A hipótese da boneca russa: a Revolução Científica e o primeiro conceito de genética
O problema é que, estando-se em plena fase de euforia no respeitante á utilização do microscópio, era apenas uma questão de tempo até que alguém observasse uma gota de sémen debaixo das lentes. Isto aconteceu cerca de vinte anos depois do estabelecimento da preformação na sua versão ovista, muito provavelmente no âmbito das observações do microscopista holandês Antoni van Leeuwenhoek. Num desenho enviado para as Transactions of the Royal Academy of Science, Leeuwenhoek apresenta desenhos de vários “Vermes espermáticos” observados em diferentes gotas de sémen, incluindo sémen de galo, de lagarto, de boi, e de humano (que o autor explica ser o seu próprio, obtido “por vias absolutamente naturais”). Estes “animálculos”, aparentemente, estão presentes no sémen de todos os animais, podendo variar a configuração das cabeças mas mantendo sempre o mesmo aspecto vermiforme e as longas caudas, sempre em movimento.
A descoberta do espermatozóide levantou aos preformacionistas uma possibilidade aliciante: por que não mudar o género do portador das linhagens? Por que não considerar que Deus, ao criar o homem, encaixara toda a sua descendência no testículo de Adão, e não no ovário de Eva? Sendo à época a mulher ainda um ser humano considerado de papel secundário e subserviente, esta escolha de Deus parecia ainda mais correcta, e certamente melhor ponderada. Foi assim que apareceram os hoje chamados “espermistas”, que na época se referiam a si próprios como animalculistas: os que defendiam que era dentro da cabeça do “verme seminal” que Deus encaixara toda a progenia de todas as espécies, do princípio ao fim dos tempos. O ovo, neste caso, teria apenas o papel da terra fértil onde se implanta à semente, fornecendo à criatura miniatural que lá entrasse dentro as condições de nutrição e protecção que lhe permitiriam crescer até nascer.
Devido às suas características extremamente curiosas e divertidas, incluindo o seu movimento constante e o seu aspecto de pequeno ser vivo, o espermatozóides foram à época extremamente observados e largamente debatidos, partindo-se sempre do princípio de que constituíam verdadeiros animais. Assim, foram publicadas ilustrações de espermatozóides a dormir, espermatozóides a copular, espermatozóides a nascerem de ovos, sistemas circulatórios, bolbos cefálicos, e até o desenvolvimento do seu tubo digestivo com todos os pormenores.
Dentro deste contexto, não é de admirar que um colega dado a partidas tenha tentado enganar outro. O geógrafo francês François de Plantade, Dalenpatius na literatura, mandou a Leeuwenhoek um desenho das pequeninas criaturas humanas que garantia ter visto dentro do espermatozóide humano, já completamente vestidas, com barbas, chapéu e botas, afirmando que descobrira o fenómeno quando “um deles” nadara até ao cimo da gota e despira a pele que o envolvia., numa analogia nítida com os fenómenos da metamorfose dos insectos. Leeuwenhoek, claro, não se deixou enganar: mandou o desenho para a Royal Society como a brincadeira que era, aproveitando por criticar Dalenpatius pela sua descrição errónea do sistema circulatório do espermatozóide, e chamando a atenção para os erros em que podemos incorrer quando tiramos ilações demasiado apressadas das nossas observações.
No entanto, a semente da ideia mais apelativa de todas ficara plantada: alguma vez conseguiríamos observar o homenzinho minúsculo que estaria dentro do espermatozóide humano? O desenho mais famoso que reflecte este anseio é da autoria de outro microscopista holandês, Nicolas Hartsoeker, e figura das últimas páginas do seu monumental Traité de Dioptrique, sobre as possibilidades das lentes telescópicas e microscópicas. O famoso espermatozóide de Hartsoeker, ao contrário dosa de Dalenpatius, tem a cauda bem proporcionada em relação ao tamanho da cabeça. E, dentro da cabeça, um posição fetal, uma criança com a cabeça ainda muito grande aguarda a sua vez de ser chamada à existência. Ao contrário do que afirmam alguns estudiosos apressados, Hartsoeker nunca afirmou ter observado semelhante criatura: escreveu apenas, ao lado da figura, que era muito provável que, com melhores microscópicas, uma observação semelhante àquela se tornasse possível.
No entanto, passadas as primeiras décadas de euforia espermista, a teoria começou a caiu em desgraça, muito mais depressa que o ovismo. Nesta decadência acelerada, há vários factores que se conjugam.
