15/12/2009

ENSAIO: A dor do Cisma

QUANDO O MUNDO FICOU ÓRFÃO
A Ocidente, o início da caminhada foi simples, e tranquilamente gratificante, porque ninguém estava sozinho: Deus estava com todos os homens, em todos os fenómenos naturais, em todas as manifestações de sabedoria e em todos os pequenos gestos do quotidiano. A demanda científica encaixava neste molde como qualquer outra expressão da Natureza Humana: era o desvendar do Livro da Natureza, que Deus nos deixara juntamente com o Livro da Revelação. Como tal, tinha que seguir as Escrituras e confirmá-las. A Ciência e a Religião eram duas faces da mesma moeda e foram-no enquanto a acumulação de dados científicos o permitiu –– porque estes cientistas, à semelhança da sociedade que os rodeava, eram crentes; e porque ninguém gosta da ideia de ficar órfão, completamente sozinho num planeta aleatório suspenso no vácuo, no seio de uma Natureza que afinal não espelha as intenções de Deus e como tal não tem, de todo em todo, qualquer espécie de moral.
No caso concreto da crença cristã da nossa herança ocidental, foi o tempo de duração da vida na Terra que fez começar a ruir um edifício muito belo e muito complexo, construído laboriosamente durante séculos e séculos.
No livro do Apocalipse, São João deixa clara a tendência celestial para a contagem do tempo em períodos de mil anos –– os mil anos de império de Cristo com os santos, os mil anos em que Satanás anda à solta com a Besta e as nações de Gog e Magog, todos sugerem tendências milenares na actividade divina. Depois, aparece uma passagem curta no terceiro capítulo da segunda epístola de Pedro, uma carta dirigida aos crentes exactamente sobre o tema do milénio e do regresso do reino de Deus. Pedro afirma, com vários dos seus pares, que a próxima destruição do mundo (aquilo a que viria a chamar-se a Conflagração Final) será pelo fogo. Não nos dá datas precisas para o evento, mas afirma, de forma oracular, que Deus faz num dia o que o homem faz em mil anos. Este é, para os seus leitores e ouvintes, um oráculo confortável devido à sua familiaridade: o mesmo tema aparece no Antigo Testamento, nas palavras do Salmo 90: “Pois mil anos ao Vosso olhar são como ontem depois de ter passado e como uma vigília nocturna”. Da combinação destas três contribuições, nasceu o raciocínio que havia de guiar o pensamento europeu até ao início do século XIX: se Deus faz num dia o que o homem faz em mil anos, e se em seis dias Deus criou a Terra, então o tempo de duração da vida na Terra deverá ser de seis mil anos, mais mil anos representativos do sétimo dia, em que Deus descansou –– e que, por seu turno, representam os mil anos de glória do reinado de Cristo com os santos. Até a Geologia começar a tornar estes números insustentáveis, todos os raciocínios que se fizeram sobre a Terra fizeram-se a pensar em sete mil anos de existência. Sete mil anos é um período plausível. A inteligência humana consegue medi-lo. Foi extrapolado a partir das Escrituras. Durante muitos séculos de progresso científico, os cientistas eram crentes, acumulavam dados novos que assombravam os seus contemporâneos, e continuavam a confiar nas Escrituras como primeira fonte da sua informação. A introdução generalizada da microscopia, na segunda metade do século XVII, foi recebida como uma revelação do poder divino ainda mais assombrosa do que o que seria possível pensar antes –– abaixo do limite de resolução dos nossos olhos, Deus criara um mundo tão perfeitamente organizado como o nosso; e, provavelmente, abaixo desse mundo existiam ainda outros. No início do século XVIII, quando Isaac Newton descobriu as leis da gravidade, pensou ter descoberto a face matemática de Deus –– e foi exactamente este lado transcendente das suas equações que criou tanto entusiasmo na sociedade que o rodeava.
Mas, por esta altura, já todo o conhecimento europeu recolhido e catalogado se engrossava como uma vaga cada vez mais espessa prestes a desabar sobre a credibilidade das Escrituras como fonte de toda a informação original sobre os fenómenos universais. Durante o Iluminismo, a noção da complexidade do Universo levara Newton a sugerir que os seis dias da Criação teriam sido inimaginavelmente longos, para dar a Deus o tempo necessário para executar toda a Sua obra –– e só depois disso é que, graças a um esforço especial dos anjos, a Terra teria começado a rodar cada vez mais depressa sobre o seu eixo até atingir as 24 horas de rotação diária agora conhecidas, tendo nesse processo de aceleração ficado inclinada e achatada nos pólos. Por muito respeito que Newton merecesse, esta ideia dos anjos a fazerem a Terra girar cada vez mais depressa não angariara quaisquer seguidores no próprio século XVIII. No século XIX, era já consensual que por “dias da Criação” devíamos entender “épocas da criação”, sendo “dia” uma metáfora bíblica para a unidade de tempo (a “época”) que Deus levara a construir uma determinada parte do mundo. Sendo assim, o tempo exacto da Criação deixava de ser problemático. E, já que, de qualquer forma, Deus ficara insatisfeito com o rumo dos acontecimentos e enviara o Dilúvio para apagar da face Terra todas as formas de vida que não estivessem na Arca, também era praticamente consensual que a cronologia dos acontecimentos terrenos só devia começar a partir do momento em que as águas baixavam e a Arca pousava no Monte Ararat.
