Dentro de um mesmo género, em flores que pertencem a espécies muito próximas, as diferenças de cor podem ser radicais – e é evidente que isso não acontece por acaso, porque estas coisas, na Natureza, não têm por hábito acontecer por acaso.
Vamos a um caso bem estudado:
o do género Solanum, em que a disseminação das sementes é feita tanto por morcegos como por aves. Pronto. Basta um pormenor destes para fazer toda a diferença. As flores em que as sementes são disseminadas pelos morcegos têm flores esverdeadas ou brancas, enquanto que as que são disseminadas pelas aves se desdobram em tons de vermelho vivo. As flores em que são os morcegos quem dissemina as sementes não desperdiçam nenhuma energia metabólica produzindo o que seria, para elas, um pigmento vermelho inútil: os morcegos são cegos, e portanto não é, obviamente, a cor das flores que os atrai. Nunca é demais recordar: a evolução funcionou toda, sempre, no sentido da eliminação de esforços inúteis.
Na última centena de milhões de anos, há um pormenor curioso que merece referência no domínio da co-evolução dos insectos e das plantas que se reproduzem através de flores. Já toda a gente ouviu falar do desenvolvimento de cores berrantes e chamativas, dos aromas, ou dos feitios dramáticos com que as flores atraem os insectos e as aves até aos seus órgãos sexuais: não deve faltar quem saiba que algumas flores chegam a imitar a forma da fêmea do insecto que assegura a disseminação das suas sementes. Agora, há certos tipos de frutos, de tons laranja e vermelho, que parecem só ter surgido algures nos últimos trinta milhões de anos, em simultâneo com a evolução da visão tricromática de macacos e primatas. Estes frutos, uma peça emblemática da dieta desses mesmos macacos, tornaram-se particularmente visíveis para os olhos tricromáticos no meio da folhagem emaranhada da selva; e as plantas, pelo seu lado, dependiam dos macacos para espalharem as sementes através das suas fezes. Ambos evoluíram em sintonia.
Até aqui, o raciocínio parece bater todo certo.
Não podemos é deixar de notar que algumas aves já tinham desenvolvido a visão tricromática muito antes dos macacos. Por que é que não se lançaram no processo de co-evolução com os frutos de tom laranja e vermelho?
Já vimos que esses frutos ainda nem sequer existiam antes da entrada em cena dos macacos e primatas que os procuram. Mas a verdadeira questão, aquela que mostra bem como a evolução trabalha, é que, mesmo que existissem, os frutos podiam não ser chamativos para as aves. Como já vimos, as plantas que se reproduzem através das flores desenvolveram dezenas de expedientes para assegurar a sua disseminação. A cor dos frutos podia perfeitamente ser para o dispêndio da energia da Natureza um expediente desnecessário, senão mesmo inútil. É que, neste caso concreto, o que está em causa como expediente reprodutivo é disseminar sementes através das fezes. E as fezes das aves têm muito menos probabilidades de encontrar um bom nicho no solo do que as dos primatas.
22/01/2012
APELO DA SELVA: Sobre as plantas boa onda e a eterna atracção humana pelos seus efeitos
Há bastante literatura produzida sobre esta temática, publicada por etnobotânicos, químicos e neurologistas de créditos mais que firmados, mas o que importa aqui reter é que todos esses autores descrevem, basicamente, um ponto comum e incontornável: como cada cultura do mundo descobriu plantas com poderes alucinogénicos, ou de qualquer outra forma intoxicantes, muitas vezes veneradas como sobrenaturais ou divinas.
Por exemplo.
O Velho Mundo não sabia nada sobre as poderosas drogas alucinogénicas da América Central – o ololiuhqui (a que os espanhóis chamaram semilla de la Virgen, semente da Virgem); o cogumelo psilocibíneo sagrado, teonanacatl, a carne de Deus (os seus constituintes activos também são derivados do ácido lisérgico, geralmente conhecido pelas iniciais LSD); e, no Norte do México, sobrepondo-se com o Sul dos Estados Unidos, os botões do cacto peyotl, às vezes chamados botões mescal (embora não tenham nada a ver com o mescal, a aguardente que se destila do agave).
Há produtos alucinogénicos ainda mais exóticos como a ayahuasca (a vinha da alma), feita com a vinha da Amazónia Banisteriopsis caapí, que William Burroughs e Allen Ginsberg descrevem em The Yage Letters; e os produtos ricos em triptamina – Virola, yopo, cojoba , todos com ingredientes quimicamente idênticos, e estruturalmente muito próximos do neurotransmissor designado por serotonina. Os padrões geométricos das decorações dos lugares sagrados de um grande número de culturas apresentam uma semelhança espantosa com as formas descritas para as enxaquecas extremas, iguais às das resultantes da ingestão de uma vasta panóplia de indutores de estados alterados de consciência.
Curiosamente, o trabalho dos arqueólogos mostra-nos que, na sua grande maioria, estas substâncias são consumidas pelos humano, desde os tempos pré-históricos. Se isto se passou de forma ritual ou de forma aleatória, é, na maioria dos casos, difícil de dizer. Terá este consumo ocorrido por acidente? Ou antes por tentativa e erro, na nossa tentativa constante de nos superarmos a nós próprios, mesmo quando ainda estamos dentro de umas cavernas inóspitas, sem grandes defesas contra o exterior?. E por que é que plantas tão botanicamente diferentes convergiram, por assim dizer, para compostos proteicos tão similares? E que papel desempenham estes compostos na vida da planta – serão meros produtos secundários do metabolismo, como é o caso do índigo, tão abundante no reino Vegetal? Ou serão usados para deter predadores venenosos, como a estricnina, ou outros alcalóides amargos? Ou desempenharão papeis essenciais nas próprias plantas?
Deus lá sabe.
Por exemplo.
O Velho Mundo não sabia nada sobre as poderosas drogas alucinogénicas da América Central – o ololiuhqui (a que os espanhóis chamaram semilla de la Virgen, semente da Virgem); o cogumelo psilocibíneo sagrado, teonanacatl, a carne de Deus (os seus constituintes activos também são derivados do ácido lisérgico, geralmente conhecido pelas iniciais LSD); e, no Norte do México, sobrepondo-se com o Sul dos Estados Unidos, os botões do cacto peyotl, às vezes chamados botões mescal (embora não tenham nada a ver com o mescal, a aguardente que se destila do agave).
Há produtos alucinogénicos ainda mais exóticos como a ayahuasca (a vinha da alma), feita com a vinha da Amazónia Banisteriopsis caapí, que William Burroughs e Allen Ginsberg descrevem em The Yage Letters; e os produtos ricos em triptamina – Virola, yopo, cojoba , todos com ingredientes quimicamente idênticos, e estruturalmente muito próximos do neurotransmissor designado por serotonina. Os padrões geométricos das decorações dos lugares sagrados de um grande número de culturas apresentam uma semelhança espantosa com as formas descritas para as enxaquecas extremas, iguais às das resultantes da ingestão de uma vasta panóplia de indutores de estados alterados de consciência.
Curiosamente, o trabalho dos arqueólogos mostra-nos que, na sua grande maioria, estas substâncias são consumidas pelos humano, desde os tempos pré-históricos. Se isto se passou de forma ritual ou de forma aleatória, é, na maioria dos casos, difícil de dizer. Terá este consumo ocorrido por acidente? Ou antes por tentativa e erro, na nossa tentativa constante de nos superarmos a nós próprios, mesmo quando ainda estamos dentro de umas cavernas inóspitas, sem grandes defesas contra o exterior?. E por que é que plantas tão botanicamente diferentes convergiram, por assim dizer, para compostos proteicos tão similares? E que papel desempenham estes compostos na vida da planta – serão meros produtos secundários do metabolismo, como é o caso do índigo, tão abundante no reino Vegetal? Ou serão usados para deter predadores venenosos, como a estricnina, ou outros alcalóides amargos? Ou desempenharão papeis essenciais nas próprias plantas?
Deus lá sabe.
APELO DA SELVA: Sobre a extinção da pereira abacate no estado selvagem
Sabemos que o desaparecimento da árvore do cacau na América Central no seu estado selvagem se deu muito cedo: há mais de dois mil anos que no México, o seu maior produtor natural, a árvore só cresce em plantações. É um fenómeno estranhíssimo, semelhante ao das tamareiras, que são típicas de habitats desérticos mas, nos nossos dias, só lá crescem se forem plantadas. Depois dão-se lindamente e desfazem-se em tâmaras, o que prova, se prova fosse preciso, que aquele é mesmo o habitat natural delas, a sua terra de origem, o tipo de solo e de clima para os quais foram modelados pelo processo lento e meticuloso da evolução. Mas, sozinhas, já não conseguem lá crescer.
Há dois milénios que acontece o mesmo com a árvore do cacau.
O que é que poderá ter causado o desaparecimento da árvore do cacau no estado selvagem, numa idade tão precoce da colonização humana da América Central? Por enquanto, não há resposta. Só se conhecem sugestões especulativas relacionadas com fenómenos semelhantes. O melhor de todos é, sem sombra de dúvida, o da incapacidade de reprodução natural da pereira abacate.
Há bastantes autores que defendem que a extinção quase total das pereiras abacate foi causada, há doze ou treze mil anos, pelo desaparecimento de um gigante chamado Toxodon, e de outros grandes mamíferos vegetarianos que seguiam o mesmo tipo de dieta, como as preguiças terrestres gigantes, os gliptodontes, ou os gonfotérios. Devido ao seu tamanho descomunal, estes bichos engoliam o abacate inteiro com o seu caroço enorme lá dentro, e depois defecavam estas sementes, intactas, em várias partes da floresta. Ora acontece que, com a extinção dos mamíferos gigantes, os animais mais pequenos, como o tapir, só podem mordiscar a casca e cuspi-la, falhando na tarefa imprescindível da distribuição das sementes inteiras e intocadas. Basicamente, tal como acontece com a tamareira, agora é só a agricultura humana que mantém vivas as pereiras abacate.
Ironicamente, para fechar o círculo numa demonstração perfeita de como se desencadeia o desequilíbrio de todo um ecossistema, pode muito bem ter sido também a própria intervenção humana que levou à extinção dos mamíferos herbívoros gigantes do Pleistoceno: eram animais lentos, pesados, com poucas defesas, e furiosamente cobiçados pelos caçadores.
Há dois milénios que acontece o mesmo com a árvore do cacau.
O que é que poderá ter causado o desaparecimento da árvore do cacau no estado selvagem, numa idade tão precoce da colonização humana da América Central? Por enquanto, não há resposta. Só se conhecem sugestões especulativas relacionadas com fenómenos semelhantes. O melhor de todos é, sem sombra de dúvida, o da incapacidade de reprodução natural da pereira abacate.
Há bastantes autores que defendem que a extinção quase total das pereiras abacate foi causada, há doze ou treze mil anos, pelo desaparecimento de um gigante chamado Toxodon, e de outros grandes mamíferos vegetarianos que seguiam o mesmo tipo de dieta, como as preguiças terrestres gigantes, os gliptodontes, ou os gonfotérios. Devido ao seu tamanho descomunal, estes bichos engoliam o abacate inteiro com o seu caroço enorme lá dentro, e depois defecavam estas sementes, intactas, em várias partes da floresta. Ora acontece que, com a extinção dos mamíferos gigantes, os animais mais pequenos, como o tapir, só podem mordiscar a casca e cuspi-la, falhando na tarefa imprescindível da distribuição das sementes inteiras e intocadas. Basicamente, tal como acontece com a tamareira, agora é só a agricultura humana que mantém vivas as pereiras abacate.
Ironicamente, para fechar o círculo numa demonstração perfeita de como se desencadeia o desequilíbrio de todo um ecossistema, pode muito bem ter sido também a própria intervenção humana que levou à extinção dos mamíferos herbívoros gigantes do Pleistoceno: eram animais lentos, pesados, com poucas defesas, e furiosamente cobiçados pelos caçadores.
ESPERMATOZOIDES: Tudo é possível
ESPERMATOZÓIDES POR ENCOMENDA
Tinham que ser os japoneses a chegar lá primeiro. Andava o Ocidente inteiro atrás disto há tanto tempo.
Aquilo de que o mundo tem falado nas últimas semanas sobre os espermatozóides fabricados em laboratório, e que foi publicado na Nature por Takuya Sato e colaboradores , descreve-se num único parágrafo e até parece que nos apanha completamente de surpresa:
“A espermatogénese é um dos processos de proliferação e diferenciação celulares sequenciais em todo o corpo mais longos do mundo animal, com a duração de mais de um mês para se passar das células estaminais espermatogoniais à formação dos espermatozóides através da meiose . Por isso mesmo, o processo completo nunca foi reproduzido in vitro nos mamíferos, nem em outras espécies, com a rara excepção de alguns tipos particulares de peixes. Neste artigo mostramos que tecidos neonatais de testículos de ratinho que só contêm células estaminais de espermatogónias primitivas podem produzir espermatídeos e espermatozóides in vitro. Estes espermatídeos e espermatozóides deram origem a progenia saudável e competente do ponto de vista reprodutivo, obtida por microinseminação. Adicionalmente, os tecidos testiculares neonatais foram criopreservados, e, depois de descongelados, mostraram in vitro uma espermatogénese completa. O nosso método de cultura de órgãos poderá ser aplicado a uma grande variedade de espécies de mamíferos, que servirão como plataforma para futura aplicação clínica bem como para a nossa compreensão da mecânica da espermatogénese.”
Isto, tudo baralhado e voltado a dar, quer dizer que os japoneses conseguiram produzir em laboratório espermatozóides perfeitamente funcionais, que deram origem a ratinhos igualmente funcionais, e, mais ainda, saudavelmente férteis. E sim, é verdade que há muitos mistérios da biologia da reprodução que poderão ser desvendados de posse destas técnicas. Mas o que é que tudo isto pode significar para as pessoas? Devemos estar excitados? Ou alarmados? Ou indiferentes?
Antes de mais nada, devemos esclarecer que os japoneses estão a ser um bocadinho arrogantes com este “nunca antes se fez nada no mamífero”. Na realidade, por acaso até já se tinha feito muita coisa. Tudo o que tornou possível chegarmos aqui. Eles, pelos vistos, apenas desenvolveram um método de cultura de órgãos melhor do que tudo o que existia antes. O que é importante, claro, mas é uma ínfima parte.
Senão, vejamos.
Há dois anos atrás, as secções de saúde e medicina dos jornais e revistas do mundo inteiro informaram-nos de que uma equipa da Newcastle University, no Reino Unido, tinha conseguido criar espermatozóides in vitro a partir de células estaminais. A sério. Tinham separado células masculinas com um laser, tinham-nas posto em cultura com os ingredientes adequados para induzir a formação de um espermatozóide, tinham visto começar a formar-se a cabeça, depois o rudimento da cauda. Eh pá. Que frisson. É que um espermatozóide, tal como um ovo, não é uma célula como os outros milhares de variações que temos no nosso corpo. Por alguma razão estes dois parceiros têm o nome específico de células sexuais, enquanto as outras todas são células somáticas. É que são duas células muito especiais, uma específica dos machos e outra característica das fêmeas: têm por função fundirem-se uma com a outra, por forma a dar origem a um novo organismo com uma nova informação genética saída da mistura aleatória das duas percursoras, absolutamente única e irrepetível. Já se sabia que as células estaminais eram capazes de se diferenciarem enquanto diversos tipos de células somáticas. Mas diferenciarem-se enquanto uma célula sexual tão especializada como um espermatozóide… bem, isso é mesmo outra conversa.
Na altura, fez-se notar que os espermatozóides desenvolvidos in vitro não eram completamente iguais aos que se formam espontaneamente nos testículos. Tinham formas extravagantes, e moviam-se em ondulações caprichosas. Mas possuíam quatro características preciosas, daquelas que só uma célula sexual masculina pode e sabe ter. Em primeiro lugar, só possuíam metade dos cromossomas característicos dos animais da sua espécie – a outra metade vem do ovo, e repõe a combinação correcta ; só mesmo as células sexuais é que conseguem fazer isto, devido a um processo de divisão celular especialíssimo, que se chama meiose em vez de mitose. Segundo, tinham uma cabeça e uma cauda, imprescindíveis para o seu formato aerodinâmico extremamente competitivo. Terceiro, continham proteínas que são essenciais para a activação do ovo durante a fertilização . E, last but not least, nadavam: avançavam a bater a cauda, naquele movimento característico do espermatozóide que procura o ovo. Nada mau. Mas é que nada mau, mesmo.
As leis internacionais proíbem a utilização destes espermatozóides de laboratório para fertilização de ovos humanos, mas havia imensa coisa para aprender com eles: o processo de maturação de um espermatozóide no testículo é complexo, e, a bem dizer, inacessível. É preciso esperar quinze ou dezasseis anos até se formarem as primeiras espermatogónias, as células percursoras dos espermatozoides maduros que fertilizam o ovo. Com este sistema, podíamos assistir em directo e ao vivo ao desenvolvimento integral de um espermatozoide, uma célula extraordinariamente complexa, em não mais que três meses. Bem. Claro que houve polémica. Mas considerem-se só as possibilidades. Falou-se logo de cenários estimulantes, tais como utilizar células da pele de homens com cancro que a quimioterapia tornou estéreis para produzir espermatozóides em laboratório, inseminar com eles os ovos da companheira num processo rotineiro de fertilização in vitro, e assim permitir que estes pacientes se reproduzam à mesma. É só um exemplo. Falou-se de muito milagre da ciência que poderia tornar-se lugar-comum na medicina do futuro. O que interessa é que a biologia básica da reprodução avançou umas boas passadas com tudo isto.
Pouco depois, a mesma equipa conseguiu pôr os ratinhos a reproduzirem-se in vitro com espermatozóides concebidos desta maneira. É verdade que estes ratinhos morreram pouco depois. Mas o importante, aqui, é que chegaram mesmo a nascer. Depois de consultar a equipa sobre o significado profundo de tudo isto, a Comunicação Social acrescentou logo que, dentro de um máximo de dez anos, a mesma proeza poderia estender-se aos humanos, saltando assim por cima de todos os problemas dos homens estéreis – os ovos das suas mulheres seriam fertilizados com espermatozóides derivados das suas próprias células estaminais, e olhem. Os puristas que protestem. Nada pára a grande roda.
Melhor ainda, teoricamente não haveria qualquer problema em produzir espermatozóides derivados de células estaminais femininas – em última análise, tudo depende, apenas, dos estímulos e mensagens que estas células vão recebendo ao longo da sua maturação, e não há nenhum deles que não possa ser fornecido in vitro. Isto quer dizer que as mulheres que não gostam da companhia dos homens poderiam finalmente ter os seus filhos verdadeiramente descansadas, sem uma única interferência masculina ao longo de todo o processo. Enfim, vá. Isto é um bocado indigesto, mas é verdade. Depois de tudo bem considerado, não haveria absolutamente nenhuma razão de ordem estritamente técnica para esses espermatozóides não serem, até, fabricados a partir de células estaminais da própria mãe. Sim, é isso que estão a pensar. A senhora engravidava de si própria.