Em primeiro lugar, os números desencadeados pelo espermismo são incompatíveis com a matemática do século XVII. Há milhares de espermatozóides em cada ejaculado, todos eles muito pequenos, e todos eles, supostamente, com as gerações quer nascerão e viverão até ao fim dos tempos encaixadas na cabeça. O tamanho destas criaturinhas torna-se rapidamente insuportavelmente pequeno, mesmo não se considerando um limite inferior de tamanho para a organização da vida. A certa altura, Hartsoeker decide fazer um cálculo interessante: que tamanho teriam os coelhos que estão agora vivos na Holanda quando estavam encaixados dentro do primeiro coelho que Deus criou? As suas contas, tendo em conta a pequenez do espermatozóide e a velocidade a que se reproduzem os coelhos, levaram-no a que hoje, em matemática da segunda metade do século XX, se chama um “número impossível” ou um “googol”: valores que expressam fracções de valores tão dispares como o tamanho do electrão comparado com o tamanho do universo. Isto, para o século XVII, era pensar o impensável. Atormentado, Hartsoeker escreveu uma frase lindíssima, digna de figurar em qualquer colectânea de citações sobre as aflições do investigador:
“J'aimerais bienm étudier la réporoduction, mais qu'est-ce que l'on peut faire d'une chose qui est envelopée de ténèbres si épaisses?”
Com estas palavras, desistiu de endossar o espermismo, deixou de acreditar na preformação, e nunca mais quis fazer observações microscópicas.
O segundo grande problema do espermismo era exactamente o da natureza animal que os seus progenitores tinham tomado como certa para o veiculo das gerações encaixadas. Eles próprios se referiam ao espermatozóide como “verme espermático”. O termo “espermatozóide” só foi cunhado por van Baer no século XIX, quando se conhecia consensualmente a identidade deste “bicho” como uma célula, e no entanto a associação ao parasita seminal persiste: “espermatozóide” significa qualquer coisa como “animal no sémen”. Agora, estaria a sociedade do primeiro tempo da microscopia pronta para admitir que provinha de um verme? Recordemos que, no século XIX, Charles Darwin provocou um estremecimento tremendo nos pilares da religião e da organização social do seu tempo ao ousar sugerir que o homem descende do macaco. Agora imaginemos, dois séculos antes, ter que admitir que o homem descende do verme. O mesmo verme que nos come depois de mortos, ainda por cima. “Oh que triste metamorfose”, escreveu um comentador da época. E a resistência à nossa origem vermífuga ficou largamente registada em panfletos, ensaios, discursos, cartas e sermões.
O terceiro factor foi provavelmente o mais devastador de todos, porque as suas implicações éticas e morais eram extremamente complexas para uma sociedade inquestionadamente cristã. Se existiam milhares de espermatozóides num ejaculado humano, mas se só um conseguia penetrar no avo (pois que só nascia uma criança de cada vez, no máximo duas), o que é que acontecia a todos os infelizes que não tinham para onde ir crescer e alimentar-se, todos eles já seres humanos em miniatura, todos eles, portanto, com alma? Por que razão havia Deus de criar milhares de seres humanos para depois os matar antes mesmo de nascerem? Não fora este mesmo Deus quem castigara Onan logo no início do Livro do Génesis pelo grave pecado do desperdício da semente? E, afinal, para cada geração, admitia a ocorrência de um verdadeiro massacre de inocentes? É evidente que os espermistas estiveram debaixo de fogo cerrado para resolverem este problema, porque todos eles se pronunciam a este respeito. Alguns, como Leeuwenhoek, tentam desdramatizar a comoção recordando-nos que a Natureza é pródiga em tudo o que faz, e também cria centenas de sementes nas maçãs para delas, se tanto, nascer uma nova macieira. O problema é que as maçãs não têm alma. Hartsoeker tenta descrever um cenário em que todos os animálculos que não conseguissem entrar no ovo perderiam os seus revestimentos externos, tornando-se extremamente leves e quase incorpóreos, flutuando depois no ar até conseguirem voltar a entrar para dentro do corpo de um animal da sua espécie. Se fosse um macho, desceriam até aos testículos, recuperariam os seus revestimentos, e tentariam uma nova oportunidade. Se fosse uma fêmea, voltavam a abandonar o organismo por qualquer orifício acessível. Nalguns casos podiam confundir-se sobre o género que os albergava, resultando daqui o nascimento de hermafroditas. Outros autores congeminam cenários semelhantes, uns mais criativos do que outros, mas todos vocacionados para tranquilizar as hostes com a garantia de que não há qualquer espécie de massacre de inocentes. Claro que nenhuma destas explicações foi particularmente bem sucedida, e o espermismo começou rapidamente a perder a adesão.
