa , que lia, ou ouvia ler, para se divertir, e não para planear viagens de conquista ou políticas imperiais. A atracção de um texto francamente ficcional sobre os leitores menos responsáveis socialmente explica-se com facilidade pelo brilho romanesco da prosa: já depois da sua viagem, quando combatia como mercenário e foi enclausurado em Génova, Marco Polo partilhou a cela com um autor francês de romances de cavalaria, a quem contou as suas aventuras para que ele as passasse ao papel, com todos os caprichos estilísticos do género. Do ponto de vista estratégico o Livro das Maravilhas foi pouco importante, mas é claro que as massas gostaram, porque estava escrito no registo romanesco e mágico que mais agradava à mente medieval comum.

Por outro lado, Mandeville tem, com alguma frequência, a frontalidade de separar o que é observação sua do que é contado por interposta pessoa: no Primeiro Livro, por exemplo, deixa muito claro que nunca viajou através da Tartaria para chegar a Jerusalém. Seja como seja, de uma coisa podemos ter a certeza: os leitores contemporâneos de Mandeville sabiam, muito melhor do que nós, encontrar direcções em passagens que agora nos parecem obscuras, e distinguir sem erro o imaginário do real. Muito claramente, estamos a falar de um tempo em que as pessoas viajavam, por vezes para paragens tão longínquas como a China, a Mongólia e a Índia, e chegavam onde queriam chegar. Como diz Margarida Sérvulo Correia, os cristãos desta época são transeuntes do mundo, e em grande medida, se não forem comerciantes , constroem os seus périplos como exercícios de religiosidade, de onde nos vem agora a profusão de milagres e relíquias, e ainda o destino sempre presente da Terra Santa .

O grande número dos governantes, eruditos e exploradores que usaram a viagem fantástica de Mandeville como roteiro, incluindo no que toca às fábulas do Segundo Livro que nos parecem agora mais espantosas , atesta bem a capacidade do autor para descrever, dentro das convenções estilísticas da sua época, o mundo a que pertencia. Neste período, a face física da Terra nunca é articulada concretamente. Os modelos medievais correntes são próximos de paradigmas como o romance King Alisaunder ou o Roman de toute chevalerie, de Thomas de Kent, de onde está completamente ausente qualquer pormenor de sequência física. A falta de consistência espacial e o mistério que envolve as descrições da Terra neste período são de um tipo que nos nossos dias pode fazer-se em livros de fantasia ficcional; mas, para Mandeville e para os seus contemporâneos, o que para nós é uma opção era antes a única forma possível de escrever sobre o mundo – até porque este mundo tinha uma configuração completamente diferente daquela que tem o nosso.



A Ecúmena

Mandeville escreve antes do início das Descobertas, e por isso mesmo continua a ver o mundo tal como ele é visto desde a Alta Idade Média, com base na herança dos Clássicos: um círculo único de terra emersa (a Ecúmena) pousado sobre um oceano imenso , que, na totalidade, tem a forma de uma esfera. Esta esfera oceânica é tão vasta que o círculo de terra não sente a sua curvatura: limita-se a ver os barcos desaparecer por partes num horizonte redondo, e a ver o Sol e a Lua aparecerem e desaparecerem como se andassem à volta da esfera. O círculo de terra era organizado por um T de grandes massas de água: o braço vertical do T era o Mediterrâneo, e o braço horizontal era a combinação do Danúbio com o Nilo. Acima do braço horizontal ficava a Ásia. Do lado esquerdo do braço vertical ficava a África, e do lado direito a Europa. A área compreendida acima do Nilo e do Danúbio (a Ásia) marcava o Leste, e, assim fazendo, definia toda a organização do mapa. No centro preciso do círculo, por definição o ponto mais perfeito da estrutura, ficava Jerusalém, frequentemente designado por umbilicus terrae . Esta tradição de colocar o lugar sagrado no centro preciso do mundo é partilhada no mundo inteiro por diferentes culturas, com diferentes religiões.