Claro que tudo isto é mais que proibido. O Human Fertilisasation and Embryology Act de 2008, que ainda ninguém revogou, proíbe a criação artificial de ovos e espermatozoides para tratamentos de infertililidade. Mas, como soe dizer-se, the heat is on. No Reino Unido, onde se deram há dois anos estes avanços impressionantes, um em cada sete casais tem problemas de reprodução. Isto são cerca de 3.5 milhões de pessoas. E. destas, um terço não tem filhos por problemas associados aos espermatozóides. E, reparem: é sempre possível argumentar que estas células curiosas derivadas das células estaminais não são verdadeiros espermatozóides… e portanto… se fôssemos usá-los… no que toca a infringir a lei… estão a ver?
Devo dizer que, para efeitos de investigação de biologia básica, acho tudo isto absolutamente fascinante. Mas há sempre o outro lado das coisas. No que toca a usar estes métodos para efeitos de reprodução, achei muita graça ao que disse, na altura, a senhora que dirigia o Comment on Reproductive Ethics na Grã Bretanha, uma tal Josephine Quintavalle. “Isto é o ser humano no seu mais maluco”, afirmou ela sem punhos de renda. “A mim parece-me que, a partir de um dado ponto, as pessoas têm que parar de brincar aos médicos e aceitar a infertilidade. A ciência deve ser totalmente ética e totalmente segura – e isto não é uma coisa nem outra”.
Tinham que ser os japoneses a chegar lá primeiro. Andava o Ocidente inteiro atrás disto há tanto tempo.
Aquilo de que o mundo tem falado nas últimas semanas sobre os espermatozóides fabricados em laboratório, e que foi publicado na Nature por Takuya Sato e colaboradores , descreve-se num único parágrafo e até parece que nos apanha completamente de surpresa:
“A espermatogénese é um dos processos de proliferação e diferenciação celulares sequenciais em todo o corpo mais longos do mundo animal, com a duração de mais de um mês para se passar das células estaminais espermatogoniais à formação dos espermatozóides através da meiose . Por isso mesmo, o processo completo nunca foi reproduzido in vitro nos mamíferos, nem em outras espécies, com a rara excepção de alguns tipos particulares de peixes. Neste artigo mostramos que tecidos neonatais de testículos de ratinho que só contêm células estaminais de espermatogónias primitivas podem produzir espermatídeos e espermatozóides in vitro. Estes espermatídeos e espermatozóides deram origem a progenia saudável e competente do ponto de vista reprodutivo, obtida por microinseminação. Adicionalmente, os tecidos testiculares neonatais foram criopreservados, e, depois de descongelados, mostraram in vitro uma espermatogénese completa. O nosso método de cultura de órgãos poderá ser aplicado a uma grande variedade de espécies de mamíferos, que servirão como plataforma para futura aplicação clínica bem como para a nossa compreensão da mecânica da espermatogénese.”
Isto, tudo baralhado e voltado a dar, quer dizer que os japoneses conseguiram produzir em laboratório espermatozóides perfeitamente funcionais, que deram origem a ratinhos igualmente funcionais, e, mais ainda, saudavelmente férteis. E sim, é verdade que há muitos mistérios da biologia da reprodução que poderão ser desvendados de posse destas técnicas. Mas o que é que tudo isto pode significar para as pessoas? Devemos estar excitados? Ou alarmados? Ou indiferentes?
Antes de mais nada, devemos esclarecer que os japoneses estão a ser um bocadinho arrogantes com este “nunca antes se fez nada no mamífero”. Na realidade, por acaso até já se tinha feito muita coisa. Tudo o que tornou possível chegarmos aqui. Eles, pelos vistos, apenas desenvolveram um método de cultura de órgãos melhor do que tudo o que existia antes. O que é importante, claro, mas é uma ínfima parte.
Senão, vejamos.
Há dois anos atrás, as secções de saúde e medicina dos jornais e revistas do mundo inteiro informaram-nos de que uma equipa da Newcastle University, no Reino Unido, tinha conseguido criar espermatozóides in vitro a partir de células estaminais. A sério. Tinham separado células masculinas com um laser, tinham-nas posto em cultura com os ingredientes adequados para induzir a formação de um espermatozóide, tinham visto começar a formar-se a cabeça, depois o rudimento da cauda. Eh pá. Que frisson. É que um espermatozóide, tal como um ovo, não é uma célula como os outros milhares de variações que temos no nosso corpo. Por alguma razão estes dois parceiros têm o nome específico de células sexuais, enquanto as outras todas são células somáticas. É que são duas células muito especiais, uma específica dos machos e outra característica das fêmeas: têm por função fundirem-se uma com a outra, por forma a dar origem a um novo organismo com uma nova informação genética saída da mistura aleatória das duas percursoras, absolutamente única e irrepetível. Já se sabia que as células estaminais eram capazes de se diferenciarem enquanto diversos tipos de células somáticas. Mas diferenciarem-se enquanto uma célula sexual tão especializada como um espermatozóide… bem, isso é mesmo outra conversa.
Na altura, fez-se notar que os espermatozóides desenvolvidos in vitro não eram completamente iguais aos que se formam espontaneamente nos testículos. Tinham formas extravagantes, e moviam-se em ondulações caprichosas. Mas possuíam quatro características preciosas, daquelas que só uma célula sexual masculina pode e sabe ter. Em primeiro lugar, só possuíam metade dos cromossomas característicos dos animais da sua espécie – a outra metade vem do ovo, e repõe a combinação correcta ; só mesmo as células sexuais é que conseguem fazer isto, devido a um processo de divisão celular especialíssimo, que se chama meiose em vez de mitose. Segundo, tinham uma cabeça e uma cauda, imprescindíveis para o seu formato aerodinâmico extremamente competitivo. Terceiro, continham proteínas que são essenciais para a activação do ovo durante a fertilização . E, last but not least, nadavam: avançavam a bater a cauda, naquele movimento característico do espermatozóide que procura o ovo. Nada mau. Mas é que nada mau, mesmo.
As leis internacionais proíbem a utilização destes espermatozóides de laboratório para fertilização de ovos humanos, mas havia imensa coisa para aprender com eles: o processo de maturação de um espermatozóide no testículo é complexo, e, a bem dizer, inacessível. É preciso esperar quinze ou dezasseis anos até se formarem as primeiras espermatogónias, as células percursoras dos espermatozoides maduros que fertilizam o ovo. Com este sistema, podíamos assistir em directo e ao vivo ao desenvolvimento integral de um espermatozoide, uma célula extraordinariamente complexa, em não mais que três meses. Bem. Claro que houve polémica. Mas considerem-se só as possibilidades. Falou-se logo de cenários estimulantes, tais como utilizar células da pele de homens com cancro que a quimioterapia tornou estéreis para produzir espermatozóides em laboratório, inseminar com eles os ovos da companheira num processo rotineiro de fertilização in vitro, e assim permitir que estes pacientes se reproduzam à mesma. É só um exemplo. Falou-se de muito milagre da ciência que poderia tornar-se lugar-comum na medicina do futuro. O que interessa é que a biologia básica da reprodução avançou umas boas passadas com tudo isto.
Pouco depois, a mesma equipa conseguiu pôr os ratinhos a reproduzirem-se in vitro com espermatozóides concebidos desta maneira. É verdade que estes ratinhos morreram pouco depois. Mas o importante, aqui, é que chegaram mesmo a nascer. Depois de consultar a equipa sobre o significado profundo de tudo isto, a Comunicação Social acrescentou logo que, dentro de um máximo de dez anos, a mesma proeza poderia estender-se aos humanos, saltando assim por cima de todos os problemas dos homens estéreis – os ovos das suas mulheres seriam fertilizados com espermatozóides derivados das suas próprias células estaminais, e olhem. Os puristas que protestem. Nada pára a grande roda.
Melhor ainda, teoricamente não haveria qualquer problema em produzir espermatozóides derivados de células estaminais femininas – em última análise, tudo depende, apenas, dos estímulos e mensagens que estas células vão recebendo ao longo da sua maturação, e não há nenhum deles que não possa ser fornecido in vitro. Isto quer dizer que as mulheres que não gostam da companhia dos homens poderiam finalmente ter os seus filhos verdadeiramente descansadas, sem uma única interferência masculina ao longo de todo o processo. Enfim, vá. Isto é um bocado indigesto, mas é verdade. Depois de tudo bem considerado, não haveria absolutamente nenhuma razão de ordem estritamente técnica para esses espermatozóides não serem, até, fabricados a partir de células estaminais da própria mãe. Sim, é isso que estão a pensar. A senhora engravidava de si própria.
Claro que tudo isto é mais que proibido. O Human Fertilisasation and Embryology Act de 2008, que ainda ninguém revogou, proíbe a criação artificial de ovos e espermatozoides para tratamentos de infertililidade. Mas, como soe dizer-se, the heat is on. No Reino Unido, onde se deram há dois anos estes avanços impressionantes, um em cada sete casais tem problemas de reprodução. Isto são cerca de 3.5 milhões de pessoas. E. destas, um terço não tem filhos por problemas associados aos espermatozóides. E, reparem: é sempre possível argumentar que estas células curiosas derivadas das células estaminais não são verdadeiros espermatozóides… e portanto… se fôssemos usá-los… no que toca a infringir a lei… estão a ver?
Devo dizer que, para efeitos de investigação de biologia básica, acho tudo isto absolutamente fascinante. Mas há sempre o outro lado das coisas. No que toca a usar estes métodos para efeitos de reprodução, achei muita graça ao que disse, na altura, a senhora que dirigia o Comment on Reproductive Ethics na Grã Bretanha, uma tal Josephine Quintavalle. “Isto é o ser humano no seu mais maluco”, afirmou ela sem punhos de renda. “A mim parece-me que, a partir de um dado ponto, as pessoas têm que parar de brincar aos médicos e aceitar a infertilidade. A ciência deve ser totalmente ética e totalmente segura – e isto não é uma coisa nem outra”.
12/06/2011
LÁ FORA: Encontros de História da Ciência
ENCONTROS DE HISTÓRIA DA CIÊNCIA – CEHFCi
FUNDAÇÃO LUSO-AMERICANA PARA O DESENVOLVIMENTO: 2011
III Encontros de História da Ciência – Centro de Estudos de História e Filosofia da Ciência
FUNDAÇÃO LUSO-AMERICANA
RUA SACRAMENTO À LAPA, 21
4, 5, 6, 7 e 8 JULHO de 2011
Coordenação Científica: Clara Pinto Correia e Maria de Fátima Nunes
Estes III Encontros de História da Ciência organizados pelo CEHFCi na Fundação Luso Americana inserem-se na prática institucional de divulgar a actividade de uma unidade de investigação financiada pela Fundação de Ciência e Tecnologia. Está em causa uma mostra significativa do trabalho científico em que investigadores integrados e estudantes de doutoramento e mestrado se encontram envolvidos.
Assim, os III Encontros são um pretexto para um conjunto de sessões de trabalho centradas nos eixos estratégicos que temos em curso, sob a designação de PHYSIS: neles convergem as três grandes linhas de desenvolvimento científico em curso. São elas a História e Filosofia da Ciência, e esta em articulação com Educação de Ciência, e com a Museologia e Património Científico.
Desta forma, graças à hospitalidade institucional da FLAD, podemos durante uma semana, ao final de tarde e sob a luz única do Tejo, divulgar e debater o trabalho de investigação em curso na unidade, através de diferentes foci de amostragem, numa estreita interacção entre investigadores seniores e os alunos de estudos graduados associados ao CEHFCi.
PROGRAMA
04 de Julho (17h–20h)
Sessão 1 : História da Ciência – Biologia:
Luís Carvalho (Instituto Politécnico Beja – CEHFCi) - Contexto CEHFCi: História da Biologia e História da Ciência
Moderação – Elisabete Pereira (doutoranda em História e Filosofia da Ciência; CEHFCi)
Oradores:
Clara Pinto Correia (Resarch Scholard Dep. Biology AMHERST College, USA; CEHFCi) - História do Pensamento Biológico na Literatura de Viagem : o século XIV e os itinerários de Mandeville através da Terra redonda.
Coffee Break (18h30m - 19h)
João Monteiro (CIBIO - Universidade do Porto) - Aperfeiçoar a Espécie Humana: a influência portuguesa nas ideias melhoristas do médico francês Vandermonde
05 de Julho (17h–20h)
Sessão 2: Educação de Ciência: benefícios do recurso à cultura da experimentação
António Neto (Universidade de Évora: Dep. Ciências Educação; CEHFCi) - Contexto CEHFCi: História da Ciência e Educação de Ciência
Moderação – Isabel Cruz (doutoramento de História e Filosofia da Ciência)
Oradores:
Mariana Valente (Universidade de Évora : Dep. Física ; CEHFCi) - Culturas experimentais na História da Ciência e do Ensino das Ciências - da Natureza aos Objectos, dos Objectos aos Experimentos, dos Experimentos às Experiências de aprendizagem
Coffee Break (18h30m - 19h)
Nazaré Caldeira (Mestre em Física, especialidade em Ensino, Professora na EB23 André de Resende-Évora) - "A Experiência de Oersted no Ensino da Física: Contributos da História e Filosofia da Ciência para a sua valorização didáctica"
06 de Julho (17h–20 h)
Sessão 3 : Sessão 3: História das Ciências da Saúde no Portugal Contemporâneo
Maria de Fátima Nunes (Universidade de Évora : Dep. História; CEHFCi) - Contexto CEHFCi: História da Ciência no século XX
Moderador: Quintino Lopes (Doutorando em História e Filosofia da Ciência; CEHFCi)
Oradores:
Madalena Esperança Pina (Faculdade Ciências Médicas_UNL; CEHFCi) - A Colina da Saúde em Lisboa: Redes de Ciência.
Coffee Break (18h30m - 19h)
Alexandra Marques (Doutoranda em História e Filosofia da Ciência; CEHFci) - O Instituo Bacteriológico Câmara Pestana e o Combate à Raiva
07 de Julho (17h–20 h)
Sessão 4 : A importância da Museologia na História da Ciência
João Brigola (Universidade de Évora : Dep. História; CEHFCi) - Contexto CEHFCi: História da Ciência e Museologia
Moderador: Henrique Coutinho Gouveia (CEHFCi)
Oradores:
José Manuel Brandão (CEHFCi) - Herança histórico-científica do Museu Nacional de Lisboa (Mineralogia e Geologia)
Coffee Break (18h30m - 19h)
Luís Ceríaco (Doutorando em História e Filosofia da Ciência; CEHFCi) - Colecções zoológicas. A importância dos museus para o desenvolvimento da zoologia em Portugal (XVIII_XX)
08 de Julho (17h–20 h)
Sessão 5 : História e Filosofia da Ciência e CEHFCi - Sessão final
Augusto Fitas (Universidade de Évora: Dep. Física; CEHFCi) - A Academia de Berlim, palco no século XVIII de uma disputa em torno do Princípio da Menor Acção
Moderação e apresentação: Clara Pinto Correia
Coffee Break (18h30m - 19h)
Sessão de Encerramento
05/06/2011
NOTA BENE: Montanhas da Loucura
Vai ser lançado em breve pela editora Relógio d'Água o grande clássico da ficção científica de horror, pejado de referências do foro biológico e geológico, Nas Montanhas da Loucura, de J. P. Lovecraft. Traduzido do inglês por João Lourenço Monteiro e Clara Pinto Correia, este livro foi um dos primeiros a lidar em grande escala com a questão da criação de vida sintética à superfície da Terra. Já que esta é uma das linhas da frente mais pertinentes da Biologia de hoje, deixamo-vos aqui, à laia de apresentação, o texto do Prefácio.
Prefácio
Como foi que aqui chegámos
Nas Montanhas da Loucura é um verdadeiro clássico daquela ficção científica destinada a gelar o sangue nas veias do leitor pelo poder esmagador do cenário, omnipresente, impotente e angustiante. Stephen King chamou-lhe a melhor literatura de horror do século XX. Grande parte do seu poder de colar a vítima à narrativa é o efeito sugestivo do mistério central de toda a aventura: a capacidade de criar vida sintética e produzir organismos a gosto conforme as necessidades. Grande inspiradora de ficcionistas de ciência, a vida sintética teve até hoje inúmeras aparições em variadíssimos caprichos de enredo. Mas, neste livro, atinge consensualmente uma das suas glórias máximas.
A ficção científica tem já há bastante tempo esta qualidade curiosa de se antecipar à própria ciência – com o lado ambíguo de recrutar para cenários aterradores o que mais tarde a ciência consegue chegar a fazer com objectivos perfeitamente decentes. Se não fosse esta dualidade fascinante, certamente que não existiriam hoje no mundo tantas comissões de ética. Bem vistas as coisas, tanto bebés-proveta como clones começaram por ser criaturas indefesas enfiadas em frascos de ditadores ensandecidos. Sendo assim, ao prepararmo-nos para ler um longo delírio pejado de criaturas sintéticas, talvez seja bom começar por esclarecer que sim senhor, é verdade: os cientistas já conseguiram criar uma célula sintética. Foi agora mesmo, mas abriu a porta para todo um mundo de possibilidades que ontem só existiam na ficção.
Vejamos, então, a realidade.
Para percebermos melhor o que está realmente em causa por intermédio deste formidável mundo novo, convém regressarmos ao dia 21 de Maio de 2010, quando Craig Venter, do Maryland, anunciou ao mundo que a sua equipa tinha criado uma célula sintética – e os colegas de todo o mundo consideraram que ele não andava muito longe da verdade.
Uma célula sintética. Há décadas que andava muita gente a tentar.
Em termos muito latos, as primeiras notícias diziam que a equipa de Craig Venter tinha conseguido fabricar um genoma que não existia na natureza e inseri-lo numa bactéria. No entanto, depois de bem escrutinizados os dados, vários cientistas insistiam que não era claro se aquele genoma era fabricado de raiz ou era apenas a cópia de outro genoma pré-existente –– ou seja, se o que se fizera não passaria de um mero acto de clonagem. Esta disputa explica-se facilmente. Craig e os colegas tinham usado como modelo o DNA de uma bactéria, e tinham-no reconstruído em laboratório de forma cem por cento sintética. Para que este DNA fabricado se distinguisse claramente de todos os outros, introduziram-lhe a espaços as chamadas “marcas de água”: sequências absurdas, que codificavam para os nomes dos membros da equipa, e mesmo para algumas passagens de Joyce. Introduzido numa bactéria previamente esvaziada de todo o seu DNA, este genoma sintético pô-la a funcionar e tornou-a perfeitamente apta para sobreviver no incrível universo das bactérias.
Isto nunca se tinha feito antes e deixou muito geneticista molecular de respiração suspensa, a ousar imaginar o que realmente poderá acontecer agora já a seguir, e porquê.
Tal como acontece em Nas Montanhas da Loucura, a ciência da vida sintética é um sonho civilizacional. A grande diferença, no caso da vida real, é que nenhuns Antepassados precisaram de vir do Espaço para tudo isto que se segue ser possível. As maiores maravilhas da ficção mais arrojada existem mesmo. Estão escondidas milhões de vezes abaixo do limite de resolução dos nossos olhos. Deus seja louvado, temos neurónios.
