A hipótese da boneca russa: a Revolução Científica e o primeiro conceito de genética
No domínio das Ciências Naturais, a Revolução Científica do século XVII foi profundamente marcada pela entrada em cena do microscópio como instrumento de análise do mundo vivo. Depois de uns primeiros cinquenta anos de estudos pouco gratificantes, marcados por muito poucas publicações referentes a observações extremamente limitadas, as lentes e o entendimento do seu uso evoluíram o suficiente para permitirem uma subsequente explosão de publicações com observações francamente reveladoras, executadas por naturalistas como o inglês Robert Hooke, o italiano Marcello Malpighi, ou os holandeses Jan Swammerdam e Antoni van Leeuwenhoek, entre outros. Este conjunto de observações, além de ter surtido um efeito de grande impacto religioso junto da comunidade letrada do período, deixou claro e inquestionável o que de início não passava de uma hipótese de trabalho sedutora: abaixo do limite de resolução do olho humano, existia, de facto, todo um mundo diminuto que estava tão vivo como o nosso, e como o nosso tão perfeitamente organizado, senão mais organizado ainda. Esta certeza, radicalmente nova, foi a alavanca que permitiu aos naturalistas contemporâneos de Descartes libertarem a reprodução do seu venerando espartilho aristotélico.
De facto, até este período, a explicação preferida para o fenómeno da reprodução não evoluíra muito desde as propostas de Aristóteles no século III A c: dentro do útero feminino, existiria um coágulo de sangue inerte e amorfo, sem qualquer capacidade de organização ou animação internas, mas destinado a fornecer a matéria-prima para a escultura da progenia quando fosse acordado, exactamente como no beijo que o príncipe dá à Bela Adormecida, pela chegada do sémen ao útero depois da cópula. Aristóteles chegara ao ponto de equiparar o sémen à alma, uma vez que nem havia necessidade de contacto físico entre o coágulo materno e a contribuição paterna para desencadear a reprodução embrionária: seria antes um espírito emanado do sémen, a essência que desde então passou a ser descrita como a aura seminal, que animava o coágulo de vida, começava a modelá-lo para vir a formar um feto, e lhe conferia as características da espécie a que pertencia.
A este modelo vitalista e baseado nas forças invisíveis que o espírito da Revolução Científica combatia com a contraposição de modelos físicos e matemáticos compreensíveis e bem estabelecidos, em meados do século XVII o padre cartesiano francês Nicolas Malebranche contrapropõe, logo no início do seu tratado em seis volumes A la Recherche de la Vérité, na secção dedicada à visão e tomando como base de argumentação as recentes descobertas microscópicas, a teoria da Preformação: durante os primeiros seis dias da Criação, Deus, de cada vez que criou o primeiro organismo de cada espécie animal ou vegetal, encaixou dentro dos seus órgãos genitais, todos encaixados uns dentro dos outros e em tamanhos mais e mais diminutos, exactamente como numa boneca russa, todos os organismos das gerações subsequentes que haviam de vir a nascer e viver até à chamada conflagração final, que assinalaria o fim do mundo. Desta forma, toda a vida destinada a existir à superfície da Terra tinha sido criada toda de uma vez, num acto único, já com as suas características perfeitamente definidas, e limitava-se a aguardar pacientemente o sinal de um qualquer despertador também ele pré-programado por Deus para se desenroscar, começar a crescer, ganhar as proporções de um feto típico daquela espécie, e por fim nascer. Ao nascer, esse animal ou planta tinha os seus orgãos sexuais próprios, e dentro deles estavam guardados os organismos da geração seguinte, já com os que se lhes seguiriam enroscados lá dentro, e assim por diante.
Este modelo é extremamente sedutor para o espírito da Revolução Científica devido ao seu carácter estritamente mecânico, sem intervenções de espíritos invisíveis nem fenómenos inexplicáveis; pela possibilidade permitida de explicar a progressão da vida em termos de sequências numéricas e fracções, absolutamente na linha do furor mathematicus ou quantumphenia que varria a Europa; e mais ainda pela sua conformidade com o Deus-relojoeiro de Descartes, que cria o mundo como um mecanismo de relógio perfeito e sem falhas, dá corda ao relógio, desencadeia todos os acontecimentos terrestres, e, a partir daí, nunca mais volta a interferir com a Sua criação. Além dito, a preformação fornecia explicações científicas para mistérios religiosos, e podia até funcionar como um argumento de legitimidade social. Se todos os seres humanos tinham estado encaixados dentro de um ovo primordial, e portanto provinham todos da mesma mãe, tornava-se por fim cientificamente incontornável que todos os homens eram mesmo irmãos, conforme Jesus afirmara. Por outro lado, se todas as gerações tinham sido pre-programadas por Deus, não havia razão para ninguém tentar alterar o seu destino: por vontade divina, os reis descendiam de linhagens de reis, tal como os servos descendiam de linhagens de servos.
Um outro factor explicativo que, no seu tempo, torna a preformação tão sedutora , é a resposta ao problema da continuidade específica, até então sistematicamente sem resposta: como é que cada novo embrião de cada espécie sabe, desde o início, a que espécie é que pertence? Por que é que os coelhos geram sempre coelhos e as avestruzes geram sempre avestruzes? Por que é que nunca nascem crocodilos dos ovos dos pintos, nem rinocerontes da barriga das éguas? Se fora Deus a organizar todo o encaixe, devidamente organizado por espécie, a questão deixava logicamente de se por.