Estas diferentes partes do mapa (compreensivelmente apelidado hoje de mapa-roda ou mapa T-0)eram habitadas por populações diferentes porque cada uma delas descendia de um dos três filhos de Noé: Sem, Cam e Jafet. Segundo Isidoro de Sevilha (560-636), sem dúvida um dos homens mais cultos e eruditos do seu tempo, a Ásia tem o nome de uma rainha “da posteridade de Sem e é habitada por 27 povos[…]A África deriva de Afer, um descendente de Cam, e tem 30 raças de 360 cidades”; enquanto que a Europa, com o nome tirado directamente da mitologia Clássica, “é habitada pelas 15 tribos dos filhos de Jafet e tem 120 cidades” .



Alguns leitores ilustres

Quando Leonardo da Vinci se mudou de Milão, em 1499, o inventário dos seus livros incluía um número considerável de entradas em história natural, a esfera, os céus – tudo interesses óbvios nas suas pesquisas. Mas, de todos os livros de viagens que poderia ter escolhido para levar consigo, quer em manuscrito quer em exemplares acabados de sair de imprensa recém-inventada, só seleccionou um: as Viagens de Mandeville. Sensivelmente ao mesmo tempo, de acordo com o biógrafo Andrés Bernáldez, Cristóvão Colombo estava a folhear Mandeville para extrair informação sobre a China em preparação para a sua viagem para Oriente através do Ocidente. Em 1576, um navegador inglês pioneiro da exploração da costa Norte do Canadá, Sir Martin Frobisher (1535-1594), tinha uma cópia de Mandeville consigo quando ancorou ao largo da Baffin Bay, nas águas cobertas de gelo do Novo Mundo. As expedições russas que partiam para Oriente através do gelo levavam consigo indicações de rotas gizadas a partir das Viagens. Enquanto grande viajante para Oriente, Mandeville revela-se perfeito no género, com constantes indicações de rotas, alternativas, lugares e povos.



Transeuntes do mundo

Como vimos, é evidente que Mandeville não foi a todos os sítios de que fala nem viu tudo o que nos relata; mas também já esclarecemos que este lado fantasioso dos relatos é uma característica quase atávica da arte medieval de compor boa literatura de viagens. De uma coisa podemos ter a certeza: os leitores contemporâneos de Mandeville sabiam, muito melhor do que nós, encontrar direcções em passagens que agora nos parecem obscuras e distinguir sem erro o imaginário do real. Muito claramente, estamos a falar de um tempo em que as pessoas viajavam, por vezes para paragens tão longínquas como a China, a Mongólia e a Índia, e chegavam aonde queriam chegar – e voltavam para escrever sobre os seus feitos. Como diz Margarida Sérvulo Correia, os cristãos desta época são transeuntes do mundo, e constroem os seus périplos como exercícios de religiosidade, de onde vem a profusão de milagres e relíquias e o destino sempre presente da Terra Santa .



Uma herança duradoura

As Viagens começaram a circular na Europa entre 1356 e 1366. O livro foi escrito originalmente em francês (muito provavelmente no anglo-normando, que continuava a ser corrente nas cortes inglesas), mas por volta de 1400 já havia uma qualquer versão da obra disponível nas principais línguas europeias. O grande número dos que usaram a viagem colorida de Mandeville como roteiro atesta bem a capacidade do autor para descrever, dentro das convenções estilísticas da sua época, o mundo a que pertencia. Estes roteiros foram seguidos, no duro e no terreno, durante os dois séculos que se seguiram à publicação do livro, o que exige que façamos nós agora dele um objecto importante de estudo. Dá-nos uma imagem muito precisa da conformação mental do planeta no fim da Idade Média e na Renascença. Sabemos que o número de manuscritos era vasto (sobreviveram cerca de trezentas cópias, enquanto que do Livro das Maravilhas, de Marco Polo, só chegaram até nós cerca de setenta) e incluía versões em checo, em dinamarquês, em holandês e em irlandês. Que o trabalho de Mandeville tenha caído em descrédito no século XVII, quando a geografia e as faunas e floras do mundo começaram a ser demasiado bem conhecidas para sustentar os contos do século XIV, em nada invalida a importância e o impacto que as Viagens tiveram no seu tempo. Aliás, convém não esquecer que, já no século XVIII, Richard Brome baseou toda a sua peça satírica Os Antípodas nas Viagens de Mandeville, o que nos mostra que as histórias do cavaleiro inglês ainda não tinham, de forma nenhuma, caído no esquecimento.