Para os que investem os seus esforços científicos no genoma sintético criado em laboratório, o grande sonho é ver chegar o dia, ainda muito distante, em que poderemos sentar-nos e pensar que forma de vida é que precisamos de construir nesse dia –– e depois pronto, desenhá-la e construí-la, como se faz com um carro ou uma ponte.
Embora os seus resultados ainda venham longe, a chamada biologia sintética já existe há umas boas décadas. Baseia-se na premissa de que, na maior parte dos casos, os organismos podem partir-se numa série de partes. A mais importante destas partes seria o gene, a sequência de informação no braço do cromossoma que contribui para a passagem de uma determinada mensagem para a célula. Os genes contêm instruções para se fazerem proteínas, e estas moléculas formam-se em diferentes tipos e tamanhos. É também dos genes que vem a informação sobre onde e quando estas proteínas devem ser utilizadas. As proteínas interagem umas com as outras, comandando várias das funções da célula.
Sabe-se, desde há muito tempo, que certos genes são essenciais: sem as proteínas que codificam, a célula não funciona. Mas muitos outros genes, em contrapartida, são opcionais: pelo menos no laboratório, o organismo dá-se muito bem sem eles.
É também importante sabermos que termos um ou dois genes “extra” de fabrico humano não costuma ser um problema. Já experimentámos inserir um gene novo, por uma grande variedade de razões, em organismos que vão da petúnia à cabra. Desde 1980, a insulina humana tem sido produzida em massa por células bacterianas geneticamente alteradas para o fazerem.
Até agora, já tínhamos conseguido remexer na Natureza para criar versões de genes e proteínas que não existem espontaneamente. A proteína fluorescente verde, por exemplo, é feita naturalmente pelas alforrecas. Os cientistas conseguiram alterar esse gene para que a proteína brilhe com mais força e possa ter outras cores. A fluorescência é já desde há muitas décadas um instrumento essencial em Biologia Celular e Molecular.
E, mais recentemente, apareceram os genomas construídos em laboratório. O primeiro que se fez, há oito anos, foi de um poliovirus –– ou seja, da estrutura de DNA mais simples do mundo vivo. Depois tornou-se possível fazer cópias sintéticas de genomas pré-existentes de bactérias. Agora, com estes novos resultados, parece que nos tornámos capazes de fabricar genomas bacterianos que nunca existiram na Natureza.
Mas as dificuldades neste campo continuam a ser muito grandes. Esta publicação de Craig Venter com o genoma todo feito em laboratório que fez funcionar a bactéria pode ter sido uma enorme proeza, mas é só um passinho de bebé em direcção à vida sintética: não é propriamente nenhum salto de gigante. A bactéria resultante quase não diferia da bactéria que já existia. A única diferença era que o seu DNA tinha as tais “marcas de água” , que a identificavam como tendo sido fabricada, em vez de resultar da evolução.
Um dos grandes problemas em criar vida no laboratório é que os sistemas biológicos evoluídos são complexos, e comportam-se muitas vezes de formas que ainda não conseguimos predizer. Podemos especificar a sequência de DNA que faz uma determinada proteína, mas nem sempre conseguimos prever com que é que vai parecer-se a proteína ou como irá interagir com as outras proteínas da célula. E, de qualquer maneira, na maior parte dos casos, os sistemas biológicos não são todos iguais uns aos outros: é verdade que nos tornámos bons a produzir DNA, já sabemos copiar genomas, alterá-los ligeiramente –– mas ainda estamos muito longe de conseguir construir um genoma a partir do nada.
Note-se que o processo de inventar uma nova linguagem genética permite-nos perceber melhor aquela que já evoluiu. E isto já começou. As primeiras tentativas de criar DNA alternativo revelou rapidamente que cada “corrimão” da dupla hélix é muito mais fundamental para a forma como a célula trabalha do que tudo o que pudéssemos ter imaginado antes.
Mas agora vamos deixar-nos de modéstias e passar à parte realmente fabulosa – aquela onde a vida sintética entra a matar, e que ninguém sonharia criar na ficção científica porque era preciso ter estudado Genética Molecular até hoje. Apreciem o projecto da Segunda Natureza.
Embora não consigamos expressar-nos fluentemente na linguagem genética da Natureza, não deixa de existir a possibilidade excitante de um dia escrevermos a nossa. Começámos pela engenharia de proteínas que não ocorrem normalmente no mundo vivo, e estamos a começar a construir moléculas que se parecem com o DNA na sua capacidade de acumular informação, mas que pode ser lido de forma diferente pela maquinaria da célula. Isto deve permitir-nos construir uma “segunda natureza”: um grupo de organismos que usam uma linguagem diferente, e que não podem interagir facilmente com as formas de vida que evoluíram na Natureza.
E, sobretudo, que ninguém se lembre de proibir os cientistas de avançarem por aqui, com a alegação idiota de que podem acontecer coisas más. Claro que há muitas formas em que poderemos utilizar organismos feitos por design, umas boas e outras más. Mas o que é realmente importante é que, ao tentarmos criar vida artificial, aprendemos cada vez mais sobre que a vida que foi evoluindo desde o princípio dos tempos. E ainda nos falta estudar muito para entendermos como foi que aqui chegámos. Muito.
Clara Pinto Correia
Prefácio
Como foi que aqui chegámos
Nas Montanhas da Loucura é um verdadeiro clássico daquela ficção científica destinada a gelar o sangue nas veias do leitor pelo poder esmagador do cenário, omnipresente, impotente e angustiante. Stephen King chamou-lhe a melhor literatura de horror do século XX. Grande parte do seu poder de colar a vítima à narrativa é o efeito sugestivo do mistério central de toda a aventura: a capacidade de criar vida sintética e produzir organismos a gosto conforme as necessidades. Grande inspiradora de ficcionistas de ciência, a vida sintética teve até hoje inúmeras aparições em variadíssimos caprichos de enredo. Mas, neste livro, atinge consensualmente uma das suas glórias máximas.
A ficção científica tem já há bastante tempo esta qualidade curiosa de se antecipar à própria ciência – com o lado ambíguo de recrutar para cenários aterradores o que mais tarde a ciência consegue chegar a fazer com objectivos perfeitamente decentes. Se não fosse esta dualidade fascinante, certamente que não existiriam hoje no mundo tantas comissões de ética. Bem vistas as coisas, tanto bebés-proveta como clones começaram por ser criaturas indefesas enfiadas em frascos de ditadores ensandecidos. Sendo assim, ao prepararmo-nos para ler um longo delírio pejado de criaturas sintéticas, talvez seja bom começar por esclarecer que sim senhor, é verdade: os cientistas já conseguiram criar uma célula sintética. Foi agora mesmo, mas abriu a porta para todo um mundo de possibilidades que ontem só existiam na ficção.
Vejamos, então, a realidade.
Para percebermos melhor o que está realmente em causa por intermédio deste formidável mundo novo, convém regressarmos ao dia 21 de Maio de 2010, quando Craig Venter, do Maryland, anunciou ao mundo que a sua equipa tinha criado uma célula sintética – e os colegas de todo o mundo consideraram que ele não andava muito longe da verdade.
Uma célula sintética. Há décadas que andava muita gente a tentar.
Em termos muito latos, as primeiras notícias diziam que a equipa de Craig Venter tinha conseguido fabricar um genoma que não existia na natureza e inseri-lo numa bactéria. No entanto, depois de bem escrutinizados os dados, vários cientistas insistiam que não era claro se aquele genoma era fabricado de raiz ou era apenas a cópia de outro genoma pré-existente –– ou seja, se o que se fizera não passaria de um mero acto de clonagem. Esta disputa explica-se facilmente. Craig e os colegas tinham usado como modelo o DNA de uma bactéria, e tinham-no reconstruído em laboratório de forma cem por cento sintética. Para que este DNA fabricado se distinguisse claramente de todos os outros, introduziram-lhe a espaços as chamadas “marcas de água”: sequências absurdas, que codificavam para os nomes dos membros da equipa, e mesmo para algumas passagens de Joyce. Introduzido numa bactéria previamente esvaziada de todo o seu DNA, este genoma sintético pô-la a funcionar e tornou-a perfeitamente apta para sobreviver no incrível universo das bactérias.
Isto nunca se tinha feito antes e deixou muito geneticista molecular de respiração suspensa, a ousar imaginar o que realmente poderá acontecer agora já a seguir, e porquê.
Tal como acontece em Nas Montanhas da Loucura, a ciência da vida sintética é um sonho civilizacional. A grande diferença, no caso da vida real, é que nenhuns Antepassados precisaram de vir do Espaço para tudo isto que se segue ser possível. As maiores maravilhas da ficção mais arrojada existem mesmo. Estão escondidas milhões de vezes abaixo do limite de resolução dos nossos olhos. Deus seja louvado, temos neurónios.
Para os que investem os seus esforços científicos no genoma sintético criado em laboratório, o grande sonho é ver chegar o dia, ainda muito distante, em que poderemos sentar-nos e pensar que forma de vida é que precisamos de construir nesse dia –– e depois pronto, desenhá-la e construí-la, como se faz com um carro ou uma ponte.
Embora os seus resultados ainda venham longe, a chamada biologia sintética já existe há umas boas décadas. Baseia-se na premissa de que, na maior parte dos casos, os organismos podem partir-se numa série de partes. A mais importante destas partes seria o gene, a sequência de informação no braço do cromossoma que contribui para a passagem de uma determinada mensagem para a célula. Os genes contêm instruções para se fazerem proteínas, e estas moléculas formam-se em diferentes tipos e tamanhos. É também dos genes que vem a informação sobre onde e quando estas proteínas devem ser utilizadas. As proteínas interagem umas com as outras, comandando várias das funções da célula.
Sabe-se, desde há muito tempo, que certos genes são essenciais: sem as proteínas que codificam, a célula não funciona. Mas muitos outros genes, em contrapartida, são opcionais: pelo menos no laboratório, o organismo dá-se muito bem sem eles.
É também importante sabermos que termos um ou dois genes “extra” de fabrico humano não costuma ser um problema. Já experimentámos inserir um gene novo, por uma grande variedade de razões, em organismos que vão da petúnia à cabra. Desde 1980, a insulina humana tem sido produzida em massa por células bacterianas geneticamente alteradas para o fazerem.
Até agora, já tínhamos conseguido remexer na Natureza para criar versões de genes e proteínas que não existem espontaneamente. A proteína fluorescente verde, por exemplo, é feita naturalmente pelas alforrecas. Os cientistas conseguiram alterar esse gene para que a proteína brilhe com mais força e possa ter outras cores. A fluorescência é já desde há muitas décadas um instrumento essencial em Biologia Celular e Molecular.
E, mais recentemente, apareceram os genomas construídos em laboratório. O primeiro que se fez, há oito anos, foi de um poliovirus –– ou seja, da estrutura de DNA mais simples do mundo vivo. Depois tornou-se possível fazer cópias sintéticas de genomas pré-existentes de bactérias. Agora, com estes novos resultados, parece que nos tornámos capazes de fabricar genomas bacterianos que nunca existiram na Natureza.
Mas as dificuldades neste campo continuam a ser muito grandes. Esta publicação de Craig Venter com o genoma todo feito em laboratório que fez funcionar a bactéria pode ter sido uma enorme proeza, mas é só um passinho de bebé em direcção à vida sintética: não é propriamente nenhum salto de gigante. A bactéria resultante quase não diferia da bactéria que já existia. A única diferença era que o seu DNA tinha as tais “marcas de água” , que a identificavam como tendo sido fabricada, em vez de resultar da evolução.
Um dos grandes problemas em criar vida no laboratório é que os sistemas biológicos evoluídos são complexos, e comportam-se muitas vezes de formas que ainda não conseguimos predizer. Podemos especificar a sequência de DNA que faz uma determinada proteína, mas nem sempre conseguimos prever com que é que vai parecer-se a proteína ou como irá interagir com as outras proteínas da célula. E, de qualquer maneira, na maior parte dos casos, os sistemas biológicos não são todos iguais uns aos outros: é verdade que nos tornámos bons a produzir DNA, já sabemos copiar genomas, alterá-los ligeiramente –– mas ainda estamos muito longe de conseguir construir um genoma a partir do nada.
Note-se que o processo de inventar uma nova linguagem genética permite-nos perceber melhor aquela que já evoluiu. E isto já começou. As primeiras tentativas de criar DNA alternativo revelou rapidamente que cada “corrimão” da dupla hélix é muito mais fundamental para a forma como a célula trabalha do que tudo o que pudéssemos ter imaginado antes.
Mas agora vamos deixar-nos de modéstias e passar à parte realmente fabulosa – aquela onde a vida sintética entra a matar, e que ninguém sonharia criar na ficção científica porque era preciso ter estudado Genética Molecular até hoje. Apreciem o projecto da Segunda Natureza.
Embora não consigamos expressar-nos fluentemente na linguagem genética da Natureza, não deixa de existir a possibilidade excitante de um dia escrevermos a nossa. Começámos pela engenharia de proteínas que não ocorrem normalmente no mundo vivo, e estamos a começar a construir moléculas que se parecem com o DNA na sua capacidade de acumular informação, mas que pode ser lido de forma diferente pela maquinaria da célula. Isto deve permitir-nos construir uma “segunda natureza”: um grupo de organismos que usam uma linguagem diferente, e que não podem interagir facilmente com as formas de vida que evoluíram na Natureza.
E, sobretudo, que ninguém se lembre de proibir os cientistas de avançarem por aqui, com a alegação idiota de que podem acontecer coisas más. Claro que há muitas formas em que poderemos utilizar organismos feitos por design, umas boas e outras más. Mas o que é realmente importante é que, ao tentarmos criar vida artificial, aprendemos cada vez mais sobre que a vida que foi evoluindo desde o princípio dos tempos. E ainda nos falta estudar muito para entendermos como foi que aqui chegámos. Muito.
Clara Pinto Correia
20/05/2011
LÁ FORA: Dia da Biodiversidade
Evento: Dia da Biodiversidade na exposição “A Evolução de Darwin” – Porto
Dia: 22 de Maio 2011
Horário: 10h até 19h
Local: Casa Andresen, Jardim Botânico do Porto, Rua do Campo Alegre, 1191
4150-181 Porto, Portugal
Coordenadas GPS:
Latitude: 41.15364955646922 Longitude: -8.642528057098389
Pode encontrar mais informações no Site: http://expodarwin.up.pt/
O que irá acontecer neste dia?
Poderá visitar a exposição “A Evolução de Darwin”, com a opção de visita guiada, como é normal aos fins-de-semana. Para além disso, irão decorrer conversas com oradores convidados, dos quais se destaca a professora Teresa Andresen, Directora do Jardim Botânico do Porto (e familiar da escritora Sofia de Mello Breyner Andresen). Também irá haver actividades práticas paralelas para conhecer melhor a nossa biodiversidade, sendo estas actividades dirigidas tanto a um público adulto como aos mais novos. Visite-nos!
01/03/2011
PARA SEMPRE: O Mundo Zoológico, de acordo com Gilliatt
"[Gilliatt] era um pensativo. Nada mais. Observava a natureza d'uma maneira um pouco extravagante. Tinha-lhe succedido, por diversas vezes, encontrar na agua do mar, perfeitamente limpida, animaes desconhecidos, um tanto volumosos, de fórmas diversas, pertencentes á especie medusa, os quaes, tirados do liquido, se assimilhavam a vidro coalhado, e immersos de novo, por serem identicos em diaphaneidade e em côr, confundiam-se com o ambiente, a ponto de não se differençarem ambos. Concluia elle d'isto que, se na agua habitavam transparencias vivas, era natural suppor que a atmosphera estivesse povoada d'outras tantas transparencias, egualmente com vida. As aves não são os habitantes do ar, são apenas os seus amphibios. Gilliatt não acreditava que o ar estivesse deserto. Dizia elle: se o mar está repleto, porque é que ha de estar vasio este espaço? Devia haver creaturas côr do ar, que, entranhando-se na luz, desapparecessem á nossa vista. Quem póde provar que não existem estas creaturas? Mesmo por analogia, é possivel que o ar tenha os seus peixes, da mesma forma que o mar. E se os tem, devem estes peixes do ar ser proporcionalmente diaphanos; beneficio da providencia creadora, tanto para nós como para elles; para nós, porque nos não turbam a claridade, para elles, porque não nol-a turbando, não são vistos, e, portanto, não podem ser agarrados. Imaginava Gilliatt que, se podessemos exgotar de atmosphera a terra, e pescar no ar, como podemos fazer em qualquer lagoa, haviamos de descobrir alli uma infinita quantidade de assombrosos entes. E, então, accrescentava elle, no meio das suas reflexões, muitas coisas ficariam explicadas."
Victor Hugo, Os Homens do Mar, Lisboa, Empreza da Historia de Portugal, 1901, pp. 42-43.
31/01/2011
A VER: O Entomólogo da Regaleira
Na fotografia, António Augusto de Carvalho Monteiro (1848-1920), célebre idealizador da Quinta da Regaleira, em Sintra. Para além do monumento que o tornou conhecido, Carvalho Monteiro foi um coleccionador de espécimes zoológicos, nomeadamente borboletas, de que reuniu vários exemplares. Teve ainda uma colecção de conchas e outra de orquídeas. Homem de cultura, foi também um dedicado estudioso d' Os Lusíadas. Na imagem, Carvalho Monteiro aparece com um grande conjunto de equipamento para investigação entomológica, algum do qual desactualizado, mas cujo uso, como investigador naturalista que foi, deveria conhecer perfeitamente. Um homem invulgar, cujo percurso não é ainda todo conhecido. A aprofundar.
Fonte: Gonçalo Pereira e António Luís Campos, «A mansão e o filósofo», National Geographic Portugal, vol.10, nº112, Julho de 2010 [s. nº de pp.].
03/01/2011
APELO DA SELVA: A Biologia da Crise
Este cartoon é uma referência à descoberta de um dipluro, insecto apterigota, numa gruta algarvia pela bióloga Sofia Reboleira. São animais muito pequenos, com cerca de 3 mm, desprovidos de olhos e asas, sendo, no plano na evolução, antepassados dos insectos que commumente conhecemos. Este agora descoberto - o Litocampa mendesi - está adaptado à vida nas grutas, onde forma uma comunidade relativamente reduzida.
Diário de Notícias, Ano 147º, nº 51768, p.31 (notícia) p.54 (cartoon) [3 de Janeiro de 2011].
VOZES: Mais um ano
E pronto, cumprimos mais um ciclo de mais um ano.
São absolutamente espantosos, todos estes ciclos que mantêm a Natureza em equilibrio -- e sempre à procura de mais, de melhor, de qualquer coisa outra.
Venham comigo, sentir o que eu senti:
Démos o nosso Melhor para celebrar o renovar cíclico da vida.
São tantas e tantas as frases feitas à volta deste ritual, que gostaria de personalizar um pouco esta “encomenda” quase obrigatória – e mando-a só hoje, depois de já estar tudo feito e dito, para que não se perca na enxurrada de outras mensagens. Antes de escrever, pensei muito.
Estas festas anuais são, sobretudo, o grande mistério.
Cristo transcende-nos até aos nossos dias não só porque ele mesmo é “transcendência”, mas também porque, pela primeira vez, Deus se torna homem: Ecce Homo passa por uma “Vida, Paixão e Morte” como qualquer um de nós.
