22/01/2012

ESPERMATOZOIDES: Tudo é possível

ESPERMATOZÓIDES POR ENCOMENDA




Tinham que ser os japoneses a chegar lá primeiro. Andava o Ocidente inteiro atrás disto há tanto tempo.

Aquilo de que o mundo tem falado nas últimas semanas sobre os espermatozóides fabricados em laboratório, e que foi publicado na Nature por Takuya Sato e colaboradores , descreve-se num único parágrafo e até parece que nos apanha completamente de surpresa:

“A espermatogénese é um dos processos de proliferação e diferenciação celulares sequenciais em todo o corpo mais longos do mundo animal, com a duração de mais de um mês para se passar das células estaminais espermatogoniais à formação dos espermatozóides através da meiose . Por isso mesmo, o processo completo nunca foi reproduzido in vitro nos mamíferos, nem em outras espécies, com a rara excepção de alguns tipos particulares de peixes. Neste artigo mostramos que tecidos neonatais de testículos de ratinho que só contêm células estaminais de espermatogónias primitivas podem produzir espermatídeos e espermatozóides in vitro. Estes espermatídeos e espermatozóides deram origem a progenia saudável e competente do ponto de vista reprodutivo, obtida por microinseminação. Adicionalmente, os tecidos testiculares neonatais foram criopreservados, e, depois de descongelados, mostraram in vitro uma espermatogénese completa. O nosso método de cultura de órgãos poderá ser aplicado a uma grande variedade de espécies de mamíferos, que servirão como plataforma para futura aplicação clínica bem como para a nossa compreensão da mecânica da espermatogénese.”

Isto, tudo baralhado e voltado a dar, quer dizer que os japoneses conseguiram produzir em laboratório espermatozóides perfeitamente funcionais, que deram origem a ratinhos igualmente funcionais, e, mais ainda, saudavelmente férteis. E sim, é verdade que há muitos mistérios da biologia da reprodução que poderão ser desvendados de posse destas técnicas. Mas o que é que tudo isto pode significar para as pessoas? Devemos estar excitados? Ou alarmados? Ou indiferentes?

Antes de mais nada, devemos esclarecer que os japoneses estão a ser um bocadinho arrogantes com este “nunca antes se fez nada no mamífero”. Na realidade, por acaso até já se tinha feito muita coisa. Tudo o que tornou possível chegarmos aqui. Eles, pelos vistos, apenas desenvolveram um método de cultura de órgãos melhor do que tudo o que existia antes. O que é importante, claro, mas é uma ínfima parte.

Senão, vejamos.

Há dois anos atrás, as secções de saúde e medicina dos jornais e revistas do mundo inteiro informaram-nos de que uma equipa da Newcastle University, no Reino Unido, tinha conseguido criar espermatozóides in vitro a partir de células estaminais. A sério. Tinham separado células masculinas com um laser, tinham-nas posto em cultura com os ingredientes adequados para induzir a formação de um espermatozóide, tinham visto começar a formar-se a cabeça, depois o rudimento da cauda. Eh pá. Que frisson. É que um espermatozóide, tal como um ovo, não é uma célula como os outros milhares de variações que temos no nosso corpo. Por alguma razão estes dois parceiros têm o nome específico de células sexuais, enquanto as outras todas são células somáticas. É que são duas células muito especiais, uma específica dos machos e outra característica das fêmeas: têm por função fundirem-se uma com a outra, por forma a dar origem a um novo organismo com uma nova informação genética saída da mistura aleatória das duas percursoras, absolutamente única e irrepetível. Já se sabia que as células estaminais eram capazes de se diferenciarem enquanto diversos tipos de células somáticas. Mas diferenciarem-se enquanto uma célula sexual tão especializada como um espermatozóide… bem, isso é mesmo outra conversa.

Na altura, fez-se notar que os espermatozóides desenvolvidos in vitro não eram completamente iguais aos que se formam espontaneamente nos testículos. Tinham formas extravagantes, e moviam-se em ondulações caprichosas. Mas possuíam quatro características preciosas, daquelas que só uma célula sexual masculina pode e sabe ter. Em primeiro lugar, só possuíam metade dos cromossomas característicos dos animais da sua espécie – a outra metade vem do ovo, e repõe a combinação correcta ; só mesmo as células sexuais é que conseguem fazer isto, devido a um processo de divisão celular especialíssimo, que se chama meiose em vez de mitose. Segundo, tinham uma cabeça e uma cauda, imprescindíveis para o seu formato aerodinâmico extremamente competitivo. Terceiro, continham proteínas que são essenciais para a activação do ovo durante a fertilização . E, last but not least, nadavam: avançavam a bater a cauda, naquele movimento característico do espermatozóide que procura o ovo. Nada mau. Mas é que nada mau, mesmo.