O problema é que, estando-se em plena fase de euforia no respeitante á utilização do microscópio, era apenas uma questão de tempo até que alguém observasse uma gota de sémen debaixo das lentes. Isto aconteceu cerca de vinte anos depois do estabelecimento da preformação na sua versão ovista, muito provavelmente no âmbito das observações do microscopista holandês Antoni van Leeuwenhoek. Num desenho enviado para as Transactions of the Royal Academy of Science, Leeuwenhoek apresenta desenhos de vários “Vermes espermáticos” observados em diferentes gotas de sémen, incluindo sémen de galo, de lagarto, de boi, e de humano (que o autor explica ser o seu próprio, obtido “por vias absolutamente naturais”). Estes “animálculos”, aparentemente, estão presentes no sémen de todos os animais, podendo variar a configuração das cabeças mas mantendo sempre o mesmo aspecto vermiforme e as longas caudas, sempre em movimento.
A descoberta do espermatozóide levantou aos preformacionistas uma possibilidade aliciante: por que não mudar o género do portador das linhagens? Por que não considerar que Deus, ao criar o homem, encaixara toda a sua descendência no testículo de Adão, e não no ovário de Eva? Sendo à época a mulher ainda um ser humano considerado de papel secundário e subserviente, esta escolha de Deus parecia ainda mais correcta, e certamente melhor ponderada. Foi assim que apareceram os hoje chamados “espermistas”, que na época se referiam a si próprios como animalculistas: os que defendiam que era dentro da cabeça do “verme seminal” que Deus encaixara toda a progenia de todas as espécies, do princípio ao fim dos tempos. O ovo, neste caso, teria apenas o papel da terra fértil onde se implanta à semente, fornecendo à criatura miniatural que lá entrasse dentro as condições de nutrição e protecção que lhe permitiriam crescer até nascer.
Devido às suas características extremamente curiosas e divertidas, incluindo o seu movimento constante e o seu aspecto de pequeno ser vivo, o espermatozóides foram à época extremamente observados e largamente debatidos, partindo-se sempre do princípio de que constituíam verdadeiros animais. Assim, foram publicadas ilustrações de espermatozóides a dormir, espermatozóides a copular, espermatozóides a nascerem de ovos, sistemas circulatórios, bolbos cefálicos, e até o desenvolvimento do seu tubo digestivo com todos os pormenores.
Dentro deste contexto, não é de admirar que um colega dado a partidas tenha tentado enganar outro. O geógrafo francês François de Plantade, Dalenpatius na literatura, mandou a Leeuwenhoek um desenho das pequeninas criaturas humanas que garantia ter visto dentro do espermatozóide humano, já completamente vestidas, com barbas, chapéu e botas, afirmando que descobrira o fenómeno quando “um deles” nadara até ao cimo da gota e despira a pele que o envolvia., numa analogia nítida com os fenómenos da metamorfose dos insectos. Leeuwenhoek, claro, não se deixou enganar: mandou o desenho para a Royal Society como a brincadeira que era, aproveitando por criticar Dalenpatius pela sua descrição errónea do sistema circulatório do espermatozóide, e chamando a atenção para os erros em que podemos incorrer quando tiramos ilações demasiado apressadas das nossas observações.
No entanto, a semente da ideia mais apelativa de todas ficara plantada: alguma vez conseguiríamos observar o homenzinho minúsculo que estaria dentro do espermatozóide humano? O desenho mais famoso que reflecte este anseio é da autoria de outro microscopista holandês, Nicolas Hartsoeker, e figura das últimas páginas do seu monumental Traité de Dioptrique, sobre as possibilidades das lentes telescópicas e microscópicas. O famoso espermatozóide de Hartsoeker, ao contrário dosa de Dalenpatius, tem a cauda bem proporcionada em relação ao tamanho da cabeça. E, dentro da cabeça, um posição fetal, uma criança com a cabeça ainda muito grande aguarda a sua vez de ser chamada à existência. Ao contrário do que afirmam alguns estudiosos apressados, Hartsoeker nunca afirmou ter observado semelhante criatura: escreveu apenas, ao lado da figura, que era muito provável que, com melhores microscópicas, uma observação semelhante àquela se tornasse possível.
No entanto, passadas as primeiras décadas de euforia espermista, a teoria começou a caiu em desgraça, muito mais depressa que o ovismo. Nesta decadência acelerada, há vários factores que se conjugam.