Ressuscita – regressa de entre os mortos e ascende à eternidade – de onde veio. É um Deus. Nós não podemos fazer o mesmo.
Uma vez por ano – simbolicamente – Cristo repete a travessia.
E, com ele, todos nós.
Uma vez por ano, apaixonados pelo mistério, os amputados afectivos globais fazem longas travessias para regressar ao ninho onde se encontra a sua ascendência ou descendência; a família passa a ser a sua “transcendência”.
A “pátria” – uma vez por ano, ao menos – transforma-se realmente em “matria”, como queria Natália Correia.
Esse seio onde estão os nossos passa a ser o universo, independentemente do país onde nos encontramos; independentemente da solidão e pobreza dos exilados de todo o mundo, que tudo fazem para reinventar a sua família mesmo que seja apenas numa garrafa solitária.
Por momentos, os habitantes do planeta sentem uma espécie de abraço quente que vem de todas as partes e vai para todo o mundo.
Maior milagre que este?
É um mistério.
Não há possibilidade científica de certificar a origem nem a verosimilhança dos sucessos ocorridos há mais de dois mil anos. O facto é que funciona o milagre da renovação e tudo se torna real.
O facto é que milhares de milhões de pessoas gozam desta unidade emocional, Independentemente da sua religião ou da sua descrença.
Que o milagre frutifique em nós, desta vez melhor do que nunca.
São absolutamente espantosos, todos estes ciclos que mantêm a Natureza em equilibrio -- e sempre à procura de mais, de melhor, de qualquer coisa outra.
Venham comigo, sentir o que eu senti:
Démos o nosso Melhor para celebrar o renovar cíclico da vida.
São tantas e tantas as frases feitas à volta deste ritual, que gostaria de personalizar um pouco esta “encomenda” quase obrigatória – e mando-a só hoje, depois de já estar tudo feito e dito, para que não se perca na enxurrada de outras mensagens. Antes de escrever, pensei muito.
Estas festas anuais são, sobretudo, o grande mistério.
Cristo transcende-nos até aos nossos dias não só porque ele mesmo é “transcendência”, mas também porque, pela primeira vez, Deus se torna homem: Ecce Homo passa por uma “Vida, Paixão e Morte” como qualquer um de nós.
Ressuscita – regressa de entre os mortos e ascende à eternidade – de onde veio. É um Deus. Nós não podemos fazer o mesmo.
Uma vez por ano – simbolicamente – Cristo repete a travessia.
E, com ele, todos nós.
Uma vez por ano, apaixonados pelo mistério, os amputados afectivos globais fazem longas travessias para regressar ao ninho onde se encontra a sua ascendência ou descendência; a família passa a ser a sua “transcendência”.
A “pátria” – uma vez por ano, ao menos – transforma-se realmente em “matria”, como queria Natália Correia.
Esse seio onde estão os nossos passa a ser o universo, independentemente do país onde nos encontramos; independentemente da solidão e pobreza dos exilados de todo o mundo, que tudo fazem para reinventar a sua família mesmo que seja apenas numa garrafa solitária.
Por momentos, os habitantes do planeta sentem uma espécie de abraço quente que vem de todas as partes e vai para todo o mundo.
Maior milagre que este?
É um mistério.
Não há possibilidade científica de certificar a origem nem a verosimilhança dos sucessos ocorridos há mais de dois mil anos. O facto é que funciona o milagre da renovação e tudo se torna real.
O facto é que milhares de milhões de pessoas gozam desta unidade emocional, Independentemente da sua religião ou da sua descrença.
Que o milagre frutifique em nós, desta vez melhor do que nunca.
30/12/2010
LER: Viagens de Mandeville
PRIMEIRO LIVRO
A PEREGRINAÇÃO À TERRA SANTA
1
Sobre o caminho
de Inglaterra
para Constantinopla
Em nome de Deus Todo-Poderoso. Aquele que quer atravessar o mar para ir a Jerusalém, pode ir por muitos caminhos, tanto pelo mar como pela terra, dependendo dos países de onde vier: muitas vias chegam a um único fim. Mas não pensem que vos falarei de todas as vilas e cidades e castelos, porque senão teria que escrever uma longa história a esse respeito. Só tenciono tocar brevemente nos países grandes e nos lugares importantes que um homem tem que atravessar para seguir a estrada certa. Porque, se um homem vier das partes ocidentais do mundo como a Inglaterra, a Irlanda, Gales, a Escócia ou a Noruega, poderá, se quiser, atravessar a Alemanha e através do reino da Hungria, que faz fronteira com as terras da Polónia e a terra da Bulgária e da Silésia. E deveis saber que o Rei da Hungria é um senhor muito grande e poderoso, e possui muita terra importante. Porque possui a terra da Hungria, da Eslovénia, Cumânia, uma grande parte da Bulgária, a que também chamam a terra dos búlgaros, e uma grande parte do reino Russo, e que se estende para a terra da Livónia e até às fronteiras com a Prússia. E através da terra da Hungria os homens vão para uma cidade que se chama Soprónia, e passam pelo Castelo de Newburgo, e depois para o Rio Danúbio. Este é um grande rio que aflora na Alemanha atrás das montanhas da Lombardia, e toma para si outros quarenta rios; e corre pela Hungria e pela Grécia e pela Trácia e depois entra no mar de forma tão poderosa, e com tamanha força, que a água é doce a vinte milhas de distância dentro do mar . E depois os homens vão para Belgrado e entram na terra dos Búlgaros, a aí passa-se uma ponte de pedra sobre o Rio Maritsa. E depois os homens atravessam a terra de Petschenegs, e vêm para a Grécia para a cidade de Sofia e para a cidade de Philippopolis; depois para a cidade de Adianópolis, e depois para a cidade de Constantinopla, que já foi chamada Bizâncio, e onde geralmente se encontra o imperador da Grécia. Aqui está a melhor e mais bela igreja do mundo, Santa Sofia. E diante da igreja de Santa Sofia está uma estátua do Imperador Justiniano, bem coberto de ornamentos dourados; está esculpido sentado, coroado, em cima de um cavalo. Esta estátua costumava segurar na sua mão uma maçã redonda feita de ouro; mas já há muito tempo que ela caiu da sua mão. E aqui dizem que a queda da maçã é o um símbolo de que o Imperador perdeu grande parte do seu antigo território. Porque Justiniano costumava ser da Roménia, da Grécia, da Ásia Menor, da Síria e da terra da Judeia, onde está Jerusalém, e da terra do Egipto da Pérsia e da Arábia; mas perdeu tudo, à excepção da Grécia, e agora só tem essa terra. Há muito que os homens tentam voltar a pôr a maçã de ouro na sua mão, mas a maçã não se aguenta lá. Porque essa maçã significa o território que ele tinha em todo o mundo. Tem a outra mão levantada em direcção ao Oeste, como sinal de ameaça aos que fazem o mal. Esta estátua ergue-se sobre um pilar de mármore.
2
Sobre a Cruz
e a Coroa
de Nosso Senhor
Irei agora descrever a origem das quatro madeiras da Cruz . O poste onde Lhe prenderam a cabeça era de cipreste; e a peça que a atravessava, à qual as Suas mãos foram pregadas, era de palma; e o bloco preso à terra, no qual foi feito um encaixe, era de cedro; e a placa sobre a Sua cabeça tinha um pé e meio de comprido, na qual a sobrescrição foi escrita em Hebraico, Grego e Latim, e era de oliveira. Destas quatro espécies de madeira os Judeus fizeram a Cruz de Jesus, porque acreditavam que Ele estaria suspenso da Cruz enquanto a Cruz pudesse durar. E assim fizeram o pé de cedro;
porque o cedro não apodrece na terra ou na água. Queriam que durasse por muito tempo. E porque pensavam que o corpo de Cristo ia cheirar mal, fizeram o poste, em que o seu corpo estava pendurado, de cipreste, devido ao seu cheiro doce, para que o cheiro do Seu corpo não fosse ofensivo para os homens que passassem. E a peça atravessada, onde as Suas mãos foram pregadas, era de palma; porque no Velho Testamento foi ordenado que quando qualquer homem tivesse uma vitória sobre o seu inimigo fosse coroado com uma palma. E porque acreditavam que tinham a vitória sobre Cristo, fizeram a peça atravessada de palma. E a tabuleta com os títulos era de oliveira; porque a oliveira simboliza a paz, como a história de Noé
testemunha, quando a pomba trouxe o ramo de oliveira no seu bico, que simbolizava a paz entre Deus e os homens . E assim os Judeus acreditavam que teriam a paz quando Jesus morresse, porque diziam que Ele criava divisões entre eles.
Os homens da Grécia, e outros homens cristãos que viajam para lá do mar, dizem que a madeira da cruz a que chamamos cipreste era da Árvore de que Adão comeu a maçã, e que isto encontram escrito. E também dizem que a sua Escritura diz que Adão ficou doente e disse ao seu filho Seth que devia ir ao Paraíso e pedir ao anjo que guarda o Paraíso que lhe mandasse algum óleo da Árvore da Misericórdia para esfregar os seus membros, para que pudesse curar-se. E Seth foi ao Paraíso mas o anjo que o guarda não o deixou entrar, e antes lhe disse que não poderia levar nenhum óleo de misericórdia. Mas tomou quatro sementes da mesma árvore de que o seu pai tinha comido a maçã e disse-lhe que, assim que Adão morresse, devia pô-las debaixo da sua língua e enterrá-lo assim, e dessas quatro sementes cresceriam árvores com frutos que haviam de salvar Adão. E, quando Seth voltou a casa outra vez, encontrou o pai quase morto; e fez o que o Anjo lhe dissera para fazer com as sementes, das quais nasceu uma cruz que deu o excelente fruto Jesus Cristo, pelo qual Adão e todos os seus descendentes foram salvos e libertados da morte sem fim, a menos que ocorresse por sua própria culpa. Esta Cruz Sagrada tinham os Judeu escondida debaixo da Rocha do Monte Calvário, e aí ficou durante mais de duzentos anos até ser descoberta por Santa Helena, mãe do Imperador Constantino de Roma . E era a filha de Coel, rei da Inglaterra, que na altura se chamava Reino Unido. E o Rei de Roma, quando estava nesse país, ficou tão maravilhado com a sua beleza que a levou como nubente e a casou com Constantino.
E deveis saber que a Cruz de Nosso Senhor media oito cúbitos de comprimento, e essa prancha tinha três cúbitos e meio de largura. E a Coroa de Espinhos com que Nosso Senhor foi coroado, e um dos pregos, e a ponta da lança, estão em França na Capela Real. E a Coroa está dentro de em frasco de cristal, feito de forma muito bela e rica. Um rei de França comprou uma vez estas peças aos Genoveses, a quem o Imperador as tinha apresentado por uma grande soma em ouro. E embora os homens digam que esta Coroa é a Coroa de Espinhos, deveis compreender que é feita de algas do mar , que são muito brancas e quebradiças e tão pontiagudas como os espinhos. Porque eu vi muitas vezes tanto a que está em Paris como a que está em Constantinopla; porque eram as duas partes de uma mesma peça, feita dos sargaços do mar, mas foram divididas em duas partes, das quais uma está em Paris e outra e Constantinopla . E tenho um espinho dela, que parece um pilriteiro, e que me foi dado em sinal de grande amizade. Porque muitos deles se quebraram e caíram no fundo do frasco em que está a Coroa, porque se quebram quando os homens perturbam o frasco para mostrar a Coroa aos grandes Senhores e aos peregrinos que por lá passam.
E deveis saber que Nosso Senhor, na noite em que foi capturado, foi levado para um jardim, e aí foi intensamente interrogado; e aí os Judeus O ridicularizaram e puseram uma Coroa na Sua cabeça e empurraram-na para baixo com tanta força que o sangue correu por muitas partes da Sua testa, do Seu pescoço e dos Seus ombros. E essa coroa era feita de ramos de pilriteiro, e por isso o pilriteiro tem muitas virtudes. Porque quem carregue consigo um ramo dele, nenhum raio nem nenhuma forma de tempestade pode atingi-lo; e nenhum espírito maligno pode entrar em sua casa nem em qualquer outro sítio onde o ramo esteja. E nesse mesmo jardim São Pedro renegou Nosso Senhor três vezes. Depois Nosso Senhor foi levado perante o Bispo e os Homens da Velha Lei noutro jardim, o da Anaás, e aí também foi interrogado e ridicularizado e coroado depois com um espinho que se chama uva-espim, que crescia naquele jardim. E este também tem muitas virtudes. E depois ainda foi levado para o jardim de Caifás; e aí foi coroado com urze branca. E depois foi levado para os aposentos de Pilatos; e aí também foi acusado e coroado. Porque os Judeus O sentaram numa cadeira e O cobriram com um manto; e fizeram-Lhe uma Coroa com sargaços do mar, ajoelharam-se perante Ele e coroaram-No e disseram, Aue Rex Judeorum, o que quer dizer, ‘Salve, Rei dos Judeus’. E esta Coroa, da qual uma metade está em Paris e a outra em Constantinopla, tinha Cristo na Cabeça quando foi crucificado. E devem portanto os homens honrá-la, e venerá-la mais que qualquer outra. O tronco da lança com que Cristo foi perfurado tem o Imperador da Alemanha ; mas a sua ponta está em Paris. O Imperador de Constantinopla diz que tem a ponta da lança; e essa ponta de lança vi eu muitas vezes, mas é maior do que a que está em Paris .
3
Sobre a cidade de Constantinopla,
E quanto à fé dos Gregos.
Deveis saber que, embora os Gregos sejam Cristãos, no entanto variam da nossa fé. Porque dizem que o Espírito Santo não procede do Filho, mas apenas do Pai, e não estão em obediência à Igreja de Roma, nem ao Papa. E dizem que para lá do Mar Grego o seu Patriarca tem muito mais poder do que o que o nosso Papa tem deste lado. E por isso o Papa João XXII mandou-lhes cartas mostrando-lhes que a fé cristã deve ser unificada, e que todos os homens cristãos têm de obedecer a um Papa, que é o Vigário de Cristo na Terra e a quem Deus deu plenos poderes para atar e desatar; e por isso devem obedecer-lhe. E eles responderam:
“Acreditamos que o teu poder é grande sobre os teus súbditos; não podemos suportar o teu grande orgulho; não estamos dispostos a abonar a tua grande avareza. Que Deus esteja contigo, porque Deus está connosco. Adeus.”
Dizem que não há Purgatório, e que as almas não terão nem alegria nem dor antes do Dia do Juízo. Também dizem que a fornicação não é um pecado mortal, mas um pecado natural. Os seus padres também se casam. E dizem que a usura não é um pecado mortal. E não jejuam aos Sábados em nenhuma altura do ano, a menos que seja Natal ou Véspera da Páscoa. Não deixam nenhum homem que venha deste lado do Mar Grego celebrar nos seus altares; e, se por acaso isto acontece, lavam o altar imediatamente com Água Benta. Além disso, dizem que Nosso Senhor nunca comeu comida material, pretendo apenas que o fazia, para mostrar sinais de natureza humana. Dizem que cometemos um pecado mortal quando fazemos a barba, porque a barba é um sinal de masculinidade e um dom de Deus. E aqueles que fazem a barba fazem-no apenas para parecerem melhores ao mundo ou para agradarem às suas mulheres. E dizem que cometemos pecados mortais comendo animais cuja carne foi proibida pela Velha Lei, como porcos, lebres e outras bestas que não ruminam. E amaldiçoam todos aqueles que não comem carne ao Sábado. Também o Imperador de Constantinopla designa os patriarcas, os arcebispos e os bispos, e distribui todas as dignidades da Santa Igreja naquele país.
Em Constantinopla jaz também Santa Ana, a mãe de Nossa Senhora, que Santa Helena trouxe de Jerusalém. E aqui jaz também o corpo de João Crisóstomo, que foi o bispo de Constantinopla. E ali jaz São Lucas, o Evangelista; pois os seus ossos foram trazidos de Betânia, onde estava enterrado. E aqui se encontram várias outras relíquias. E há uns vasos de pedra, como mármore, a que os homens chamam ‘ydrious’, que pingam água continuamente e se enchem todos os anos . Constantinopla é uma muito bela e boa cidade, e bem murada; tem três linhas de defesa . Há um braço de mar a que os homens chamam Hellesponte; e alguns chamam-lhe a Boca de Constantinopla, e outros o Braço de São Jorge. E esta água rodeia e protege duas partes da cidade. E mais para cima em direcção ao mar, ao longo da mesma extensão de água, costumava erguer-se a cidade de Tróia; mas esta cidade foi destruída pelos Gregos.
Em torno da Grécia há muitas ilhas: o que é como dizer Carki, Thera, Delos, Lesbos, Paros, Naxos, Melos, Scarpanto, Lemnos. E nesta região fica o monte Atos, que fura as montanhas. Há também muitos outros diferentes países e nações que falam línguas diferentes e obedecem e prestam tributo ao Imperador –– Turcople, Petschenegs, Cumania, Trácia, Macedónia, de que Alexandre foi Rei, e muitas outras. É preciso atravessar o lugar onde existia uma cidade formosa chamada Adalia. E todo esse país se perdeu por causa da loucura de um jovem. Porque existia uma bonita donzela que ele muito amava, mas ela morreu subitamente
e foi enterrada num túmulo de mármore; e por causa do grande amor que tinha por ela ele uma noite foi ao seu túmulo e abriu-o e entrou lá dentro e deitou-se com ela e assim passou a noite e depois seguiu ao seu caminho. Ao fim de nove meses uma voz veio ter com ele e disse-lhe: Vai ao túmulo da mulher e abre-o, e vê o
que fizeste nascer nela. E se não fores terás grandes males e sofrimentos. E ele foi e abriu o túmulo e de lá saiu uma enorme cabeça, horrível de se olhar, que voou a toda a volta da cidade; e assim a cidade afundou-se, e todas as províncias que estavam à volta; e ainda hoje há lá muitas passagens perigosas.
Nesta região nasceu Aristóteles, numa cidade chamada Stagira, a pouca distância da Trácia. Em Stagira jaz Aristóteles, e há um altar sobre o seu túmulo. E aqui os homens fazem uma festa solene todos os anos, como se ele fosse um santo. E sobre o seu altar estabelecem o Grande Conselho e a Assembleia, e acreditam que através da inspiração de Deus e da dele conseguirão ter melhor conselho. Logo a seguir ao túmulo de Aristóteles fica a Fossa de Mynon, que é muito admirada pelos homens. Do túmulo corre um rio pequeno, chamado Abellin, e ao pé dele fica a Fossa de Mynon, toda redonda, com mais ou menos cem cúbitos de largura; e está cheia de gravilha. E não importa o que se tirar de lá durante um dia, na manhã seguinte está tão cheia como sempre esteve, e é uma grande maravilha. E há sempre um grande vento nesse fosso que levanta toda a gravilha e a faz girar em volta das paredes . E se algum metal for lá posto dentro, imediatamente se transforma em vidro. Esta gravilha é brilhante, e os homens fazem vidro muito bom e claro com ela. E alguns dizem que é um afluente do Mar de Gravilha . A gente vem de países distantes por mar com barcos ou por terra com carros para vir buscar alguma dessa gravilha.