No domínio das Ciências Naturais, a Revolução Científica do século XVII foi profundamente marcada pela entrada em cena do microscópio como instrumento de análise do mundo vivo. Depois de uns primeiros cinquenta anos de estudos pouco gratificantes, marcados por muito poucas publicações referentes a observações extremamente limitadas, as lentes e o entendimento do seu uso evoluíram o suficiente para permitirem uma subsequente explosão de publicações com observações francamente reveladoras, executadas por naturalistas como o inglês Robert Hooke, o italiano Marcello Malpighi, ou os holandeses Jan Swammerdam e Antoni van Leeuwenhoek, entre outros. Este conjunto de observações, além de ter surtido um efeito de grande impacto religioso junto da comunidade letrada do período, deixou claro e inquestionável o que de início não passava de uma hipótese de trabalho sedutora: abaixo do limite de resolução do olho humano, existia, de facto, todo um mundo diminuto que estava tão vivo como o nosso, e como o nosso tão perfeitamente organizado, senão mais organizado ainda. Esta certeza, radicalmente nova, foi a alavanca que permitiu aos naturalistas contemporâneos de Descartes libertarem a reprodução do seu venerando espartilho aristotélico.
De facto, até este período, a explicação preferida para o fenómeno da reprodução não evoluíra muito desde as propostas de Aristóteles no século III A c: dentro do útero feminino, existiria um coágulo de sangue inerte e amorfo, sem qualquer capacidade de organização ou animação internas, mas destinado a fornecer a matéria-prima para a escultura da progenia quando fosse acordado, exactamente como no beijo que o príncipe dá à Bela Adormecida, pela chegada do sémen ao útero depois da cópula. Aristóteles chegara ao ponto de equiparar o sémen à alma, uma vez que nem havia necessidade de contacto físico entre o coágulo materno e a contribuição paterna para desencadear a reprodução embrionária: seria antes um espírito emanado do sémen, a essência que desde então passou a ser descrita como a aura seminal, que animava o coágulo de vida, começava a modelá-lo para vir a formar um feto, e lhe conferia as características da espécie a que pertencia.
A este modelo vitalista e baseado nas forças invisíveis que o espírito da Revolução Científica combatia com a contraposição de modelos físicos e matemáticos compreensíveis e bem estabelecidos, em meados do século XVII o padre cartesiano francês Nicolas Malebranche contrapropõe, logo no início do seu tratado em seis volumes A la Recherche de la Vérité, na secção dedicada à visão e tomando como base de argumentação as recentes descobertas microscópicas, a teoria da Preformação: durante os primeiros seis dias da Criação, Deus, de cada vez que criou o primeiro organismo de cada espécie animal ou vegetal, encaixou dentro dos seus órgãos genitais, todos encaixados uns dentro dos outros e em tamanhos mais e mais diminutos, exactamente como numa boneca russa, todos os organismos das gerações subsequentes que haviam de vir a nascer e viver até à chamada conflagração final, que assinalaria o fim do mundo. Desta forma, toda a vida destinada a existir à superfície da Terra tinha sido criada toda de uma vez, num acto único, já com as suas características perfeitamente definidas, e limitava-se a aguardar pacientemente o sinal de um qualquer despertador também ele pré-programado por Deus para se desenroscar, começar a crescer, ganhar as proporções de um feto típico daquela espécie, e por fim nascer. Ao nascer, esse animal ou planta tinha os seus orgãos sexuais próprios, e dentro deles estavam guardados os organismos da geração seguinte, já com os que se lhes seguiriam enroscados lá dentro, e assim por diante.
Este modelo é extremamente sedutor para o espírito da Revolução Científica devido ao seu carácter estritamente mecânico, sem intervenções de espíritos invisíveis nem fenómenos inexplicáveis; pela possibilidade permitida de explicar a progressão da vida em termos de sequências numéricas e fracções, absolutamente na linha do furor mathematicus ou quantumphenia que varria a Europa; e mais ainda pela sua conformidade com o Deus-relojoeiro de Descartes, que cria o mundo como um mecanismo de relógio perfeito e sem falhas, dá corda ao relógio, desencadeia todos os acontecimentos terrestres, e, a partir daí, nunca mais volta a interferir com a Sua criação. Além dito, a preformação fornecia explicações científicas para mistérios religiosos, e podia até funcionar como um argumento de legitimidade social. Se todos os seres humanos tinham estado encaixados dentro de um ovo primordial, e portanto provinham todos da mesma mãe, tornava-se por fim cientificamente incontornável que todos os homens eram mesmo irmãos, conforme Jesus afirmara. Por outro lado, se todas as gerações tinham sido pre-programadas por Deus, não havia razão para ninguém tentar alterar o seu destino: por vontade divina, os reis descendiam de linhagens de reis, tal como os servos descendiam de linhagens de servos.
Um outro factor explicativo que, no seu tempo, torna a preformação tão sedutora , é a resposta ao problema da continuidade específica, até então sistematicamente sem resposta: como é que cada novo embrião de cada espécie sabe, desde o início, a que espécie é que pertence? Por que é que os coelhos geram sempre coelhos e as avestruzes geram sempre avestruzes? Por que é que nunca nascem crocodilos dos ovos dos pintos, nem rinocerontes da barriga das éguas? Se fora Deus a organizar todo o encaixe, devidamente organizado por espécie, a questão deixava logicamente de se por.
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