05/06/2011

NOTA BENE: Montanhas da Loucura

Vai ser lançado em breve pela editora Relógio d'Água o grande clássico da ficção científica de horror, pejado de referências do foro biológico e geológico, Nas Montanhas da Loucura, de J. P. Lovecraft. Traduzido do inglês por João Lourenço Monteiro e Clara Pinto Correia, este livro foi um dos primeiros a lidar em grande escala com a questão da criação de vida sintética à superfície da Terra. Já que esta é uma das linhas da frente mais pertinentes da Biologia de hoje, deixamo-vos aqui, à laia de apresentação, o texto do Prefácio. 

Prefácio


Como foi que aqui chegámos



Nas Montanhas da Loucura é um verdadeiro clássico daquela ficção científica destinada a gelar o sangue nas veias do leitor pelo poder esmagador do cenário, omnipresente, impotente e angustiante. Stephen King chamou-lhe a melhor literatura de horror do século XX. Grande parte do seu poder de colar a vítima à narrativa é o efeito sugestivo do mistério central de toda a aventura: a capacidade de criar vida sintética e produzir organismos a gosto conforme as necessidades. Grande inspiradora de ficcionistas de ciência, a vida sintética teve até hoje inúmeras aparições em variadíssimos caprichos de enredo. Mas, neste livro, atinge consensualmente uma das suas glórias máximas.

A ficção científica tem já há bastante tempo esta qualidade curiosa de se antecipar à própria ciência – com o lado ambíguo de recrutar para cenários aterradores o que mais tarde a ciência consegue chegar a fazer com objectivos perfeitamente decentes. Se não fosse esta dualidade fascinante, certamente que não existiriam hoje no mundo tantas comissões de ética. Bem vistas as coisas, tanto bebés-proveta como clones começaram por ser criaturas indefesas enfiadas em frascos de ditadores ensandecidos. Sendo assim, ao prepararmo-nos para ler um longo delírio pejado de criaturas sintéticas, talvez seja bom começar por esclarecer que sim senhor, é verdade: os cientistas já conseguiram criar uma célula sintética. Foi agora mesmo, mas abriu a porta para todo um mundo de possibilidades que ontem só existiam na ficção.

Vejamos, então, a realidade.

Para percebermos melhor o que está realmente em causa por intermédio deste formidável mundo novo, convém regressarmos ao dia 21 de Maio de 2010, quando Craig Venter, do Maryland, anunciou ao mundo que a sua equipa tinha criado uma célula sintética – e os colegas de todo o mundo consideraram que ele não andava muito longe da verdade.

Uma célula sintética. Há décadas que andava muita gente a tentar.

Em termos muito latos, as primeiras notícias diziam que a equipa de Craig Venter tinha conseguido fabricar um genoma que não existia na natureza e inseri-lo numa bactéria. No entanto, depois de bem escrutinizados os dados, vários cientistas insistiam que não era claro se aquele genoma era fabricado de raiz ou era apenas a cópia de outro genoma pré-existente –– ou seja, se o que se fizera não passaria de um mero acto de clonagem. Esta disputa explica-se facilmente. Craig e os colegas tinham usado como modelo o DNA de uma bactéria, e tinham-no reconstruído em laboratório de forma cem por cento sintética. Para que este DNA fabricado se distinguisse claramente de todos os outros, introduziram-lhe a espaços as chamadas “marcas de água”: sequências absurdas, que codificavam para os nomes dos membros da equipa, e mesmo para algumas passagens de Joyce. Introduzido numa bactéria previamente esvaziada de todo o seu DNA, este genoma sintético pô-la a funcionar e tornou-a perfeitamente apta para sobreviver no incrível universo das bactérias.

Isto nunca se tinha feito antes e deixou muito geneticista molecular de respiração suspensa, a ousar imaginar o que realmente poderá acontecer agora já a seguir, e porquê.

Tal como acontece em Nas Montanhas da Loucura, a ciência da vida sintética é um sonho civilizacional. A grande diferença, no caso da vida real, é que nenhuns Antepassados precisaram de vir do Espaço para tudo isto que se segue ser possível. As maiores maravilhas da ficção mais arrojada existem mesmo. Estão escondidas milhões de vezes abaixo do limite de resolução dos nossos olhos. Deus seja louvado, temos neurónios.



Para os que investem os seus esforços científicos no genoma sintético criado em laboratório, o grande sonho é ver chegar o dia, ainda muito distante, em que poderemos sentar-nos e pensar que forma de vida é que precisamos de construir nesse dia –– e depois pronto, desenhá-la e construí-la, como se faz com um carro ou uma ponte.