Neste país há montanhas muito grandes junto da fronteira da Macedónia. E entre elas há uma que se chama Olimpo, que separa a Macedónia da Trácia; e é mais alta que as nuvens. Há também uma outra montanha a que os homens chamam Atos; e é tão alta que a sua sombra se estende até Lemnos, que está à distância de cerca de setenta e oito milhas. No alto destas montanhas o ar é tão limpo e tão puro que não se sente lá qualquer vento; e por isso nenhum animal ou pássaro pode lá viver, tão seco é o ar. E os homens dizem nesses países que uma vez homens sábios subiram aos cumes e levavam uma esponja contra o nariz molhada em água para segurar o ar, pois assim o ar era seco. E também no alto desses cumes escreveram letras na poeira com os seus dedos, e ao fim de um ano voltaram a ir lá acima e viram que as letras estavam tal como
as haviam escrito um ano antes, tão frescas como estavam no primeiro dia, sem qualquer defeito. E por isso parece-nos certamente que essas montanhas passam através das nuvens até ao ar puro .
Nessa cidade de Constantinopla está o palácio do Imperador, muito belo e bem construído; e ao seu lado está um lugar magnífico preparado para os torneios. Há terraços construídos a toda a sua volta, e degraus, e os homens podem sentar-se neles, um por cima do outro, para verem o torneio, de forma a que ninguém atrapalhe ninguém nem lhe tape a vista. E debaixo dos terraços há estábulos, com belas abóbadas, para os cavalos do Imperador; e todos os pilares são de mármore. E na igreja de Santa Sofia uma vez um imperador queria colocar os restos do corpo do seu pai, quando ele morreu; e escavaram o túmulo, e encontraram um corpo na terra, e sobre o corpo estava um grande placa de ouro, e nela estava escrita em Hebreu, em Grego e em Latim, Lhesus Christus nascetur de uirgine Maria; et ego credo in eum, o que quer dizer, ‘Jesus Cristo nascerá da Virgem Maria, e eu acredito Nele’. E a data de quando isto foi escrito e enterrado naquele túmulo era de dois mil anos antes da Encarnação de Cristo. E essa placa continua no tesouro da igreja; e os homens dizem que o corpo era o corpo de Hermogenes, o homem sábio.
Em Constantinopla estão a esponja e a cana com que os Judeus deram a Nosso Senhor de beber quando Ele estava pregado na Cruz. Alguns homens acreditam que metade da Cruz de Cristo está em Chipre, numa abadia de monges que é chamada a Colina da Santa Cruz; mas isto não é verdade. Porque essa cruz que está em Chipre é a cruz em que Dismas o bom ladrão foi pendurado. Mas nem todos os
homens sabem isso, e isto está mal feito. Porque para poderem receber ofertas dizem que é a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Se desejais saber qualquer coisa sobre o ABCD da Grécia e que géneros de letras usam, aqui podeis vê-las, e os seus nomes também :
ESQUEMA pg. 52
4
Sobre São João Evangelista;
e sobre a filha de Hipócrates,
transformada na forma de um dragão
E embora estas coisas não se prendam com ensinar-vos o caminho para a Terra Santa, no entanto tocam aquilo que eu prometi mostrar-vos, ou seja os costumes, as maneiras, e as diversidades dos países. E como a terra da Grécia é o país mais próximo que varia e é discordante na fé, falei em tudo isso em consequência, para que possais conhecer as diferenças entre a nossa crença e a deles. Porque muitos homens desejam ouvir falar das coisas que não lhes são familiares e tomam prazer nisso.
Agora regresso ao ensinamento do caminho de Constantinopla para a Terra Santa. Aquele que for através da Turquia vai para a cidade que se chama Niceia e assim através do Portão de Ciboto e a montanha de Ciboto, que é muito alta; fica a uma légua e meia da cidade de Niceia. Quem passar de Constantinopla para a Terra Santa por mar irá pelo Braço de São Jorge, e depois, navegando o Mar Grego, ao largo de um lugar onde jaz São Nicolau, e de muitos outros lugares. E primeiro os homens chegam a uma ilha chamada Chios. E nessa ilha cresce almécega, em árvores pequenas, e escorre delas como que a resina das amoreiras ou das cerejeiras.
Depois os homens passam para a ilha de Patmos, onde São João Evangelista escreveu o Apocalipse. E deveis saber que quando Nosso Senhor morreu São João tinha trinta e dois anos de idade, e depois da Paixão de Cristo viveu mais sessenta e dois anos. De Patmos os homens passam para Efeso, uma bela cidade, junto ao mar. E aqui São João morreu, e foi enterrado num túmulo atrás do altar. E é uma excelente igreja; porque os homens Cristãos costumavam possuir a cidade. Mas agora está ocupada pelos Turcos, tal como toda a Ásia Menor; e por isso a Ásia Menor é chamada Turquia. No túmulo de São João muitos não encontram nada a não ser maná, porque alguns homens dizem que o seu corpo foi transladado para o Paraíso. E deveis compreender que São João mandou fazer o seu túmulo enquanto estava vivo e ali se deitou ainda vivo; e por isso alguns dizem que ele nunca morreu, e apenas repousa até ao Dia do Juízo. E realmente esta é uma grande maravilha, porque os homens podem muitas vezes ver a terra do túmulo agitar-se e abanar, como se por baixo estivesse uma coisa viva.
A partir de Efeso os homens passam por muitas ilhas no mar até à cidade de Patera, onde São Nicolau nasceu, e depois para a cidade de Mira, onde foi escolhido para ser Bispo. Aqui cresce uma vinha muito forte, chamada a vinha de Mira. Daqui os homens passam para a ilha de Creta, que o Imperador ofereceu uma vez aos Genoveses. E daqui os homens fazem o seu caminho pela ilha de Cos, e pela ilha de Lango, ilhas essas das quais Hipócrates foi o senhor.
E alguns dizem que na ilha de Lango está a filha de Hipócrates, na forma de um dragão , que tem cem pés de comprido –– tal como os homens dizem, porque eu próprio não o vi. Foi transformada de jovem formosa em dragão por causa de uma deusa que se chama Diana. E diz-se que vai ficar assim até que venha um cavaleiro de Rodes que seja suficientemente corajoso para se atrever a ir até ela e beijá-la na boca . Nessa altura ela voltará à sua forma verdadeira e será uma mulher, mas só viverá pouco tempo depois disso.
Desta ilha os homens passam para a ilha de Rodes, que os Hospitalários conquistaram e governam. Ganharam esta ilha ao Imperador de Constantinopla. Já foi chamada Colos e ainda é assim que os Turcos lhe chamam. E São Paulo escreveu ao povo dessa ilha na Epístola aos Colossianos .
5
Sobre coisas diferentes em Chipre;
Sobre a estrada de Chipre para Jerusalém;
E sobre a maravilha de uma vala cheia de areia
Da ilha de Rodes os homens passam ao largo para a ilha de Chipre, onde há muitas vinhas, das quais se faz um vinho forte e muito nobre; no primeiro ano é vermelho, e depois de um ano torna-se branco, e, quanto mais velho fica, mais branco se torna, e mais claro e forte, e melhor é o seu bouquet. No caminho para Chipre os homens passam por um lugar que se chama o Golfo de Catali, que era dantes uma grande e belo país, onde ficava uma grande cidade.
De Rodes a Chipre são cerca de quinhentas milhas; mas os homens podem viajar para Chipre e não parar em Rodes. Chipre é uma bela ilha, e bastante grande; há várias cidades boas, mas principalmente quatro. Há também três bispos e um arcebispo. O Arcebispado está em Nicósia. A cidade principal de Chipre está em Famagusta; e aqui fica o melhor porto do mundo. Cristãos e gentios e homens de todas as nações aportam aqui. E em Chipre há outro porto na cidade de Limassol. Em Chipre também há a Montanha da Santa Cruz, onde há uma abadia de monges, e aí está a cruz do bom ladrão Dismas, como disse antes. E alguns acreditam que metade da cruz de Nosso Senhor está lá, mas isso não é verdade. Em Chipre jaz Santa Genoveva, pela qual os homens deste país celebram um grande e solene festival. E no castelo de Amours jaz o corpo de Santo Hilário, que está guardado com grandes honras. Em Chipre os homens caçam com papiões que são como leopardos; e apanham muito bem as bestas selvagens –– melhor e mais rapidamente que os mastins. E são de certa forma maiores que os leões. Em Chipre dita o costume que todos os homens, senhores e outros, comam a sua comida no chão. Porque fazem covas na sala, à altura dos joelhos, e têm-nas bem pavimentadas; e quando querem comer, vão para essas covas e sentam-se. E isto é para estarem mais frescos, porque essa terra é mais quente do que a nossa. Nas grandes festas, e para os estrangeiros que lá vão, instalam mesas e bancos como os homens fazem no nosso país; mas preferem sentar-se na terra.
Em Chipre há um lago a meia milha do mar, cuja água em certas alturas se congela em sal muito bom; e por isso os barcos que vêm de Jerusalém vão até lá para se abastecerem de sal.
De Chipre os homens vão por mar e por terra para Jerusalém, e num dia e uma noite aquele que tiver um bom vento pode chegar ao porto de Tiro, que agora se chama Sûr; e este é o porto de entrada na Síria. Havia aqui dantes uma bela cidade de homens Cristãos, mas os Sarracenos destruíram grande parte dela. E guardam o porto com muita força por causa do medo que têm dos homens Cristãos. Os homens poderiam passar directamente para esse porto sem acostarem a Chipre, mas vão a Chipre com grande alegria para se refrescarem nessa terra, e também carregam os navios com sal, como vos disse antes –– e para comprarem outras coisas de que necessitam para as suas vitualhas. Na orla da costa de Tiro, de vez em quando, encontram-se muitos rubis. E há também o poço do qual o Livro Sagrado diz isto: Fons ortorum, puteus aquarum uiuencium . Nesta cidade de Tiro a mulher Samaritana disse estas palavras a Nosso Senhor: Beatus uenter qui te portauit et ubera que suxisti, o que é como dizer, ‘Benditos sejam o ventre que Te criou e as mamas em que Tu mamaste’ . E aqui Nosso Senhor perdoou os seus pecados à mulher de Canaan. Diante da cidade de Tiro estava dantes a pedra em que Nosso Senhor se sentava e pregava; e nessa pedra foi fundada a igreja do Santo Salvador.
E a oito milhas de Tiro junto à costa fica a cidade de Sûrafend, virada para Leste. O profeta Elias costumava deambular por aqui, e foi aqui que Jesus Nosso Senhor ressuscitou dos mortos o filho da viúva. E cinco milhas mais à frente fica a cidade de Sidon, e desta cidade Dido, que foi a mulher de Eneias depois da destruição de Troia, era rainha. E Dido fundou Cartago em África, que agora se chama Dydoncato. Na cidade de Tiro governou Agenor, o pai de Dido. E a dezoito milhas de Sidon fica a cidade de Beirute. E a três dias de jornada de Beirute fica a cidade de Saidenaya. E a cinco milhas dali fica a cidade de Damasco.
Quem queira viajar mais adiante por mar e chegar perto de Jerusalém irá de Chipre até Jaffa porque esse é o porto mais próximo de Jerusalém. Aqui fica a cidade de Joppa, mas chamam-lhe Jaffa segundo o nome de um dos filhos de Noé, que era Japheth, e que foi o seu fundador. E alguns homens dizem que é a cidade mais antiga do mundo, porque foi fundada antes do Dilúvio de Noé. E aqui encontram-se os ossos de um gigante chamado Andromeda , e uma das suas costelas tem cinco pés de comprido. Quem chega ao primeiro porto, Tiro (de que já falei), pode se quiser ir por terra para Jerusalém. Irá para a cidade de Acre, a que às vezes chamam Ptolemais, a um dia de jornada de Tiro. E esta já foi uma cidade de homens Cristãos, mas está quase toda destruída. E por mar, de Veneza ao Acre, são duas mil e quatro milhas da Lombardia; e da Calábria ou da Sicília para o Acre são mil e trezentas milhas. E a ilha de Creta fica directamente no caminho. Junto à cidade de Acre, a seis oitavos de milha na direcção do mar, à direita para o Sul fica o Monte Carmelo, onde viveu o profeta Elias. E aqui foi fundada a ordem dos monges Carmelitas. Esta montanha não é muito grande nem muito alta. No sopé da montanha havia dantes uma boa cidade de homens Cristãos, e chamava-se Haifa, porque foi fundada por Caiafás; mas agora está deserta. À esquerda da montanha fica uma cidade chamada Seffûrich que foi construída noutra montanha. Foi aqui que nasceram São Tiago e São João: e no local do seu nascimento ergue-se uma bela igreja. Do Acre até uma montanha a que os homens chamam a Escada de Tiro são cem oitavos de milha.
E junto ao Acre corre um rio pequeno, chamado o Abellin, e aí perto fica a Fossa de Mynon, completamente redonda, com cerca de cem cúbitos de largura; e está cheia de gravilha, conforme já disse.
Do Acre fazem-se três dias de jornada até à cidade de Philistia, que agora se chama Gaza, e é uma cidade muito bela, cheia de riqueza e de povo. Foi desta cidade para uma colina fora dela que Sansão o Forte carregou os portões, que eram feitos de bronze. E nessa cidade matou ele o Rei no seu Palácio, e mais trezentas outras pessoas, e ele com elas. Porque o tinham capturado e o tinham cegado, e cortado o cabelo, e posto na prisão. E nos seus festivais trouxeram-no diante deles e fizeram-no dançar para eles e diverti-los. E então, num grande dia do festival, quando estava cansado de dançar diante deles, pediu ao homem que os conduzia que o levasse ao pilar que sustentava todo o edifício; e agarrou no pilar com o braço e abanou todo o edifício sobre eles, e portanto matou-se e matou todos os que estavam dentro dele, tal como é dito na Bíblia, em Juízes xvi. Desta cidade os homens podem ir até à cidade de Caesarea e assim ao Castelo dos Peregrinos, e daí para Jaffa, e assim para Jerusalém.
Aquele que quer antes de mais nada ir para Babilónia, onde se encontra o Sultão, para obter licenças e viajar com mais segurança por estes países, e para ir ao Monte Sinai antes de ir a Jerusalém, irá de Gaza até ao Castelo de Darum. E daqui um homem passa para a Síria e entra no deserto, onde a estrada é muito arenosa. A jornada pelo deserto demora oito dias. No entanto os homens podem encontrar todas as provisões de que precisam ao longo do caminho. Esta zona selvagem chama-se Et-Tih. E quando um homem sai deste deserto entra no Egipto, que também se chama Canopak; e noutra língua chama-se Merfyne. E a primeira cidade boa que os homens encontram chama-se Belbays, e fica na fronteira com o reino de Aleppo. E dali os homens vão para Babilónia e para a cidade do Cairo.
No lado Sul da Etiópia, e também no Norte, há grandes desertos que se estendem até às lonjuras da Síria. E portanto o Egipto é forte em todos os lados. A terra do Egipto, em comprimento, é de quinze dias de jornada, mas de espessura é apenas três, se não contarmos os desertos. Entre o Egipto e a terra a que se chama Núbia são doze dias de jornada através dos desertos. Os homens que vivem nesse país são chamados os Núbios e são Cristãos. Mas são pretos de cor, e isso eles consideram uma grande beleza, e quanto mais pretos são mais belos parecem aos olhos dos outros. E dizem que se tivessem que pintar um anjo e um demónio, pintariam o anjo preto e o demónio branco. E se não parecerem suficientemente pretos quando nascem, usam certas medicinas para os tornarem mais escuros. Este país é maravilhosamente quente, o que faz os seus habitantes muito pretos.
Há cinco distritos no Egipto. Um chama-se Saîd, o outro Damanhûr, o terceiro Rosetta (é uma ilha no rio Nilo), o quarto Alexandria e o quinto Damietta. A cidade de Damietta já foi muito forte; mas foi tomada duas vezes por homens Cristãos, e depois disso os Sarracenos destruiram-lhe as muralhas, e as de todos os castelos do distrito. E construíram uma cidade nova e chamaram-lhe Nova Damietta. Nesta cidade de Damietta fica um dos portos do Egipto, e o outro está em Alexandria, que é uma cidade forte e bem murada. Mas não têm qualquer água, à excepção da que vem em condutas do rio Nilo. E portanto, se algum homem cortasse a água dessas condutas, os habitantes não conseguiriam resistir muito tempo. No Egipto há poucos castelos, porque o país é suficientemente forte só por si.
Houve uma vez, há muito tempo, em que um santo eremita, que vivia num desses desertos do Egipto, se encontrou com uma besta monstruosamente deformada: pois que tinha a forma de um homem do umbigo para cima, e para baixo tinha a forma de uma cabra, com dois cornos que se erguiam no alto da sua cabeça. O eremita perguntou-lhe, em nome de Deus, o que era ele; e a besta respondeu: “sou uma criatura mortal, pois Deus me fez, e neste deserto vivo, e o percorro procurando subsistência. Por isso reza tu, eremita, reza a Deus por mim, para que Aquele que veio do Céu à Terra para a salvação da alma dos homens, e que nasceu de uma virgem, e que sofreu uma amarga Paixão, pela qual todos vivemos, e nos movemos, e temos a nossa alma, possa Ele ter piedade de mim”. A cabeça dessa besta, com os cornos, continua guardada em Alexandria como uma coisa maravilhosa.
No Egipto também existe uma cidade a que chamam Heliopolis – o que quer dizer “a cidade do sol”. Nesta cidade há um templo redondo como o Templo de Jerusalém. O padre desse templo tem um livro onde está escrita a data de nascimento de um pássaro a que chamam a Fénix; e só existe uma no mundo. E este pássaro vive quinhentos anos, e no fim do quinhentésimo ano vem até ao templo e faz-se arder nas chamas do altar até dele não restarem mais do que cinzas no altar. E o padre do templo, que conhece o dia da vinda do pássaro a partir do seu livro, prepara o altar e cobre-o de várias especiarias, de enxofre virgem e de raminhos de azevinho, e de outras coisas que ardem depressa. E depois o pássaro chega e inflama-se no altar, e agita as suas asas até todas as coisas mencionadas estarem inflamadas; e só então se deixa arder até ficar reduzido a cinzas. Na manhã seguinte os homens encontram as cinzas como se fossem um verme; no segundo dia esse verme transformou-se num pássaro já completamente formado; e no terceiro dia esse pássaro voa do templo para o lugar onde vive normalmente. E por isso nunca há mais do que um. Este mesmo pássaro é um símbolo de Nosso Senhor Jesus Cristo, uma vez que também só há um só Deus, que ressuscitou ao terceiro dia da morte para a vida. Este pássaro é muitas vezes visto flutuando nas alturas, quando o tempo está sereno e claro; e os homens dizem que, quando vêem o pássaro a subir no ar, sabem que a seguir terão anos bons e felizes, porque este é o pássaro do Céu. Este pássaro não tem o corpo maior do que o de uma águia; tem na sua cabeça uma crista como a do pavão, mas muito maior que a do pavão, O seu pescoço é amarelo, as suas costas azul indigo; as suas asas são vermelhas e a sua cauda tem várias barras de verde e amarelo e vermelho. E na luz do sol parece maravilhosamente belo, pois estas são as cores que brilham com mais beleza.