Outras fontes

É evidente que, como já vimos, Mandeville, à semelhança de qualquer outro autor medieval, tirou material de muitas outras fontes, nomeada e maioritariamente do Franciscano Odorico de Pordenona, que, durante o século XIII, viveu vários anos na China, e publicou as suas memórias em 1330, depois do regresso a casa. Mandeville estava tão consciente da quantidade de observações copiadas directamente do Franciscano e apenas embelezadas pela sua prosa romanesca que, antes da publicação da primeira edição das Viagens, achou por bem disseminar a lenda de que ele próprio teria viajado com Odorico, para que os leitores não estranhassem tantos pormenores idênticos nos dois manuscritos.

Mas, por outro lado, há observações que parecem ser, de facto, originais. A chamada história da filha de Hipócrates em Cos, por exemplo, não tem nenhuma outra fonte conhecida; e, no entanto, o muito fiável Felix Fabri encontrou com frequência esta história na ilha de Lanza quando a visitou, em 1483 – e é exactamente em Lanza que Mandeville coloca o seu dragão. Noutra passagem, Mandeville diz que as paredes do palácio do Grande Khan estavam cobertas de peles de pantera que exalavam um aroma doce , e este pormenor está ausente do texto de Odorico, que só fala de cabedal.

De qualquer maneira, seria estranho que um homem com um interesse tão grande por paragens distantes não aproveitasse pelo menos a grande tradição dos itinerários de viagens até à Terra Santa, no seu século palmilhados por números substanciais de peregrinos de todas as idades e classes sociais, à maneira da peregrinação muçulmana até Meca nos nossos dias. Na época de Mandeville, estas manifestações de fé estavam organizadas com o pormenor de uma excursão moderna – incluindo um homem que trabalhava na Praça de São Marcos e alugava sacos para dormir nos barcos aos viajantes. Como o Primeiro Livro atesta, a Europa e a Ásia Menor comportavam um número impressionante de itinerários que conduziam a Jerusalém e a um grande número de outras paragens mencionadas na Bíblia; e praticamente todas estas estradas tinham as suas infra-estruturas próprias de apoio aos peregrinos. Ao lermos estas páginas, ficamos com a noção clara de que o turismo religioso desempenhava sem dúvida um papel de relevo no tabuleiro do xadrez onde se jogava o poder entre culturas e religiões.



As fraquezas dos cristãos

Vários temas recorrentes nas Viagens mostram a sensibilidade de Mandeville para os grandes dilemas europeus do seu tempo. Por exemplo, como se torna dolorosamente claro no último capítulo do Primeiro Livro, o autor insiste na falta de mérito dos cristãos para possuírem a Palestina, na corrupção e na complacência da Igreja ocidental, e na qualidade dos trabalhos dos que não são