As leis internacionais proíbem a utilização destes espermatozóides de laboratório para fertilização de ovos humanos, mas havia imensa coisa para aprender com eles: o processo de maturação de um espermatozóide no testículo é complexo, e, a bem dizer, inacessível. É preciso esperar quinze ou dezasseis anos até se formarem as primeiras espermatogónias, as células percursoras dos espermatozoides maduros que fertilizam o ovo. Com este sistema, podíamos assistir em directo e ao vivo ao desenvolvimento integral de um espermatozoide, uma célula extraordinariamente complexa, em não mais que três meses. Bem. Claro que houve polémica. Mas considerem-se só as possibilidades. Falou-se logo de cenários estimulantes, tais como utilizar células da pele de homens com cancro que a quimioterapia tornou estéreis para produzir espermatozóides em laboratório, inseminar com eles os ovos da companheira num processo rotineiro de fertilização in vitro, e assim permitir que estes pacientes se reproduzam à mesma. É só um exemplo. Falou-se de muito milagre da ciência que poderia tornar-se lugar-comum na medicina do futuro. O que interessa é que a biologia básica da reprodução avançou umas boas passadas com tudo isto.

Pouco depois, a mesma equipa conseguiu pôr os ratinhos a reproduzirem-se in vitro com espermatozóides concebidos desta maneira. É verdade que estes ratinhos morreram pouco depois. Mas o importante, aqui, é que chegaram mesmo a nascer. Depois de consultar a equipa sobre o significado profundo de tudo isto, a Comunicação Social acrescentou logo que, dentro de um máximo de dez anos, a mesma proeza poderia estender-se aos humanos, saltando assim por cima de todos os problemas dos homens estéreis – os ovos das suas mulheres seriam fertilizados com espermatozóides derivados das suas próprias células estaminais, e olhem. Os puristas que protestem. Nada pára a grande roda.

Melhor ainda, teoricamente não haveria qualquer problema em produzir espermatozóides derivados de células estaminais femininas – em última análise, tudo depende, apenas, dos estímulos e mensagens que estas células vão recebendo ao longo da sua maturação, e não há nenhum deles que não possa ser fornecido in vitro. Isto quer dizer que as mulheres que não gostam da companhia dos homens poderiam finalmente ter os seus filhos verdadeiramente descansadas, sem uma única interferência masculina ao longo de todo o processo. Enfim, vá. Isto é um bocado indigesto, mas é verdade. Depois de tudo bem considerado, não haveria absolutamente nenhuma razão de ordem estritamente técnica para esses espermatozóides não serem, até, fabricados a partir de células estaminais da própria mãe. Sim, é isso que estão a pensar. A senhora engravidava de si própria.

Claro que tudo isto é mais que proibido. O Human Fertilisasation and Embryology Act de 2008, que ainda ninguém revogou, proíbe a criação artificial de ovos e espermatozoides para tratamentos de infertililidade. Mas, como soe dizer-se, the heat is on. No Reino Unido, onde se deram há dois anos estes avanços impressionantes, um em cada sete casais tem problemas de reprodução. Isto são cerca de 3.5 milhões de pessoas. E. destas, um terço não tem filhos por problemas associados aos espermatozóides. E, reparem: é sempre possível argumentar que estas células curiosas derivadas das células estaminais não são verdadeiros espermatozóides… e portanto… se fôssemos usá-los… no que toca a infringir a lei… estão a ver?

Devo dizer que, para efeitos de investigação de biologia básica, acho tudo isto absolutamente fascinante. Mas há sempre o outro lado das coisas. No que toca a usar estes métodos para efeitos de reprodução, achei muita graça ao que disse, na altura, a senhora que dirigia o Comment on Reproductive Ethics na Grã Bretanha, uma tal Josephine Quintavalle. “Isto é o ser humano no seu mais maluco”, afirmou ela sem punhos de renda. “A mim parece-me que, a partir de um dado ponto, as pessoas têm que parar de brincar aos médicos e aceitar a infertilidade. A ciência deve ser totalmente ética e totalmente segura – e isto não é uma coisa nem outra”.

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