No Egipto há lugares em que a terra dá fruto oito vezes por ano. E aqui encontram-se no chão as mais belas esmeraldas de que há memória; e esta é a razão porque são aqui tão baratas, ao contrário de todos os outros lugares. E deveis também saber que, se acontecer chover no Verão, toda a terra do Egipto fica cheia de ratos. Na cidade do Cairo homens e mulheres que nasceram noutros países são frequentemente trazidos ao mercado e vendidos, tal como os homens vendem bestas nos outros países. Existe também, na cidade do Cairo, um edifício público cheio de buracos – de certa forma, à maneira dos ninhos de galinha; e as mulheres deste país trazem para aqui ovos de galinha, de pato, de ganso, e põem-nos nos ninhos. E algumas pessoas têm como emprego tomar conta desse edifício e cobrem os ovos com estrume de cavalo ainda quente. E através do calor do estrume de cavalo nascem pintos dos ovos sem terem sido chocados pela galinha nem por nenhum outro pássaro. E ao fim de três ou quatro semanas as mulheres que trouxeram os ovos voltam e levam consigo os pintos e criam-nos de acordo com os costumes do país. E desta forma todo o país está abastecido com este tipo de pássaros. E fazem isto tanto no Verão como no Inverno .
Neste país vende-se um certo tipo de maçãs muito longas , a que os homens chamam as maçãs do Paraíso.
6
Dos vários nomes dos Sultões;
Das suas terras;
E sobre a Torre de Babilónia
No Cairo, ou Babilónia , fica uma bela igreja de Nossa Senhora; Ela parou aqui durante oito dias quando fugiu da terra da Judeia com medo do Rei Herodes. E aí jaz o corpo da virgem sagrada Santa Bárbara, e José esteve aqui quando os seus irmãos o venderam ao Egipto. E foi aqui também que o Rei Nabucodonosor mandou queimar as Três Crianças na fogueira, porque mantiveram a Verdadeira Fé. E estas crianças eram Anay, Azary e Mysael, como diz o salmo Benedicte. Mas Nabucodonosor chamou-lhes outros nomes, que foram Sydrak, Mysak e Abdenago ; o que é o mesmo que dizer Bom Glorioso, Bom Vitorioso e Bom Sobre Todos os Reinos; e isso foi por causa do milagre a que ele assistiu, quando viu o Filho de Deus caminhar com as crianças para cima e para baixo no fogo. Na Babilónia fica geralmente a residência do Sultão, num belo, grande castelo, construído no alto de um rochedo. Nesse castelo há sempre mais de oito mil homens, para o guardarem e servirem o Sultão, e o Sultão mantém todas as suas necessidades. Devo dizer que conheço a organização deste país muito bem, porque vivi por muito tempo com o Sultão e alistei-me como soldado com ele durante a guerra contra os Beduínos. E ele queria arranjar para mim um grande casamento com a filha de um príncipe, e dar-me muitas nobrezas se eu abandonasse a minha fé, mas isso eu não quis.
E deveis compreender que o Sultão é senhor de cinco reinos, que ganhou por conquista e de que se apropriou. E esses reinos são estes: o Egipto, e o reino de Jerusalém, de que já foram reis David e Salomão; a Síria, que tinha a capital na cidade de Damasco; o reino de Allepo e a terra de Hamasth; e o reino da Arábia, de que foi rei um dos Três Reis Magos que trouxe oferendas ao Menino Jesus na Manjedoura quando ele nasceu. O Sultão governa muitas outras terras. E é chamado o Califa, que é um nome de dignidade e honra, e é equivalente ao Rei; porque o Sultão é uma grande autoridade entre eles como o Rei é entre nós no nosso país. E deveis saber que existiam outrora cinco Sultões, de acordo com o número de cinco reinos que pertencem ao Sultão actual. Mas agora só existe um Sultão, que se chama o Sultão de Babilónia.
O primeiro Sultão do Egipto chamava-se Sheerkooh, e era o pai de Saladino; que foi Saladino segundo Sheerkooh, na altura em que Ricardo Coração de Leão estava nestas partes com o seu exército de homens Cristãos. Depois de Saladino reinou o seu filho al-Afdal, e depois dele reinou o seu sobrinho. Quando ele morreu, o povo do Egipto considerou-se oprimido e escravizado, e viram que eram fortes devido aos seus números; e foram e escolheram um deles para ser Sultão; e chamou-se as-Salih Ayub. E nesta altura Luís o Rei da França foi para a Terra Santa e lutou com o Sultão, onde o Rei foi capturado e posto na prisão. O mesmo Sultão foi depois assassinado pelos seus servos e outro foi escolhido para o seu lugar, que se chamava Turanshah. E ele pediu um resgate pelo Rei Luís e libertou-o da prisão. Depois, um dos membros do povo, chamado Cothas, assassinou Turanshah, e foi feito Sultão no seu lugar; e fez que lhe chamassem ad-Din Aibek. Pouco depois, outro membro do povo, Benochdaer de seu nome, assassinou-o e reinou em seu nome, e recebeu o nome de Baibars. Nesse tempo o bom Rei Eduardo foi para a Síria e fez muitos estragos entre os Sarracenos. O mesmo Sultão foi envenenado em Damasco e morreu lá. E depois dele o seu filho mais velho deveria ter reinado como o próximo herdeiro; e fez que lhe chamassem Baraqa. Mas em breve outro popular chamado Qalawun veio com um grande grupo e expulsou Baraqa do país, e fez-se a si próprio Sultão. Tomou a cidade de Tripoli e matou aí muitos homens Cristãos no ano de Nosso Senhor de 1279. Depois, Qalawun foi envenenado por um qualquer outro que também queria ser Sultão; e também esse foi assassinado pouco depois. E então o filho de Qalawun foi escolhido para Sultão , e chamaram-lhe al-Ashraf Khalil. Tomou a cidade do Acre e expulsou de lá os Cristãos. Depois morreu de veneno e o seu irmão tomou o seu lugar e foi chamado an-Nasir. Pouco depois um homem chamado Guytoga tomou o lugar deste Sultão e aprisionou-o no Castelo de Monte Real e reinou ele como Sultão e chamou-se al-Adil. Como era estrangeiro – o que quer dizer, um Tártaro – foi expulso daquela terra; e outro chamado Bathyn foi feito Sultão e chamado an-Din. E um dia, quando estava a jogar xadrez, com a espada deitada no chão ao seu lado, começou a discutir com o seu adversário, que agarrou na espada e o matou. E depois houve uma grande discórdia entre eles sobre quem deveria ser o próximo Sultão. Por fim todos concordaram que an-Nasir, já mencionado, que al-Adil tinha aprisionado no castelo de Monte Real, devia ser o seu Sultão. Esse mesmo an-Nasir reinou durante muito tempo e governou com grande sabedoria, de tal forma que após a sua morte o seu filho mais velho foi nomeado Sultão e foi chamado al-Mansur. O seu irmão fê-lo assassinar secretamente e reinou no seu lugar, e fez-se chamar al-Ashraf. E era ele o Sultão quando eu deixei aquela terra.
O Sultão pode despachar do Egipto mais de vinte mil homens de armas; e do reino da Síria e da Turquia, e dos outros reinos que estão sob as suas ordens, pode juntar mais de cinquenta mil. E todos recebem do Sultão os seus salários e tudo aquilo de que precisam; o que quer dizer que cada homem recebe por ano seis florins; mas cada homem mantém três cavalos e um camelo. E entre eles são designadas, em cada cidade ou vila, certas pessoas a que chamam emires, e cada emir deve ter ao seu comando quinhentos ou seiscentos homens de armas e alguns comandam ainda mais. E cada emir deve receber para si próprio tanto quanto todos os que estão abaixo dele recebem juntos. E portanto, quando o Sultão quer fazer avançar qualquer homem bom que tenha consigo, torna-o emir. E se alguma escassez ocorre no país, os cavaleiros e soldados mais pobres têm que vender o seu equipamento por causa da pobreza.
O Sultão tem três mulheres, uma das quais deve ser Cristã e as outras duas Sarracenas. E uma dessas mulheres deve viver em Jerusalém, outra em Damasco, e a outra em Ascalon. E quando lhe dá prazer vai visitá-las, e outras vezes trá-las para junto de si. No entanto, tem concubinas, tantas quantas lhe apraz ter; porque, quando vem a qualquer vila ou cidade, faz com que tragam perante ele as mais nobres e mais belas virgens de toda a região vizinha, e faz com que tratem delas com nobreza e dignidade. E quando o Sultão deseja uma delas, faz com todas sejam trazidas perante ele, e àquela que lhe inspire mais prazer entrega um anel que tira do seu dedo. E então ela será lavada e perfumada e vestida de forma muito rica e depois da ceia será levada até à sua câmara. E o Sultão faz isto sempre que quer. Nenhum estranho deve vir diante do Sultão a menos que se cubra com um manto de ouro da Tartaria, ou com formas de vestir que os Sarracenos usam. E quando alguém vê o Sultão, numa janela ou noutro sítio, deve ajoelhar-se e beijar a terra; pois essa é a maneira que ali se usa para prestar reverência ao Sultão quando alguém quer falar com ele. E quando qualquer estrangeiro vem ter com ele como mensageiro de uma terra distante, os seus homens colocam-se à sua volta de espadas desembainhadas, e com as mãos levantadas para o despedaçarem se disser alguma coisa que desagrade ao Sultão. Ninguém pode vir falar com ele sem ter o seu acordo prévio, pois tem que ser razoável e não pode contrariar a lei. E assim fazem todos os outros príncipes e senhores deste país, porque dizem que nenhum homem pode ter uma audiência com um príncipe sem sair mais feliz do que veio.
Deveis compreender que a Babilónia de que aqui falo, onde vive o Sultão, não é a Grande Babilónia, onde aconteceu a Confusão das Línguas, quando a Torre de Babilónia estava a ser construída. As suas paredes tinham sessenta e três oitavos de milha de altura, e ficava nos desertos da Arábia quando se vai em direcção à Caldeia. Mas já há muito tempo que ninguém se atreve a aproximar-se daquela zona malfadada; porque é vasta, e tão cheia de dragões e cobras e outras bestas venenosas que nenhum homem se atreve a aproximar-se. A circunferência da Torre, com a extensão da cidade que dantes aí se encontrava, é de cerca de vinte e cinco milhas de diâmetro, pelo que dizem nesse país. E embora lhe chamassem uma Torre, no início existiam dentro dela muitos edifícios, que agora estão destruídos; não existe nada senão deserto selvagem. E deveis saber que tinha quatro bases quadradas, e cada lado tinha pelo menos seis milhas de comprido. Nemrod fez esta mesma Torre, e era rei deste país. E os homens dizem que ele foi o primeiro Rei desta Terra. Também teve uma imagem feita em memória do seu pai, e mandou todos os seus súbditos venerarem essa imagem. Outros grandes senhores das redondezas fizeram o mesmo; e foi assim que começou a idolatria. A mesma cidade, Babilónia a Grande, estava construída numa planície muito bela, que se chamava a Terra de Shinar, na margem do rio Eufrates, que corria nessa altura através da cidade. E as paredes da cidade tinham vinte cúbitos de altura e cinquenta cúbitos de espessura. Mas mais tarde Ciro, rei da Pérsia, cortou o abastecimento da água e destruiu a cidade e toda a terra à sua volta. Desviou o curso do Grande Rio Eufrates, e fê-lo correr por trezentos e quarenta canais diferentes. Porque tinha feito um grande voto, e jurado muito seriamente, de que traria a cidade ao ponto em que as mulheres poderiam passá-lo a vau e não molhar os seus corpos; e assim o fez. E a razão por que o fez foi porque nesse rio se tinham afogado muitos dos seus homens mais valorosos.
Desta Babilónia onde governa o Sultão até à Grande Babilónia são quarenta dias de jornada, viajando para nordeste através do deserto. E a Grande Babilónia não está sujeita ao Sultão mas caiu sob o poderio do Rei da Pérsia. Ele domina-a com a permissão do Grande Khan, que é um grande imperador –– na verdade, o maior imperador do mundo, porque é o senhor da grande terra de Cathay e de muitos outros países, e de grande parte da Índia. A sua terra confunde-se com as terras do Preste João ; e tem tantos domínios que não conhece o seu fim. É, sem comparação, maior e mais poderoso que o Sultão. Do seu grande território e majestade tenciono falar, mais tarde, quando chegar a hora.
Nos grandes desertos da Arábia fica a cidade de Meca e aqui jaz o corpo de Maomé, muito honrado, num templo a que os Sarracenos chamam uma Mesquita . E esta cidade fica a trinta e dois dias de viagem da Babilónia onde reina o Sultão. Deveis saber que o território da Arábia é muito vasto, mas dentro dele há muitos desertos, que não podem ser muito habitados por causa da falta de água. Porque estes desertos são tão secos e arenosos que nada consegue crescer neles. Mas onde a terra está habitada há uma quantidade muito grande de pessoas. A Arábia estende-se do fim da Caldeia até ao fim de África, e é contígua à Idumeia em direcção a Bosra. A cidade mais importante da Caldeia é Bagdade, e da África a cidade mais importante é Cartago, que foi fundada por Dido, que foi a mulher de Eneias, o primeiro rei de Tróia e o último de Itália. A Mesopotâmia também entra pelos desertos da Arábia, e é um grande país, onde se encontra a cidade de Harran, onde em tempos viveu o Patriarca Abraão. Desta cidade vieram os grandes sábios Efraim Siro e São Teófilo o Penitente, que a Virgem Maria libertou da escravatura do Demónio, tal como se encontra escrito no Livro dos Milagres de Nossa Senhora. A Mesopotâmia estende-se do Rio Eufrates ao Rio Tigre; o reino encontra-se contido entre esses dois grandes rios. E para lá do Tigre fica o reino da Caldeia, que é um país muito vasto. Nesse país, como já disse antes, é na cidade de Bagdade que costuma estar o Califa –– era o Papa e o Imperador daquele povo, o que quer dizer que é senhor das temporalidades e das espiritualidades. E era o sucessor de Maomé e da sua família. Esta cidade de Bagdade chamava-se antes Susis, e foi fundada por Nabucodonosor. Aqui viveu o profeta Daniel, e muitas vezes teve visões mandadas por Deus; e aqui interpretou os sonhos do Rei. Desde o tempo do Sultão Saladino, o Califa passou a chamar-se Sultão.
A cidade do Cairo, ou a Babilónia Menor, onde o Sultão vive, também é uma cidade muito bela. Fica situada nas margens do rio Gibon, que também se chama o Nilo, e que vem do Paraíso Terrestre . Todos os anos, quando o sol entra no Signo de Cancer, este rio começa a crescer, e cresce continuamente enquanto o sol está nesse signo e no signo de Leo. Cresce tanto que algumas vezes tem vinte cúbitos de profundidade, e depois inunda toda a terra circunvizinha e faz frequentemente muitos estragos nos lugares que ficam ao pé do rio. Pois nenhum homem pode nesse tempo tratar do cultivo do campo, e assim acontece que há uma grande escassez de milho nesta estação por causa do excesso de água. E, da mesma forma, há fome quando o rio só sobe um bocadinho, porque a terra fica seca demais. E quando o sol entra no signo de Virgo, o Nilo começa a descer até o sol entrar em Libra, e então mantém-se dentro do seu leito. Este rio, como já disse antes, vem do Paraíso terrestre e corre através dos desertos da Índia, e depois mergulha na terra e corre durante muito tempo debaixo dela; volta a aparecer à superfície no sopé de uma grande montanha chamada Atlas, que fica entre a Índia e a Etiópia. E depois corre a toda a volta da Etiópia e da Mauritânia, e assim através de todo o comprimento do Egipto, até chegar a Alexandria. Aqui entra no mar, onde o Egipto acaba. Ao longo deste rio há muitos pássaros, que são chamados cegonhas e íbis.
7
Sobre o país do Egipto;
Sobre a Fénix da Arábia;
Sobre a cidade do Cairo;
Como conhecer o bálsamo;
Sobre os Celeiros de José.
A terra do Egipto é longa mas é estreita, porque os homens não conseguem habitar no seu seio devido ao deserto, onde há uma grande falta de água; e portanto é habitada a todo o comprimento ao longo do rio. Pois não têm humidade a não ser aquele que o dito rio fornece; pois ali não chove, mas a terra é inundada pelo rio em certas alturas do ano, como já disse antes. E como não há distúrbios do ar causados por quaisquer chuvas, e o ar é sempre limpo e claro, sem nuvens, e por isso costumavam existir ali os melhores astrónomos do mundo. A supracitada cidade do Cairo, onde está instalado o Sultão, fica a pouca distância do Rio Nilo, na direcção do deserto da Síria. O Egipto está dividido em duas partes: uma entre o Nilo e a Etiópia, e a outra entre o Nilo e a Arábia. No Egipto ficam o reino de Ramsés e o reino de Goshen, onde viveram o Patriarca José e a sua descendência. O Egipto é um país muito forte; e nele existem vários portos deveras perigosos, porque em cada porto estão barreiras de pedra em cada entrada. A Leste do Egipto está o mar Vermelho, que se estende até às lonjuras de Kus. E para Oeste fica o país da Líbia que, devido ao excesso de calor, é totalmente estéril e não dá qualquer espécie de fruto. No lado Sul da Etiópia, e também no Norte, há grandes desertos que se estendem até às lonjuras da Síria. E portanto o Egipto é forte em todos os lados.