cristãos. A este propósito, é importante notarmos duas coisas: primeiro, que o que Mandeville nos diz a este respeito é repetido por vários outros escritores ocidentais dos seus dias, e segundo, que estas preocupações religiosas e sociais claramente expressas durante a Idade Média não se esgotam, de forma nenhuma, com o fecho do século XIV. Recorde-se a famosa frase de Eça de Queirós, em A Relíquia: quando o Raposão chega, finalmente, à beira do Santo Sepulcro, o que encontra são “Católicos como o Padre Pinheiro, Gregos ortodoxos para quem a Cruz tem quatro braços, Abissínios e Arménios, Coptas descendentes daqueles que adoraram o Boi Ápis em Menfins, Nestorianos que vêm da Caldeia, Georgianos que vêm do Mar Cáspio, Maronitas que vêm do Líbano – todos cristãos, todos intolerantes, todos ferozes!” . E tudo isto, claro, depois de ter atravessado uma chusma de vendedores de relíquias que já o pôs fora de si: “Calcei então as minhas luvas pretas. E imediatamente, um bando voraz de homens sórdidos envolveu-nos com alarido, oferecendo relíquias, rosários, cruzes, escapulários, bocadinhos de tábuas aplainadas por S. José, medalhas, bentinhos, frasquinhos com água do Jordão, círios, agnus-dei, litografias da Paixão, flores de papel feitas em Nazaré, pedras benzidas, caroços de azeitona do Monte Olivete, e túnicas “como usava a Virgem Maria”. E à porta do Sepulcro de Cristo, onde a titi me recomendara que entrasse de rastos, gemendo e rezando a coroa – tive que esmurrar um malandrão com barbas de ermita, que se dependurara da minha rabona, faminto, rábido, ganindo que lhe comprássemos boquilhas feitas com madeira da Arca de Noé! “Irra, Caramba, larga-me, animal!”. E foi assim, praguejando, que me precipitei, com o guarda-chuva a pingar, dentro do santuário sublime onde a Cristandade guarda o túmulo do seu Cristo” . O que será motivo de fina ironia para um escritor do século XIX foi, sem dúvida, motivo de extrema crispação e consternação para um escritor da Baixa Idade Média.



A viagem ao Paraíso

Como já mencionámos de passagem, Mandeville partilha, também, com vários outros escritores do mesmo período, uma noção de precisão que pode agora parecer-nos desarmante na sua frontalidade cândida: ao mesmo tempo que nos delicia com torrentes de histórias, não hesitando a deitar mão de imagéticas pré-estabelecidas absolutamente fabulosas, preocupa-se também em elucidar-nos sempre que não pode descrever com o devido requinte de pormenor um determinado lugar que não visitou: Do Paraíso não posso falar adequadamente, porque não estive lá; e isto eu lamento.

Note-se que esta “viagem ao Paraíso” não tem nada a ver com experiências transcendentais em que o autor estaria praticamente morto por algum tempo e depois voltaria à vida, tendo entretanto visitado o Paraíso Celeste. Nada disso. Nesta passagem Mandeville fala-nos, apenas, daquilo que todos os seus contemporâneos e predecessores procuram: o Paraíso Terrestre, o jardim maravilhoso sem dores nem doenças nem mortes, nem sequer idades, onde Adão e Eva teriam vivido antes da Queda. Este Paraíso foi sendo assinalado nos mapas até à viagem de Cook no século XVIII, quando a Cartografia da Terra ficou concluída e foi preciso aceitar a verdade dolorosa de que o Jardim das Delícias, afinal, não existia mesmo – isto depois de ter sido descrito em várias paragens da América do Sul, incluindo a Bahía, depois na Ilha de Réunion, e por fim no Taiti. O primeiro aventureiro a partir à sua procura terá sido o monge irlandês São Brandão (484-578), que embarcou com seis companheiros do seu convento em busca de um lugar mágico de um mapa que o veio visitá-lo em sonhos. Ao fim de sete anos de peripécias náuticas e orações(grande parte do tempo, e obrigatoriamente no Pentecostes, às costas de uma baleia chamada Iascónio) e de visões grandiosas da mitologia cristã, a tripulação encontra por fim a Ilha da Promissão dos Santos, onde todos os homens rejuvenescem, cheira a flores e a frutos doces, ninguém precisa de se cansar para arranjar comida porque todos os dias cai do céu um maná extremamente tonificante, não há armas nem batalhas, um nevoeiro sublime raiado de luz paira sobre toda a paisagem, reina uma paz intensa – e todos estes efeitos na espiritualidade e no funcionamento físico dos homens se mantêm durante quarenta dias depois da partida. A Ilha de São Brandão, arduamente procurada por contingentes infindáveis de outras novas tripulações, foi aparecendo em diferentes pontos dos mapas até ao século XVI , quando as Descobertas já não lhe davam espaço para existir .