O grande drama deste esquema aparentemente sensato é que, contrariamente ao que acontecera até ao disparo das Descobertas, no fim do século XVIII os mapas do mundo estavam completos e os europeus conheciam praticamente todas as espécies animais que o povoavam, incluindo colibris e ornitorrincos. Cientificamente, o cenário começava a tornar-se impraticável: mesmo construído com a ajuda de Deus, que espécie de engenho de madeira erguido por mãos humanas seria suficientemente leve para flutuar e suficientemente vasto para manter vivas e férteis lá dentro, durante quarenta dias, milhares de espécies animais oriundas de climas tão diversificados e com rotinas tão antagónicas? Como manter o leão tranquilo ao lado da gazela? Como sustentar na mesma nave o urso polar e o canguru? E todas as plantas do mundo? Como explicar a sobrevivência da savana, ou da floresta tropical húmida, ou da modesta tundra do Ártico?
Ofereceram-se soluções de conciliação do conhecimento científico com o texto bíblico, mas todas tão fantasiosas que mesmo os mais crentes e piedosos dos cientistas se afastaram prudentemente dos seus proponentes. As montanhas mais altas teriam formado ilhas, para onde a inspiração divina conduzira muitos destes animais exóticos, a quem o castigo não era destinado. Deus só mandara o Dilúvio para as terras habitadas pelo homem, e a maioria destas novas espécies vivia em paraísos intocados pela malícia humana. Quando Deus diz a Moisés “leva os animais contigo”, está a dizer-lhe “leva os animais que estão ao pé de ti” –– os outros animais, muito provavelmente, teriam sido fruto de uma nova Criação operada na remodelação do mundo subsequente ao Dilúvio. De todos estes esforços de exegese delineavam-se, já, dois entraves de maior monta na conciliação entre as Escrituras e os dados científicos: o Dilúvio, que sempre se pensara ter moldado a face inteira do planeta, parecia agora estar a regredir para uma região do globo cada vez mais limitada; e a ideia da criação pós-diluviana de toda a fauna exótica choca de frente com todo o conhecimento já acumulado sobre ossadas fósseis de animais aparentemente muito semelhantes, e que dão todos os sinais, pela posição dos ossos e pelos estratos rochosos onde se encontram, de terem vivido muito antes do Dilúvio.
Apesar de tudo, a subalternização do Dilúvio era mais fácil de digerir. A meio do século XIX, o famoso geólogo britânico Charles Lyell já podia dizer num debate público “olhe, Reverendo, encharque a bacia do Jordão em tantas grandes cheias quantas lhe aprouver”, que a maior parte da audiência ria e batia palmas, como aliás fazia com a maior parte das famosas grandes tiradas deste homem que começara a sua vida activa como advogado de barra e sabia das artes de electrizar audiências. A passagem do tempo bíblico de sete mil anos de vida na Terra para o Tempo Profundo da Geologia de hoje, essa, requeria uma mudança de paradigma tão radical e perturbante que foi debatida amargamente por colegas de profissão e só se resolveu com um primeiro separar das águas.
Em 1795, o geólogo James Hutton publica Theory of the Earth, um livro de mais de mil páginas que vai ficar na história como o disparador do Grande Cisma. Hutton olha para a Terra, analisa as suas rochas e as formações que aparecem, estuda os fundos oceânicos, e não vê sinais de criações nem de catástrofes. Apenas vê ciclos. Vê novas rochas a formarem-se no fundo oceânico por obra do calor actuando sob pressão, vê que essas rochas vão subindo cada vez mais acima do nível do mar, e vê que, entretanto, a chuva, a neve, o vento, e todas as outras formas de erosão vão arrastando os cumes montanhosos para a bacia dos rios, acabando por devolvê-los ao mar. A esta teoria de funcionamento da superfície da Terra Hutton dá o nome de Vulcanismo: a modelação é feita por efeitos cumulativos de forças minúsculas e alterações infinitesimais, que, no fim, produzem alterações idênticas às de um cataclismo súbito. Para que isto possa acontecer, é necessária uma enorme quantidade de tempo –– basta recordar que, em toda a história registada, nunca se verificou nenhuma destas alterações. Esta sucessão infinita de ciclos torna desnecessária qualquer intervenção divina. Escusado será dizer, também não revela quaisquer sinais de ter ocorrido uma catástrofe com as proporções do Dilúvio no ano 2200 A.C., data que lhe era frequentemente atribuída. Perante o peso incontornável das suas próprias descobertas, Hutton conclui com a frase que vai mudar tudo:
“Não encontramos qualquer vestígio de um princípio, nem qualquer prenúncio de um fim”.