Embora os seus resultados ainda venham longe, a chamada biologia sintética já existe há umas boas décadas. Baseia-se na premissa de que, na maior parte dos casos, os organismos podem partir-se numa série de partes. A mais importante destas partes seria o gene, a sequência de informação no braço do cromossoma que contribui para a passagem de uma determinada mensagem para a célula. Os genes contêm instruções para se fazerem proteínas, e estas moléculas formam-se em diferentes tipos e tamanhos. É também dos genes que vem a informação sobre onde e quando estas proteínas devem ser utilizadas. As proteínas interagem umas com as outras, comandando várias das funções da célula.



Sabe-se, desde há muito tempo, que certos genes são essenciais: sem as proteínas que codificam, a célula não funciona. Mas muitos outros genes, em contrapartida, são opcionais: pelo menos no laboratório, o organismo dá-se muito bem sem eles.



É também importante sabermos que termos um ou dois genes “extra” de fabrico humano não costuma ser um problema. Já experimentámos inserir um gene novo, por uma grande variedade de razões, em organismos que vão da petúnia à cabra. Desde 1980, a insulina humana tem sido produzida em massa por células bacterianas geneticamente alteradas para o fazerem.



Até agora, já tínhamos conseguido remexer na Natureza para criar versões de genes e proteínas que não existem espontaneamente. A proteína fluorescente verde, por exemplo, é feita naturalmente pelas alforrecas. Os cientistas conseguiram alterar esse gene para que a proteína brilhe com mais força e possa ter outras cores. A fluorescência é já desde há muitas décadas um instrumento essencial em Biologia Celular e Molecular.



E, mais recentemente, apareceram os genomas construídos em laboratório. O primeiro que se fez, há oito anos, foi de um poliovirus –– ou seja, da estrutura de DNA mais simples do mundo vivo. Depois tornou-se possível fazer cópias sintéticas de genomas pré-existentes de bactérias. Agora, com estes novos resultados, parece que nos tornámos capazes de fabricar genomas bacterianos que nunca existiram na Natureza.



Mas as dificuldades neste campo continuam a ser muito grandes. Esta publicação de Craig Venter com o genoma todo feito em laboratório que fez funcionar a bactéria pode ter sido uma enorme proeza, mas é só um passinho de bebé em direcção à vida sintética: não é propriamente nenhum salto de gigante. A bactéria resultante quase não diferia da bactéria que já existia. A única diferença era que o seu DNA tinha as tais “marcas de água” , que a identificavam como tendo sido fabricada, em vez de resultar da evolução.



Um dos grandes problemas em criar vida no laboratório é que os sistemas biológicos evoluídos são complexos, e comportam-se muitas vezes de formas que ainda não conseguimos predizer. Podemos especificar a sequência de DNA que faz uma determinada proteína, mas nem sempre conseguimos prever com que é que vai parecer-se a proteína ou como irá interagir com as outras proteínas da célula. E, de qualquer maneira, na maior parte dos casos, os sistemas biológicos não são todos iguais uns aos outros: é verdade que nos tornámos bons a produzir DNA, já sabemos copiar genomas, alterá-los ligeiramente –– mas ainda estamos muito longe de conseguir construir um genoma a partir do nada.

Note-se que o processo de inventar uma nova linguagem genética permite-nos perceber melhor aquela que já evoluiu. E isto já começou. As primeiras tentativas de criar DNA alternativo revelou rapidamente que cada “corrimão” da dupla hélix é muito mais fundamental para a forma como a célula trabalha do que tudo o que pudéssemos ter imaginado antes.



Mas agora vamos deixar-nos de modéstias e passar à parte realmente fabulosa – aquela onde a vida sintética entra a matar, e que ninguém sonharia criar na ficção científica porque era preciso ter estudado Genética Molecular até hoje. Apreciem o projecto da Segunda Natureza.

Embora não consigamos expressar-nos fluentemente na linguagem genética da Natureza, não deixa de existir a possibilidade excitante de um dia escrevermos a nossa. Começámos pela engenharia de proteínas que não ocorrem normalmente no mundo vivo, e estamos a começar a construir moléculas que se parecem com o DNA na sua capacidade de acumular informação, mas que pode ser lido de forma diferente pela maquinaria da célula. Isto deve permitir-nos construir uma “segunda natureza”: um grupo de organismos que usam uma linguagem diferente, e que não podem interagir facilmente com as formas de vida que evoluíram na Natureza.



E, sobretudo, que ninguém se lembre de proibir os cientistas de avançarem por aqui, com a alegação idiota de que podem acontecer coisas más. Claro que há muitas formas em que poderemos utilizar organismos feitos por design, umas boas e outras más. Mas o que é realmente importante é que, ao tentarmos criar vida artificial, aprendemos cada vez mais sobre que a vida que foi evoluindo desde o princípio dos tempos. E ainda nos falta estudar muito para entendermos como foi que aqui chegámos. Muito.



Clara Pinto Correia

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