A procura do Paraíso Terrestre é uma constante extremamente consistente na literatura medieval de viagens. As histórias, os nomes, as maravilhas e as datas abundam. Vejamos apenas, a título de exemplo, um pequeno fragmento:

Três monges abandonaram o seu mosteiro entre o Tigre e o Eufrates para irem procurar “o lugar onde a Terra se junta ao Céu”. Finalmente, chegaram às florestas escuras da Índia, onde encontraram pessoas com cabeça de cão , pigmeus e serpentes, e viram os altares construídos por Alexandre O Grande para marcar as fronteiras mais longínquas das suas conquistas. Através de paisagens fantásticas, povoadas por gigantes e pássaros que falavam, os monges continuaram a avançar até que, a cerca de vinte milhas do Paraíso Terrestre, encontraram São Macário já com uma idade muito avançada, rodeado de dois leões seus amigos. O santo deleitou os monges com histórias sobre o Paraíso, e depois mandou-os embora, com o aviso de que nunca nenhum mortal poderia lá entrar .

Histórias destas já pululavam na Europa desde a Alta Idade Média, espicaçando a curiosidade de Mandeville, que deve, de facto, ter tentado lá chegar por todos os meios possíveis.

Alguns estudiosos modernos, atendendo apenas a todos os implausíveis registados sobretudo no Segundo Livro, consideram Mandeville não mais que um “viajante mentiroso” próprio do seu tempo, em que pouco se publicava e pouco se sabia sobre o outro lado do mundo. Podemos apenas dizer que quem argumenta assim esquece com demasiada facilidade que o significado da verdade, e a noção do que deve ser uma crónica de viagens, muda com o tempo – a verdade e a crónica do século XIV não tinham nada a ver com os nossos paradigmas do século XXI. Mandeville diz que visitou a China, mas, curiosamente, não chegou ao Japão visitado por Marco Polo no fim de 1200. Embora fossem muito pouco habituais, estas viagens decorriam regularmente no século XIII. Antes de todos os outros, o já mencionado Franciscano Odorico de Pordemona atingiu a China a pé e viveu lá cinco anos. Mais tarde, missionários (também Franciscanos) como Giovanni Piano de Carpina ou Guilherme de Roebruck foram de Paris à Tartaria a pé para tentarem converter o khan à Cristandade, e também voltaram para escreverem as suas memórias. Alguns comerciantes das repúblicas italianas, como os irmãos Polo e Balducci Pegolotti, fizeram o mesmo. Como vimos, Marco Polo contou as suas aventuras maravilhosas a um escritor de romances de cavalaria francês, e daí resultou um livro de entretenimento muito popular. Já Piano de Carpina, um homem muito mais letrado e sério que Marco Polo, contou as suas, no mosteiro Franciscano de Paris onde se acolheu depois da chegada, ao incontornável sábio Roger Bacon, que as transformou num tratado destinado a vir a ser de grande utilidade académica, mas que só teve versões manuscritas. Mandeville, pelo seu lado, teve a sorte de publicar mesmo antes da invenção da imprensa, e de ser, em consequência, preservado em quantidades que permitem, hoje, retraçar na totalidade a versão integral das Viagens.

No entanto, essa mesma modernidade que beneficiou Mandeville contribuiu para um desgaste severo da sua imagem enquanto escritor de Viagens. Os grandes visionários europeus usaram o seu livro para desencadearem a imensa vaga de fundo das Descobertas – e o que as Descobertas revelaram foi que o mundo de Mandeville não era real. No calor do momento, é fácil e tentador atirar pedras à mulher adúltera. Mas temos que recordar-nos de que Mandeville escreveu segundo o paradigma pré-Descobertas; e, nessa altura, quem não invocasse os monstros clássicos de Ctesias, de Herodoto, de Solinus Polyhistor e depois de Plínio, todos esperados pelos leitores, não poderia ser considerado como tendo qualquer credibilidade. Chamar mentiroso a Mandeville porque respeitou os cânones que as convenções da época o obrigavam a respeitar é rejeitar de todo em todo a existência de paradigmas; uma vez que só podemos ver, e escrever sobre, aquilo que as estruturas conceptuais e metodológicas da nossa mente nos permitem articular – nas palavras memoráveis de Fernando Pessoa, só podemos ver aquilo que já vimos.