E neste país, numa certa altura do ano, vendem-se aquelas maçãs muito longas de que já falei , a que os homens chamam maçãs do Paraíso. São doces e deliciosas na boca. E, quando se cortam, encontra-se-lhes sempre no meio a figura da cruz. Mas apodrecem em oito dias, e por isso não podem ser levadas para terras distantes. As árvores onde elas crescem têm folhas com um metro e meio de largura; o mais comum é os homens encontrarem cachos de cem destas maçãs. Há também outras maçãs a que os homens chamam maçãs de Adão , e cada uma tem de lado como que uma marca de dentes, à semelhança de uma dentada humana. Também há figueiras que nunca dão folhas, mas que ostentam os figos nos seus ramos. E chamam-lhes os figos do Faraó. Um pouco para fora da cidade do Cairo fica um campo onde o bálsamo cresce em arbustos pequenos, com cerca de um pé de altura, e parecem vinhas selvagens. Também neste campo há sete poços, onde Cristo, na sua juventude, costumava brincar com outras crianças; e aqui mostrou Ele várias maravilhas. O campo não está tão bem vedado que quem queira não consiga entrar, excepto na estação em que cresce o bálsamo – nessa altura o bálsamo é tratado e vigiado com muito cuidado. Porque não cresce em mais nenhum lado senão ali. Porque se plantas ou rebentos forem levados para outros sítios, podem crescer mas não frutificam. As folhas do bálsamo não cheiram tão bem como o próprio bálsamo. Os ramos mortos são cortados com um instrumento feito de propósito para este trabalho, mas que não é de ferro: os homens cortam-no com uma pedra ou um osso aguçado. Se o instrumento fosse de ferro, viciaria a virtude e a natureza das árvores, como foi muitas vezes comprovado pela experiência. Os Sarracenos chamam à árvore que dá o bálsamo enochbalse, e ao fruto chamam abebissan. Mas à resina que escorre dos ramos chamam oxbalse, o que quer dizer opobalsamum. Alguns homens dizem que o bálsamo também cresce na Grande Índia, no deserto onde as árvores do Sol e da Lua falaram com Alexandre o Grande. Mas eu não vi esse lugar devido ao caminho perigoso que lá leva, portanto não posso comprovar a verdade disto. E deveis compreender que um homem pode ser facilmente enganado ao comprar bálsamo a menos que tenha um bom conhecimento da matéria. Porque alguns vendem uma espécie de goma chamada terebintina, e juntam-lhe um pouco de bálsamo para cheirar bem. Alguns misturam-no com o óleo da árvore das bagas e dizem que é bom bálsamo. Alguns destilam cravinho, noz moscada e outras especiarias de cheiro doce, e vendem o líquido assim destilado como se fosse bálsamo; e desta forma muitos homens são enganados. Porque os Sarracenos fazem estas adulterações para iludir os homens Cristãos, como eu próprio verifiquei por experiência. Os comerciantes e boticários, depois, também introduzem as duas próprias adulterações, mas são de menos valor. Agora, se vos apraz, posso mostrar-vos como testar se o bálsamo é verdadeiro para não serdes enganados. Deveis saber que o bálsamo que é natural e bom é de um amarelo claro e tem um cheiro doce muito forte. Se for espesso, vermelho ou preto, é adulterado. Ou toma-se um pouco de bálsamo e põe-se na palma da mão e vira-se a palma da mão para o sol; e se não conseguirmos aguentá-lo ali muito tempo por excesso de calor, é bom bálsamo. Também se pode por um pouco de bálsamo na ponta de uma faca e aproximar-lhe a chama: se arder, é bom sinal. Ou toma-se uma gota de bálsamo e põe-se numa tigela ou bacia e junta-se leite de cabra: se o bálsamo for bom, o leite coalha imediatamente. Ou junta-se o bálsamo a uma bacia cheia de água e misturam-se os dois: se, no final, a água estiver limpa, o bálsamo é puro, se estiver turva é impuro. O verdadeiro bálsamo é muito mais forte do que aquele que está impuro. Agora disse-vos brevemente alguma coisa sobre o bálsamo; e a seguir irei falar-vos dos Celeiros de José, que ainda existem no Egipto para lá do Rio Nilo em direcção ao deserto entre o Egipto e África.
São os Celeiros de José que foram construídos para guardar o milho durante os sete anos de fome que foram profetizados ao Rei Faraó num sonho que este teve conforme consta do Livro Primeiro
da Velha Lei. E são feitos de forma espantosamente engenhosa com pedra bem cortada. Dois deles são maravilhosamente altos, e largos, também; os outros não são tão grandes. Cada um deles tem um alpendre na entrada. Estes mesmos Celeiros estão agora cheios de cobras; e por fora podem ver-se vários escritos em línguas diversas. Alguns homens dizem que são os túmulos de grandes homens de tempos antigos; mas a opinião comum é que são os Celeiros de José. E, de verdade, não é provável que sejam túmulos, pois que estão vazios por dentro e têm alpendres e portões à sua frente. E os túmulos não devem, em boa razão, ser tão altos como estes Celeiros .
No Egipto há diferentes línguas, e diferentes letras de formas diferentes das dos outros países; e portanto deixo aqui as letras, os seus sons, e os seus nomes, para que conheçais a diferença entre estas letras e as letras de outros países.
VER pg 67
8
Sobre a iIlha da Sicília;
Do caminho de Babilónia para o Monte Sinai;
Da igreja de Santa Catarina, e das maravilhas que lá existem.
Antes de continuar, gostaria de regressar ao ponto de partida e falar-vos de outros caminhos que o viajante pode usar para alcançar Babilónia onde está o Sultão, sem qualquer passagem pelo Egipto. Porque muitos visitantes vão lá antes, e daí para o Monte Sinai, e depois regressam por Jerusalém, como antes disse. Porque primeiro fazem a sua peregrinação mais distante, e depois regressam para os lugares sagrados que ficam mais perto, mesmo que não sejam da importância de Jerusalém, à qual nenhuma outra peregrinação pode ser comparada. Agora aquele que deseja ir para Babilónia por outro caminho, mais rápido do que todos os que falei antes, desde que seja a partir deste país ou outros que lhe fiquem perto, pode ir através da França ou da Burgandia. Não é necessário listar todas as cidades e aldeias que bordejam este caminho porque elas são bem conhecidas pelos nossos viajantes. Mas há vários portos onde podem embarcar; alguns embarcam em Génova, outros em Veneza e vão pelo Mar Adriático, que se chama Golfo da Grécia e separa a Itália da Grécia, e alguns vão por Nápoles, e outros por Roma, e alguns para Brindisi e embarcam aí –– ou, na realidade, em qualquer outro porto onde encontrem um barco e alimentos disponíveis. Também há outros que vão através da Toscânia, da Campagna, e pelas ilhas da Itália pelo caminho de Córsega, Sardenha e Sicília, que é uma ilha muito bela e grande. Nessa ilha há um jardim cheio de árvores com diferentes tipos de frutos e está sempre verde e cheio de flores, tanto no Verão como no Inverno. Esta ilha tem trezentas e cinquenta léguas de largura; e entre está apenas separada do continente por um braço de mar, chamado o Estreito de Messina. Esta ilha da Sicília fica entre o Adriático e o mar da Lombardia. Na Sicília há um certo tipo de cobra que os homens da terra estão habituados a usar como teste de se os seus filhos foram concebidos no santo matrimónio. Porque, no primeiro caso, a serpente irá à roda dos meninos sem lhes fazer qualquer mal. Mas, em caso de adultério, a serpente morderá na criança e ela morrerá. Desta forma os homens desta terra que suspeitam que os seus filhos sejam ou não fruto da malícia das suas mulheres ficarão a saber se o filho é seu ou não.
E nesta ilha há também o Monte Etna, que por outro nome também é chamado Gebel. Há chaminés na terra que estão sempre a arder; sete lugares, especialmente, de onde saem chamas coloridas que não param de mudar de cor. Pela mudança das cores os homens sabem –– ou pressentem –– se haverá nesse ano falta de milho ou se o milho será barato, se o clima será quente ou frio, chuvoso ou aprazível. E muitas outras coisas eles adivinham ou prevêem pelas cores das chamas. De Itália a estas chaminés a distância é só de 24 milhas, e diz-se que são os portões de entrada para o Inferno.
Aquele que vai pela cidade de Pisa, como alguns fazem, onde há uma entrada de mar e dois portos, viajará pelo caminho da ilha de Corfu, que pertence aos Genoveses. Depois os homens atracam na Grécia ou na cidade de Mavrovo, ou em Valona, ou em Durazzu, que pertence ou Duque de Durazzo; e daí vão para Constantinopla, depois por mar para a Grécia, e para a ilha de Rodes para o Chipre. E assim, seguindo o caminho directo, de Veneza a Constantinopla são 1880 milhas da Lombardia. Do reino de Chipre pode viajar-se para a cidade de Alexandria, que se ergue do outro lado. Santa Catarina foi decapitada nessa cidade , e nessa cidade foi São Marco martirizado e enterrado. Mas depois o imperador Leo fez com que trouxessem os seus ossos para Veneza, e ainda se encontram lá. E em Alexandria há uma bela igreja toda coberta de branco, e o mesmo acontece a todas as igrejas dos Cristãos nestas partes, porque os pagãos e os Sarracenos por toda a parte as fazem cobrir de cal para que não se vejam os frescos e as imagens que decoravam as paredes. Esta cidade de Alexandria tem trinta oitavos de milha de comprido e dez de largura; é uma bela e nobre cidade. É nesta cidade que o Rio Nilo entra no mar, conforme já foi dito. Nesse rio encontram-se frequentemente pedras preciosas, e a madeira que se chama lignum aloes, que vem do Paraíso. É medicinal para muitos casos, e vende-se muito cara. De Alexandria os homens vão para Babilónia onde reside o Sultão; fica à beira do Nilo. Esta é a maneira mais fácil e mais curta de chegar a Babilónia.
Irei agora descrever o caminho que deve seguir-se para se chegar de Babilónia ao Monte Sinai, onde jaz o corpo de Santa Catarina. Os homens devem passar pelos desertos da Arábia, onde Moisés e Aarão levaram os filhos de Israel. Nesse caminho existe um poço onde Moisés os levou e lhes deu de beber, pois já murmuravam contra ele por terem sede. Mais à frente no caminho há outro poço chamado Marah, onde acharam que a água era salobra quando foram bebê-la; Moisés deitou lá para dentro uma certa espécie de madeira e as águas ficaram imediatamente doces. Depois os homens vão por este deserto para o Vale de Elim, onde há doze poços e setenta e duas palmeiras com tâmaras, onde Moisés acampou com os Filhos de Israel. Daqui até ao Monte Sinai fica apenas um dia de jornada.
Se alguém quiser ir de outra maneira de Babilónia ao Monte Sinai tem que passar pelo Mar Vermelho, que é um braço do Mar Ocidental; por ele passaram os filhos de Israel sem molharem os pés, quando o Rei Faraó os perseguia, e todos os seus homens se afogaram nele. E tem seis milhas de largura. A água desse mar não é mais vermelha do que a outra água do mar em qualquer parte; mas porque há muita gravilha rósea na margem desse mar, chamam-lhe Mar Vermelho. E estende-se pelas fronteiras da Arábia e da Palestina. Por este mar os homens demoram quatro dias de viagem, e depois chegam aos desertos e ao Vale de Elim que já mencionámos, e daí seguem para o Monte Sinai. E deveis saber que ninguém pode atravessar estes desertos com cavalos, porque não existem estábulos, nem ração, nem água para os cavalos. E portanto essa peregrinação é feita a camelo, porque eles conseguem encontrar em qualquer parte no caminho ramos de árvores para comer, porque eles gostam bem dessa comida e podem passar sem água durante dois ou três dias, o que os cavalos não podem. De Babilónia ao Monte Sinai é uma jornada de doze dias. No entanto, alguns viajam a tal velocidade que demoram menos tempo. Nesta parte da viagem, é necessário que tenham com eles intérpretes que entendam a linguagem do país; isto também é necessário noutros países destas partes. Os homens também têm que levar a sua comida consigo através destes desertos.
O Monte Sinai é chamado o Deserto do Pecado –– o que é como dizer, a Sarça Ardente¸ pois foi aqui que Moisés viu Nosso Senhor falando com ele numa sarça ardente. No sopé do Monte Sinai fica uma abadia de monges, bem rodeada por paredes altas, e com portões de ferro por medo das horríveis bestas selvagens que vivem nesses desertos. Os monges que lá vivem são Gregos e Árabes, e vestem-se como eremitas; há um grande convento deles. Alimentam-se de raízes e tâmaras e ervas; geralmente não bebem vinho: só nos dias de grandes festivais. São homens devotos e observam uma vida pura, e vivem em grande abstinência e grande penitência. Aqui fica a igreja de Santa Catarina, na qual há muitas lâmpadas a arder. Usam azeite de oliveira tanto para as lâmpadas como para a comida e para a iluminação, e esse óleo chega-lhes como que por magia. Porque todos os anos gralhas e corvos e outros pássaros voam para este lugar em grandes bandos, como se estivessem a fazer uma peregrinação; e cada um deles traz no bico um ramo de oliveira que deixa lá; e desta forma há uma grande quantidade de azeite para sustento da abadia. Agora se os pássaros, que não têm pensamento, prestam semelhante reverência àquela virgem gloriosa, nós homens Cristãos devemos certamente visitar aquele lugar sagrado com grande devoção. Atrás do Grande Altar da igreja fica o lugar onde Moisés viu Nosso Senhor numa sarça ardente. E quando os monges vêem para este lugar despem as suas meias e sapatos porque Deus disse a Moisés ‘Tira os teus sapatos dos teus pés, porque o lugar onde estás é Terra Sagrada’ . Esse lugar é chamado Sombra de Deus. E por trás ficam quatro degraus que levam ao túmulo de alabastro onde jaz a virgem Santa Catarina. E o prelado dos monges mostra as relíquias aos peregrinos; com um instrumento de prata move os ossos da santa num altar. Daqui escorre um pouco de óleo, como suor; mas não é como óleo nem como bálsamo, porque é mais escuro. Deste óleo dão um pouco aos peregrinos –– porque é só um pouco que sai . Depois, mostram-lhes a cabeça de Santa Catarina, e o pano em que estava enrolada quando os anjos a trouxeram para o Monte Sinai. E foi ali, com o pano, que a enterraram, e o pano ainda está ensanguentado, e sempre estará. E também mostram o arbusto que Moisés viu a arder, quando Nosso Senhor falou com ele. E mostram várias outras relíquias. Cada monge desta abadia tem uma lâmpada a arder, e, disseram-me, quando o abade morre a lâmpada dele apaga-se. Quanto a escolher um novo abade, a lâmpada daquele que pela graça de Deus é mais meritório de tomar esse lugar acende-se sozinha. Como disse, cada um deles tem a sua lâmpada; e sabem pela lâmpada quando qualquer um deles está prestes a morrer, porque nessa altura a sua lâmpada começa a dar cada vez menos luz. Também me disseram que, quando um prelado morreu e vai ser enterrado, aquele que canta a Missa Solene encontrará diante dele num pergaminho no altar o nome daquele que será seguidamente escolhido para ser prelado; perguntei aos monges se isso era verdade. Eles não me disseram, mas às vezes uns diziam que tinha sido isso mesmo. E mesmo assim, nunca diziam muito até que lhes disse que não era correcto esconder do mundo semelhante maravilha de Deus, pois, se todos soubessem deste Milagre, mais se converteriam e mais O glorificariam. Pelo contrário, este Milagre devia ser publicado em todo o mundo e excitar os homens com devoção. E ainda acrescentei que pecavam gravemente ao esconder isto, parecia-me, pois os milagres de Deus são sinais Seu grande poder, como David diz no Psaltério.
Ouvindo-me falar acabaram por admitir ser tudo verdade no respeitante às lâmpadas que se acendem e apagam, e ainda falaram de outras acções espantosas de Deus. Naquela abadia nunca entra a corrupção de moscas, piolhos, lagartas, ou quaisquer outros vermes, por Milagre de Deus e da Sua mãe Virgem Maria e pela jovem Virgem Santa Catarina. Porque dantes existiu na abadia uma tal quantidade desta corrupção que os monges eram tão torturados por ela que acabaram por abandonar a Abadia e foram viver para as colinas próximas. E uma noite a Mãe de Deus foi ter com eles e disse-lhes que voltassem para a Abadia, pois nunca mais qualquer corrupção os incomodaria lá dentro. Eles fizeram o que Ela lhes disse, e, desde esse dia, em todo o recinto que fica dentro dos portões da abadia, não há nem uma mosca, nem um piolho, nem qualquer espécie de vermes. E diante do portão fica o poço onde Moisés bateu na rocha com o seu cajado e fez jorrar a água, que jorrará para sempre.
Desta Abadia os homens sobem muitos degraus até ao Monte de Moisés. E aqui há uma igreja de Nossa Senhora, onde ela se encontrou com os monges, como vos disse. E mais alto na montanha está a igreja de Moisés, e as rochas para onde Moisés correu quando viu Nosso Senhor. Nessas rochas está a impressão do seu corpo. Porque correu tão depressa através delas que por milagre de Deus o seu corpo ficou marcado nelas. E ali muito perto fica o lugar onde Nosso Senhor deu a Moisés os Dez Mandamentos da Lei escritos em duas tábuas de pedra pelas próprias mãos de Deus. Debaixo de uma pedra há uma gruta, onde Moisés viveu quando jejuou durante quarenta dias e quarenta noites. Mas Moisés morreu na Terra Santa, e ninguém sabia onde ele estava enterrado. Desta montanha os homens atravessam um longo vale para chegarem a outra montanha alta, onde os anjos enterraram o corpo de Santa Catarina. Nesse vale fica a igreja dos Quarenta Mártires, onde os monges da outra abadia tinham frequentemente serviço; esse vale é muito frio. Depois os homens sobem para a Montanha de Santa Catarina; e é muito mais alta que o Monte de Moisés. Aqui Santa Catarina não foi enterrada numa igreja, numa capela, nem em outro abrigo; mas há uma pilha de pedras reunida no lugar onde ela foi enterrada. Já houve aqui uma capela, mas entretanto caiu, e as pedras ainda lá estão. E embora o anel de Santa Catarina diga que foi exactamente no mesmo lugar que Nosso Senhor deu a Lei a Moisés e que Santa Catarina foi enterrada, deveis entender que um país é diverso, de forma que dois lugares diferentes podem ter o mesmo nome. Ambos se chamam Monte Sinai, embora fiquem a uma longa distância um do outro.
9
Sobre o deserto entre a igreja de Santa Catarina e Jerusalém;
Sobre a Árvore Seca;
E de como foi que as rosas apareceram na Terra.
Quando os homens já visitaram o lugar sagrado de Santa Catarina, primeiro despedem-se dos monges e recomendam-se a si próprios com as suas orações. Esses monges com boa vontade dão-lhes provisões para que possam atravessar o deserto da Síria. E o deserto estende-se por uma jornada de doze ou treze dias. Nesses desertos vivem vários povos, que se chamam Àrabes, Beduínos e Ascopardes . São gente de má formação, cheia de todos os tipos de maldade e malícia. Não têm casas, só tendas que fazem de pele de camelo e de outras bestas selvagens que eles comem, e bebem água quando conseguem encontrá-la. Acontece com frequência que onde se encontra água numa parte do ano, noutra altura que se siga já lá não está; por isso não constroem as casas em pontos fixos, mas antes umas vezes aqui e outras vezes ali, onde encontrarem água. Estes povos de que falo não trabalham no amanho da terra, pois que não comem pão, a menos que vivam junto de uma grande cidade onde podem ir regularmente buscá-lo. Cozinham todas as suas carnes, ou os peixes a que conseguem ter acesso, em pedras aquecidas pelo sol. No entanto são homens fortes, grandes lutadores; e há uma grande quantidade deles. Não fazem nada que não seja caçar bestas selvagens, para as trazerem para a sua comida. E não dão valor às próprias vidas, e por isso não temem o Sultão nem nenhum grande príncipe deste mundo, e lutarão com eles se de alguma forma os incomodaram. Lutaram várias vezes contra o Sultão, por exemplo, na altura em que vivi com ele. Não usam armas nem roupas para se defenderem, apenas uma lança e um escudo. Enrolam um lenço branco de linho em torno da cabeça e do pescoço. São gentes muito cruéis, de natureza diabólica.