Em primeiro lugar, os números desencadeados pelo espermismo são incompatíveis com a matemática do século XVII. Há milhares de espermatozóides em cada ejaculado, todos eles muito pequenos, e todos eles, supostamente, com as gerações quer nascerão e viverão até ao fim dos tempos encaixadas na cabeça. O tamanho destas criaturinhas torna-se rapidamente insuportavelmente pequeno, mesmo não se considerando um limite inferior de tamanho para a organização da vida. A certa altura, Hartsoeker decide fazer um cálculo interessante: que tamanho teriam os coelhos que estão agora vivos na Holanda quando estavam encaixados dentro do primeiro coelho que Deus criou? As suas contas, tendo em conta a pequenez do espermatozóide e a velocidade a que se reproduzem os coelhos, levaram-no a que hoje, em matemática da segunda metade do século XX, se chama um “número impossível” ou um “googol”: valores que expressam fracções de valores tão dispares como o tamanho do electrão comparado com o tamanho do universo. Isto, para o século XVII, era pensar o impensável. Atormentado, Hartsoeker escreveu uma frase lindíssima, digna de figurar em qualquer colectânea de citações sobre as aflições do investigador:
“J'aimerais bienm étudier la réporoduction, mais qu'est-ce que l'on peut faire d'une chose qui est envelopée de ténèbres si épaisses?”
Com estas palavras, desistiu de endossar o espermismo, deixou de acreditar na preformação, e nunca mais quis fazer observações microscópicas.
O segundo grande problema do espermismo era exactamente o da natureza animal que os seus progenitores tinham tomado como certa para o veiculo das gerações encaixadas. Eles próprios se referiam ao espermatozóide como “verme espermático”. O termo “espermatozóide” só foi cunhado por van Baer no século XIX, quando se conhecia consensualmente a identidade deste “bicho” como uma célula, e no entanto a associação ao parasita seminal persiste: “espermatozóide” significa qualquer coisa como “animal no sémen”. Agora, estaria a sociedade do primeiro tempo da microscopia pronta para admitir que provinha de um verme? Recordemos que, no século XIX, Charles Darwin provocou um estremecimento tremendo nos pilares da religião e da organização social do seu tempo ao ousar sugerir que o homem descende do macaco. Agora imaginemos, dois séculos antes, ter que admitir que o homem descende do verme. O mesmo verme que nos come depois de mortos, ainda por cima. “Oh que triste metamorfose”, escreveu um comentador da época. E a resistência à nossa origem vermífuga ficou largamente registada em panfletos, ensaios, discursos, cartas e sermões.
O terceiro factor foi provavelmente o mais devastador de todos, porque as suas implicações éticas e morais eram extremamente complexas para uma sociedade inquestionadamente cristã. Se existiam milhares de espermatozóides num ejaculado humano, mas se só um conseguia penetrar no avo (pois que só nascia uma criança de cada vez, no máximo duas), o que é que acontecia a todos os infelizes que não tinham para onde ir crescer e alimentar-se, todos eles já seres humanos em miniatura, todos eles, portanto, com alma? Por que razão havia Deus de criar milhares de seres humanos para depois os matar antes mesmo de nascerem? Não fora este mesmo Deus quem castigara Onan logo no início do Livro do Génesis pelo grave pecado do desperdício da semente? E, afinal, para cada geração, admitia a ocorrência de um verdadeiro massacre de inocentes? É evidente que os espermistas estiveram debaixo de fogo cerrado para resolverem este problema, porque todos eles se pronunciam a este respeito. Alguns, como Leeuwenhoek, tentam desdramatizar a comoção recordando-nos que a Natureza é pródiga em tudo o que faz, e também cria centenas de sementes nas maçãs para delas, se tanto, nascer uma nova macieira. O problema é que as maçãs não têm alma. Hartsoeker tenta descrever um cenário em que todos os animálculos que não conseguissem entrar no ovo perderiam os seus revestimentos externos, tornando-se extremamente leves e quase incorpóreos, flutuando depois no ar até conseguirem voltar a entrar para dentro do corpo de um animal da sua espécie. Se fosse um macho, desceriam até aos testículos, recuperariam os seus revestimentos, e tentariam uma nova oportunidade. Se fosse uma fêmea, voltavam a abandonar o organismo por qualquer orifício acessível. Nalguns casos podiam confundir-se sobre o género que os albergava, resultando daqui o nascimento de hermafroditas. Outros autores congeminam cenários semelhantes, uns mais criativos do que outros, mas todos vocacionados para tranquilizar as hostes com a garantia de que não há qualquer espécie de massacre de inocentes. Claro que nenhuma destas explicações foi particularmente bem sucedida, e o espermismo começou rapidamente a perder a adesão.
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