É só dentro do seu contexto exacto, a cavalo entre dois mundos e dois paradigmas, que podemos apreciar devidamente a qualidade do trabalho de Mandeville. Fora do contexto, as Viagens são apenas um saber divertido mas inútil, que, como todo o saber fora do contexto, está desnecessariamente a ocupar lugar.



As charadas modernas

A narrativa das Viagens tem a qualidade de ser enciclopédica na sua inclusão de muitos elementos diversos, uma qualidade extremamente apreciada na Idade Média – nas palavras do próprio Mandeville; porque muitos homens desejam ouvir coisas que não são familiares e têm prazer nisso. Por outro lado, estes livros funcionam como guias de viagem para quem quiser seguir os mesmos caminhos, descrevendo uma realidade política e geográfica reconhecível e compreensível aos olhos dos leitores do seu tempo. Deste ponto de vista, no respeitante à viagem até à Terra Santa aqui descrita no Primeiro Livro, as Viagens são um guia perfeito para os peregrinos – e foram certamente usadas como tal.

Como vimos, todas estas informações, que podem parecer-nos desconexas, não querem de forma nenhuma dizer que o sentido de orientação medieval tornasse as viagens impossíveis. A insistência de Mandeville, repetida em várias passagens, na ideia de que, com mais homens e mais barcos, seria possível circum-navegar todo o globo, assim como as suas descrições da Estrela Polar, tiveram

um papel importante na preparação das grandes viagens do século

seguinte, as mesmas viagens que começaram a preparar-nos para entendermos o mundo tal como o vemos hoje.

No trabalho incansável do hipertexto medieval, a incapacidade dos cristãos para tomarem a Terra Santa, porque não resolvem a sua necessidade de empreenderem uma vasta reforma social e moral antes de estarem em condições para a empresa , tem um paralelo explícito com a incapacidade do próprio Mandeville em atingir o bálsamo que se encontra nas Árvores do Sol e da Lua de Alexandre, que por sua vez, como num jogo de espelhos, reflecte a incapacidade de todos os grandes senhores deste mundo, independentemente de todo o seu poder e riqueza, para atingirem o Paraíso Terrestre.

A diferença entre os nossos mapas mentais, as premissas governadas por eles, e a visão medieval do mundo, torna difícil para nós compreendermos com plena justiça o impacto que Mandeville teve no seu tempo. O caminho para a Terra Santa descrito nas Viagens, que constitui o corpo de todo o Primeiro Livro, é descrito em diversas alternativas – mas todas elas seriam uma charada impossível para um viajante moderno. E essa charada que nós já não lemos é a maior homenagem que podemos prestar à arte de contar belas histórias bem contadas da Idade Média .





Nota 1 – No período em que Mandeville escreve, o método mais frequente para a nomeação de países e cidades distantes, habitados por povos que não são de origem europeia, é o recurso à onomatopeia, que confunde os leitores e aflige os tradutores. Neste caso, com o objectivo de simplificar a leitura, sempre que um destes nomes corresponde com toda a certeza a um lugar identificável nos mapas modernos, optou-se pelo uso do nome que esse lugar tem actualmente.

Nota 2 – O título deste livro varia de tradução para tradução, mas responde, regra geral, por “As Viagens de Sir John Mandeville”. Nesta primeira versão para português, optou-se por “Viagens de Mandeville” porque, além de ser mais sonoro, mais ritmado, e mais bonito, ser este o título (Mandeville’s Travels) pelo qual o livro é consistentemente mencionado na literatura académica. Aliás, o livro tem tamanho poder próprio por todas as novas portas que abre para os futuros rumos de exploração, que é muitas vezes mencionado apenas por Travels. Qualquer menção a literatura de viagens que não diga mais que Travels reporta-se, obrigatoriamente, às Mandeville’s Travels.

 
Estou neste momento a traduzir para Português a versão integral das Viagens.Só para os seguidores deste blog, deixo aqui, desde já, todas as peripécias do Primeiro Livro.

1 comentário:

  1. Falando de Descobrimento, descobri apenas hoje este blog tão interessante. O Ensaio despertou a vontade de ler As Viagens do Cavalheiro Mandeville. Abraços. Ana

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