Repare-se que o autor não nega a narrativa bíblica: apenas afirma não ter encontrado registos geológicos do que lá vem relatado, nem no que toca à Criação nem no que respeita à preparação para a Conflagração Final. Hutton teve bastantes seguidores, mas também teve muitos detractores. Entre estes, um dos ataques mais frequentes que lhe fazem é de estar a incitar a sociedade ao ateísmo, por escrever em desacordo com as Escrituras. Hutton é crente, e sofre sinceramente com este tipo de acusações, que alastram depois da sua morte em 1797.
Em defesa do Mestre, o seu antigo discípulo John Playfair publica um síntese do Theory of the Earth que seja mais facilmente legível pelos colegas e pelos cidadãos interessados (o estilo arrevesado e repetitivo de Hutton poderia ter causado dificuldades de leitura e assim facilitar mal-entendidos). Na introdução, chama a atenção para uma distribuição de papeis muito simples que iliba Hutton de qualquer pecado de ateísmo: os cientistas só têm que entender as leis da Natureza e como funcionam, não lhes compete explicar o porquê desse funcionamento, sendo essa a missão do teólogo. É a primeira vez que alguém vindo da comunidade científica defende em público que a ciência e a religião devem ocupar campos separados e tratar de assuntos separados. Todo o espírito do tempo está a encaminhar-se nessa direcção.
Sem Dilúvio, sem tempo mensurável de existência, a Terra estava a escapar cada vez mais à sua antiga aliança harmoniosa com as Escrituras. Para manter a ordem no planeta ainda restava, no entanto, o homem feito à imagem de Deus.
É costume associarmos esta última machadada na ciência como forma de crença ao trabalho de Charles Darwin; mas, na realidade, a remoção do homem do seu pedestal divino foi feita antes por um autodidacta com muitas leituras e muitas ideias, especializado em produzir manuais e enciclopédias. Robert Chambers esteve alguns anos escondido numa casinha de campo na Escócia até produzir Os Vestígios da Criação, um livro que publicou em 1841 sob anonimato absoluto. À evolução chamava ele desenvolvimento. Algumas das suas explicações “científicas” para a diversificação das espécies eram fantasiosas e claramente malfundadas. Mas sim, a versão da ascendência humana se encontrar nalgum primata já desaparecido aparecia lá com todas as letras. O escândalo causado por este livro foi avassalador, e Darwin seguiu-o com atenção, preparando cuidadosamente o caminho para a perturbação dos seus contemporâneos por uma nova obra que, desta vez, seria bem fundamentada e teria sólidas básicas científicas –– a obra de mais um geólogo, como todos os outros que já tinham iniciado o processo de cindir a ciência da religião. A passagem que se segue, datada de 1859, da autoria do geólogo Adam Sedgwick, um dos professores que Darwin mais respeitou e temeu, em resposta à oferta pelo autor de uma primeira edição de A Origem das Espécies cuidadosamente dedicada e autografada, expressa bem o desespero de quem se sente na soleira da porta da orfandade:
“A coroa de glória da ciência orgânica é conseguir, através da causa final, ligar o material ao moral […] Você ignorou esta ligação; e, se percebi bem a sua intenção, fez o seu melhor em um ou dois casos para quebrá-la. Se fosse possível (o que, graças a Deus, não é possível) quebrá-la, a humanidade, na minha opinião, sofreria um dano que poderia brutalizá-la, e afundar a raça humana num grau de degradação mais baixo do que qualquer um em que já tenha caído desde o início da sua história registada”.
E assim foi. A Natureza moral que nos revelava o pensamento divino mergulhou nas trevas por baixo da grande placa tectónica da selecção natural como mecanismo organizador da diversidade da vida, e para todos os efeitos o mais amoral dos mecanismos concebíveis: é totalmente aleatória, funciona às cegas, não apresenta qualquer pretensão de castigar os maus e gratificar os bons, neste mundo ou em qualquer outro. O homem perdeu o seu lugar privilegiado à imagem e semelhança de Deus, e teve que encarar a sua própria existência como um mero acaso da Natureza. A orfandade desceu sobre o mundo, e a moralidade foi morrer longe. Ciência e religião dividiram os seus feudos.
E, paradoxalmente, no mundo perdido onde acabámos por morar, vêm hoje perguntar-nos, enquanto biólogos, as tais perguntas que estão reservadas para o foro da teologia. Quando começa a vida? Quando podemos dizer que um embrião tem individualidade? Será que o nosso código genético é a nossa alma? Mas nós, crentes ou não, só podemos reiterar o que Playfair já constatou há dois séculos. Podemos entender as leis e explicar como funcionam. Está fora do nosso alcance explicar porquê.

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