05/10/2009

ENSAIO: A tentação da miniatura- Parte II

A hipótese da boneca russa: a Revolução Científica e o primeiro conceito de genética
Temos ainda que ter em conta um outro factor que, na época, tornou a pre-formação perfeitamente aceitável como modelo explicativo para a reprodução: a duração da vida na Terra, na altura consensualmente considerado como de não mais de seis mil anos. Num período tão curto, e sem a noção (ainda a dois séculos de distância, quando se chegasse ao postulado da teoria celular) de que existe um limite inferior de tamanho para a organização dos seres vivos, é concebível imaginar Deus a encaixar uns dentro dos outros organismos cada vez mais pequenos. Se os naturalistas da época tivessem que lidar com o tempo geológico profundo que conhecemos hoje (e que, uma vez mais, só viria a tornar-se consensual em finais do século XIX), certamente teriam mais dificuldade em acomodar o conceito de um encaixe ilimitado. Por outro lado, se a microscopia já tivesse evoluído na época ao ponto de permitir a compreensão de que todos os seres vivos são constituídos por unidades básicas chamadas células, e que cada célula, para poder funcionar, precisa de grandes quantidades de água, de uma qualquer forma de empacotamento da macromolécula do DNA, e de vários organitos, já nunca poderiam dizer, como tão bem sintetizou Charles Bonnet, “A Natureza pode trabalhar em tamanhos tão pequenos quanto lhe aprouver”, e a hipótese do organismo completamente constituído incluído numa escala deslizante para dimensões infinitamente pequenas teria que ser excluída. Foi uma conjugação extremamente interessante de conhecimentos e falta dos mesmos, combinada com as idiossincrasias do período, que tornou a preformação possível.
Quando Malebranche postulou este conceito, o único veiculo conhecido que poderia permitir este encaixe era o ovo. Há milénios que se observava a eclosão de seres vivos de dentro de ovos, fossem de peixes, de répteis, de anfíbios ou de aves. Nos microscópios de Redi, de Swammerdam, ou de Hooke, o ovo do insecto de onde eclodem as larvas também já se tornara conhecido. Já no fim da vida, no seu livro pioneiro Exercícios de Geração Animal, o médico inglês William Harvey, tornado famoso pela descoberta do mecanismo da circulação do sangue aos 44 anos, depois de vários anos passados a observar microscopicamente o desenvolvimento de embriões de pinto e o útero de gazelas grávidas da tapada do Rei Carlos V, postula pela primeira vez com todas as letras Ex Ovo Omnia , “do ovo, tudo”, ou seja, “tudo quanto é vivo provém do ovo. O frontispício da primeira edição, imortalizado em inúmeras reproduções, mostra-nos Zeus a abrir um ovo em cuja parte superior se lê o hoje lendário Ex Ovo Omnia, e de onde estão a sair todas as criaturas que existem no planeta. Foi a primeira afirmação taxativa de que também os mamíferos deviam provir de um ovo, se bem que interno, microscópico, e consequentemente difícil de detectar.
As dificultardes inerentes a esta pesquisa, no entanto, não atrasaram a descoberta por muitos mais anos: em breve o microscopista holandês Reignier de Graaf estava a publicar o seu tratado sobre as partes reprodutivas das mulheres, com observações feitas em cadáveres femininos e em ovelhas, onde o “ovo do mamífero” aparece claramente desenhado nos ovários de ambas as espécies, em vários tamanhos, que de Graaf explica corresponderem a diferentes fases de maturação. Claro que estes “ovos” não eram ainda os ovos propriamente ditos, mas antes as estruturas a que agora chamamos, precisamente, os “folículos Graafianos”: a estrutura de células protectoras, no córtex 0ovariano, que se sobrepõem em torno do ovo em várias camadas concêntricas – e são, consequentemente, muito mais fáceis de detectar e observar com um microscópio ainda muito simples. Encontrar o verdadeiro ovo do mamífero, micrométrico e completamente transparente, revelou-se uma tarefa tão espinhosa que só chegou à sua conclusão definitiva com a vivissecção das cadelas de Ernst van Baer, já na segunda metade do século XIX.
No século XVII, estando agora consensualmente estabelecido que todos os mamíferos provinham de ovos, os primeiros grandes preformacionistas assumiram-se todos, muito logicamente, como ovistas: na sua explicação do modelo reprodutivo, Deus encaixara dentro do primeiro ovo de cada fêmea todas as gerações de todos os organismos que haviam de vir. Alguns eram do século masculino e não participavam na perpetuação das linhagens: o seu papel era antes, através da aura seminal libertada pelo sémen depois da cópula, acordar a miniatura no ovo para que ela se desenroscasse e crescesse. Mas os do sexo feminino tinham ovários, dentro desses ovários estavam ovos, e dentro desses ovos estava preformada a geração seguinte, com a outra geração já preformada dentro dos seus ovos, nos seus ovários.

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