Depois de homens terem atravessado este deserto no caminho para Jerusalém, chegam a uma cidade que se chama Betsabé, que era dantes uma bela cidade habitada por homens Cristãos, e ainda se vêem de pé algumas das suas igrejas. Nesta cidade viveu Abraão o Patriarca. Betasabé, a mulher de Urias, fundou a cidade, e deu-lhe o seu próprio nome. Foi nesta cidade que o Rei David lhe confiou Salomão o Sábio, que foi rei de Jerusalém durante quarenta anos. Daqui os homens vão até ao vale do Hebron, que por outro nome também é chamado Gebel, e que fica a doze milhas de distância. Alguns chamam-lhe o Vale de Mamre, o que quer dizer o Vale dos Soluços, porque o nosso primeiro pai Adão lamentou aqui durante cem anos a morte do seu filho Abel, assassinado por Caim. Em Hebron ficava dantes a cidade principal dos Filisteus, e viviam lá gigantes. Depois foi também a cidade dos padres da tribo de Judá, filho do Patriarca Jacob. E tinha o privilégio de que quando um homem fugia para lá por acusação de homicídio ou outro crime sério, podia viver tranquilamente nessa cidade sem ser desafiado por nenhum outro homem e sem lhe fazerem mal. A Hebron vieram Joshua e Caleb e os da sua companhia, para espiarem a forma de conquistarem a Terra Prometida. Em Hebron reinou o rei David durante sete anos e meio; e em Jerusalém reinou durante trinta e sete anos e meio. Na cidade de Hebron estão os túmulos dos Patriarcas Adão, Abraão, Isaac, e Jacob, e as suas mulheres Eva, Sara e Rebeca, e ficam no declive da encosta. Sobre eles está uma bela igreja, bem cercada de muralhas, como um castelo, que os Sarracenos mantêm com muito cuidado. Têm um grande respeito por este lugar devido aos Patriarcas que aqui jazem. Não deixam entrar nem Cristãos nem Judeus, a menos que tragam autorização do Sultão, porque consideram Judeus e Cristãos como porcos, que não devem entrar num local sagrado. Este lugar chama-se Spelunca Duplex, ou seja ´cave dupla´ ou ´duplo túmulo´, porque eles estão enterrados uns por cima dos outros. Na sua língua, os Sarracenos chamam-lhe Cariatharbe, o que quer dizer ´o lugar dos Patriarcas´ . Os judeus chamam-lhe Arboth. Neste mesmo lugar estava Abraão sentado à soleira da sua porta quando viu três homens e venerou um deles, como a Sagrada Escritura testemunha, dizendo tres uidit et unum adoravit, o que quer dizer ´viu três e adorou um´. E aqui Abraão levou os anjos para sua casa como convidados. E um pouco mais abaixo há uma gruta numa rocha, para onde seguiram Adão e Eva quando foram expulsos do Paraíso.; e aqui tiveram os seus filhos. E, segundo alguns dizem, aqui foi Adão feito. Dantes este lugar chamava-se Campo de Damasco porque se encontrava sob o domínio do Senhor de Damasco. Daqui Adão foi transladado por Deus para o Paraíso, como esses homens dizem; depois voltou para o Paraíso e depois foi expulso. Foi posto no Paraíso e expulso de lá no mesmo dia, porque, assim que pecou, teve que abandonar esse lugar maravilhoso. O Vale do Hebron começa aqui, e estende-se até Jerusalém. Aqui disse o anjo a Adão que devia viver com a sua mulher; aqui nasceu Seth, a cuja linhagem pertenceu Nosso Senhor Jesus Cristo. Nesse vale há um campo onde os homens retiram da terra uma substância chamada cambille , e usam-na para comer em vez de especiarias; levam-na muitas vezes para a venderem nas terras a toda a volta. O buraco onde a escavam nunca consegue ser tão largo ou tão fundo que, pela Graça de Deus, não volte a estar cheio até ao topo no ano seguinte.
A duas milhas de Hebron fica o túmulo de Lot, o sobrinho de Abraão; e um pouco para lá de Hebron fica o Monte de Mamre, de onde o vale tirou o seu nome. E há aqui uma espécie de carvalho a que os Sarracenos chamam dirpe, e que data do tempo de Abraão. É a esta árvore que os homens chamam a Árvore Oca; e dizem que está ali desde o começo do mundo, e que estava sempre verde e com folhas até ao dia em que Nosso Senhor morreu na Cruz, e então secou. E o mesmo aconteceu a todas as árvores destas de todo o mundo, dizem alguns, ou então dizem que só ficou a casca e tudo o que tinham por dentro secou, e que ainda encontramos de pé muitas destas árvores. Muitos dizem que um Grande Senhor do Oriente ainda se juntará aos Cristãos para reconquistar a Terra Santa com o auxílio das Armas de Cristo , e nessa altura mandará cantar a Missa debaixo da Árvore Seca, e ela voltará a ficar verde e cheia de rebentos. Pelo poder desse milagre, Judeus e Sarracenos hão-de converter-se à fé Cristã. E portanto têm esta árvore em grande reverência, e as pessoas dessa terra prestam-lhe grandes honras e cuidam dela com todo o cuidado. E embora se chame, e de facto seja mesmo, uma Árvore Seca, tem sem dúvida grandes poderes, pois aquele que a transporta consigo nunca sofre de epilepsia, tal como o seu cavalo nunca se empina. A Árvore Seca tem muitas outras virtudes e portanto é deveras preciosa.
Do Hebron os homens vão até Belém só num meio dia, porque são só cinco milhas. O caminho é agradável e bom, através de uma planície e de um bosque. Belém é só uma cidade pequena, comprida e estreita, e bem murada e cercada de fossos. Nos tempos antigos chamava-se Effrata, como diz a Sagrada Escritura: “Ecce, audiuimus eum in Effrata” , o que quer dizer “Acreditai, isto ouvimos em Effrata”. Junto ao extremo ocidental dessa cidade há uma bela igreja com muitas trincheiras e torres, bem murada de todos os lados. Dentro dessa igreja há quarenta e quatro grandes pilares de mármore de grande beleza. Entre esta igreja e a cidade fica o campo Floridus; e chamam-lhe o “Campo das Flores” porque uma jovem donzela foi falsamente acusada de fornicação, razão pela qual foi decidido que seria ali queimada. Foi levada para ali e amarrada ao poste e puseram molhos de espinheiro e de outras madeiras à sua volta. Ela viu a madeira começar a arder, rezou a Nosso Senhor para que a ajudasse já que ela não era culpada daquele crime, para que todos vissem que não tinham razão. Quando acabou esta reza, pôs um pé nas chamas – e estas apagaram-se logo, e as árvores que estavam a arder deram rosas vermelhas, e as que ainda não estavam em fogo deram roseiras brancas todas em botão. E estas foram as primeiras rosa e roseiras que alguma vez se viram. E assim foi a donzela salva pela graça de Deus. E também, debaixo do coro dessa igreja, para a direita quando os homens descem dezasseis degraus, está o lugar onde Nosso Senhor nasceu. Está agora lindamente decorado, e colorido ricamente com ouro, prata, lápis-lazuri e outras cores. E um pouco para trás – uns três passos – está a mangedoura da vaca e do burro. E um pouco mais adiante está o lugar onde caiu a estrela que conduziu os Três Reis a Nosso Senhor; os seus nomes eram Gaspar, Melchior e Baltazar. Mas os Gregos chamam-lhes Galgalath, Malgalath e Seraphy. Estes Três Reis ofereceram a Nosso Senhor ouro, incenso e mirra. E vieram aqui graças a um milagre de Deus, porque se encontraram numa cidade da Índia chamada Kashan; fica a cinquenta e três dias de jornada de Belém, mas eles chegaram a Belém quatro dias depois de verem a estrela. No claustro desta igreja, a dezoito passos para o lado direito, fica a Capela dos Santos Inocentes, onde jazem os seus ossos. E diante desse lugar onde Jesus nasceu está o túmulo de Santo Jerónimo, que foi padre e cardeal, e que traduziu a Bíblia de Hebraico para Latim. Fora da igreja está a sua cadeira, onde se sentava quando estava a traduzir a Bíblia. Um pouco para lá desta igreja fica outra igreja, a de São Nicolau, onde Nossa Senhora descansou depois de ter dado Nosso Senhor à luz. E como tinha demasiado leite nos seus peitos, e isso lhe fazia doer, esvaziou-os no pavimento vermelho de mármore que ali existia. As manchas de leite branco ainda são ali visíveis, nos pontos onde caíram. E deveis saber que praticamente todos os que vivem em Belém são Cristãos. E há grandes vinhas em torno da cidade, e grandes quantidades de vinho devidas ao trabalho e organização dos homens Cristãos – porque os Sarracenos não cultivam vinhas, nem bebem qualquer espécie de vinho. Porque o Livro da Lei que Maomé lhes deu, chamado o Corão – alguns chamam-lhe Massap , e outros Harme – proíbe-os de beber vinho. Porque nesse livro Maomé amaldiçoa todos aqueles que bebem vinho e todos aqueles que o vendem. Porque alguns homens dizem que ele uma vez, na sua embriaguês, matou um bom eremita, que muito amava, e portanto amaldiçoou o vinho e todos os que o bebem. Mas essa maldição só existe na sua cabeça, pois a Sagrada Escritura diz, “Et in uerticem ipsius iniquitas eiusdescendet”, o que quer dizer “e a sua maldade cairá na sua própria cabeça” . Os Sarracenos também não criam porcos, e não comem carne de porco; porque dizem que é um irmão do homem e que foi proibido pela Velha Lei. Também na terra da Palestina e na terra no Egipto só comem um pouco de vitela ou vaca, a não ser que o animal esteja tão velho que já não sirva para trabalhar nos campos. Foi nesta cidade de Belém que nasceu o Rei David; e teve seis mulheres, das quais a primeira se chamava Michal, a filha do Rei Saul. E também teve muitas concubinas.
De Belém a Jerusalém são só duas milhas. No caminho para Jerusalém, a meia milha de Belém, fica uma igreja, no lugar onde os anjos anunciaram aos pastores o nascimento de Cristo. E nessa estrada está o túmulo de Raquel, a mão do Patriarca José; e que morreu assim que deu à luz Benjamim. Aqui foi enterrada, e José colocou sobre o seu corpo doze pedras grandes, simbolizando os doze Patriarcas. A meia milha de Jerusalém a apareceu a estrela aos Três Reis. E nesta estrada para Jerusalém há muitas igrejas, que todos os peregrinos visitam.
10
Sobre as peregrinações em Jerusalém,
E sobre os seus lugares sagrados.
Para falar de Jerusalém: deveis compreender que a cidade está bem instalada entre as montanhas. Não tem rios nem poços, mas a água chega aqui através de condutas vindas do Hebron. E devo dizer-vos que esta cidade se chamava Jebus, até ao tempo de Melchisedek, e depois foi chamada Salem até ao tempo do Rei David. E ele juntou esses dois nomes e chamou-lhe Jebusalem; e depois Salomão chamou-lhe Jerusalém e ainda assim é chamada. E à volta de Jerusalém fica o distrito da Síria; abaixo fica a terra da Palestina, e ainda Ascalon. Mas Jerusalém fica na terra da Judeia; e é assim chamada porque Judas Macabeu era o rei dessa terra. E para Leste marcha ao lado do reino da Arábia, para o Sul com o Egipto, no Oeste faz fronteira com o Mediterrâneo, e para o Norte com o reino da Síria e o Mar de Chipre. Costumava existir um patriarca um Jerusalém, e arcebispos e bispos nas terras em volta. Em torno de Jerusalém ficam sete cidades: Hebron a sete milhas, Betsabé a oito, Jericó a seis, Ascalon a dezoito, Jaffa a vinte e sete, Rama a três e Belém a duas milhas de distância. E a duas milhas para o Sul de Belém fica a igreja de São Caritário, que em tempos foi ali abade, e a quem os monges fizeram grandes cerimónias fúnebres quando morreu. Ainda lá está uma pintura que representa todo o desespero e sofrimento que apresentaram por ele, e é certo que desperta muita piedade vê-la.
Esta terra de Jerusalém já esteve nas mãos de povos muito diferentes – Judeus, Canaanitas, Assírios, Persas, Macedónios, Gregos, Romanos, Cristãos, Sarracenos, Bárbaros, Turcos e muitas outras nações. Porque Cristo não deseja que permaneça por muito tempo nas mãos de incréus, sejam eles Cristãos ou não. E agora os infiéis apoderaram-se desta terra já há mais de sete anos bissextos – mas, pela graça de Deus, não vão mantê-la por muito mais tempo.
Deveis compreender que quando os homens chegam a Jerusalém fazem a sua primeira peregrinação à igreja onde fica o Sepulcro de Nosso Senhor, que dantes ficava fora da cidade para o Norte; mas agora já está dentro das muralhas da cidade. É uma igreja muito bela, de plano circular, com um bom telhado de folhas de chumbo. No lado ocidental fica uma bela torre muito forte para os sinos. No meio dessa igreja fica um tabernáculo, como uma casa pequena, construído em semi-círculo, decorado muito ricamente com ouro e prata e lápis-lazúli e outras cores. Do lado direito fica o Sepulcro de Nosso Senhor. Este tabernáculo tem oito pés de comprido, cindo de largura, e onze de altura. Há não muito tempo o Sepulcro estava bastante aberto, de tal forma que os homens podiam beijá-lo e tocar-lhe. Mas como alguns homens que lá iam costumavam tentar quebrar pedaços da pedra para a levarem consigo, o Sultão mandou construir uma parede em volta do Sepulcro para que ninguém pudesse tocar-lhe a não ser do lado esquerdo. O Tabernáculo não tem janelas, mas lá dentro tem muitas lamparinas a brilhar. Entre as outras luzes há uma que brilha diante do Sepulcro, e em cada Sexta Feira Santa apaga-se sozinha, e no Domingo de Páscoa volta a acender-se à hora precisa em que Nosso Senhor se levantou dos mortos. Também dentro dessa igreja, para o lado direito, fica o Monte Calvário, onde Nosso Senhor foi crucificado. A Cruz foi encaixada numa rocha, que é branca, raiada de vermelho. É que no alto da rocha o sangue caiu das feridas de Nosso Senhor quando ele sofria na Cruz. Chamam-lhe agora o Gólgota; e os homens têm que subir vários degraus para o verem. E foi nesse encaixe que se encontrou a cabeça de Adão depois do Dilúvio de Noé, como símbolo de que os pecados de Adão seriam redimidos naquele lugar. E foi mais acima nessa rocha que Abraão fez o seu sacrifício a Nosso Senhor. Há aqui um altar, e à sua frente jazem Godofredo de Bouillon e o seu irmão Balduíno, e outros reis Cristãos de Jerusalém. Onde nosso Senhor foi crucificado está uma inscrição em Grego, que diz: Otheos basileon ysmon presemas ergaste sothias oys – alguns livros dizem Otheos basileon ymon proseonas ergasa sothias emesotis gis – o que quer dizer em Latim Hic deus, rex noster, ante saecula operatus est salutem in medio terrre, o que quer dizer ´Aqui Deus nosso Rei perante todos os mundos fez nascer a Salvação do fundo da terra´. Sobre a pedra onde se pôs a cruz está escrito assim: Gros guist rasis thou pestes thoy thesmoysi, ou, Oyos iusutiyis basis thou pesteos thoy themosi, o que quer dizer em Latim Quod vides, est fundamentum totius fidei mundi huius, o que quer dizer ´Isto que vedes é a fundação de toda a fé no mundo´. Deveis compreender que quando Nosso Senhor morreu tinha trinta e três anos e três meses de idade. Mas a profecia de David anuncia que Ele terá quarenta anos na Sua morte, quando diz isto: Quadraginta annis proximus fui generatione huic, o que quer dizer ´Por quarenta anos fui vizinho da tua espécie´. Deste modo pode parecer que a Sagrada Escritura se contradiz, o que não é de todo verdade, porque nos tempos antigos os homens contavam o ano como sendo só de dez meses. Depois Júlio César fez inserir Janeiro e Fevereiro no calendário, passando os anos a ser de 365 dias, excepto nos anos bissextos, de acordo com o curso correcto do Sol. E portanto, se trabalharmos com anos de dez meses, Ele morreu no quadragésimo ano; mas no nosso sistema Ele só tinha trinta e três anos e três meses. Junto ao Monte Calvário, para o lado direito, está um altar onde jaz o tronco a que Nosso Senhor foi atado enquanto era chicoteado. A quatro pés de distância estão quatro pedras, que estão sempre a deitar água; e alguns homens dizem que elas estão sempre a chorar a morte de Jesus Cristo. Junto a este altar, num lugar que fica a quarenta e dois degraus debaixo do chão, Santa Helena encontrou a Cruz de Nosso Senhor, debaixo de um rochedo onde os Judeus a tinham escondido. Encontraram-se outras duas cruzes, onde foram crucificados os dois ladrões pendurados um de cada lado de Nosso Senhor. Santa Helena não sabia ao certo qual delas era a verdadeira Cruz de Jesus Cristo, e por isso agarrou nas três e deitou-as, uma de cada vez, por cima de um cadáver estendido no chão. Assim que lhe pôs por cima a verdadeira Cruz, o morto levantou-se e recomeçou a viver. Ali perto na parede está o sítio onde se esconderam os quatro pregos que atravessaram as mãos e os pés de Cristo, dois nas mãos e dois nos pés. O Imperador Constantino mandou incrustar um destes pregos na sua cabeçada, que usava sempre que partia em batalha.; pelo seu poder venceu muitos inimigos e conquistou muitos reinos diferentes – a saber a Ásia Menor, e Turquia, a Grande e a Pequena Arménia, a Síria, Jerusalém, a Arábia, a Pérsia, a Mesopotâmia, o reino de Aleppo e o Alto e Baixo Egipto, e muitos outros reinos até às distâncias da Etiópia e da Índia Menor, que então era na sua maior parte Cristã . Nessa altura existiam muitos homens e eremitas sagrados nesses países, dos quais nos fala o Livro Vitae Patrum . E agora, na sua maioria, estas terras estão nas mãos de Pagãos e Sarracenos . Mas, quando Deus assim o entender, tal como estas terras se perderam pelos pecados dos homens Cristãos, assim serão de novo reconquistadas por Cristãos, com a ajuda de Deus . No meio do coro desta igreja há um círculo, onde José de Arimateia estendeu o corpo de Nosso Senhor quando O tiraram da Cruz; e os homens dizem que esse círculo marca o centro perfeito do mundo . Nesse lugar José lavou as feridas de Nosso senhor. É também na igreja do Sepulcro, para o lado Norte, que fica um lugar onde Nosso Senhor foi aprisionado – porque foi aprisionado em muitos lugares. Ainda se vê um pedaço da cadeia com que esteve preso. Foi aqui que Ele apareceu pela primeira vez a Maria Madalena quando ressuscitou dos mortos, e ela pensou que Ele era o jardineiro . Na igreja do Santo Sepulcro costumavam pontificar os monges da Igreja de Santo Agostinho, que tinham um prior; mas o seu chefe máximo era o Patriarca. Fora da porta da prisão, para a direita, onde se sobem vinte e oito degraus, fica o lugar onde Jesus falou com a Sua Mãe quando estava preso na Cruz: Mulier, esse, filius tuus, o que quer dizer, ´Mulher, este é o teu filho´ -- referia-se a São João, que estava ali de um dos lados. E a ele Jesus disse: ´Esta é a tua Mãe´. E por esses degraus subiu Nosso Senhor com a Cruz às costas até ao lugar onde foi crucificado. Por baixo desses degraus fica uma capela, onde os padres fazem os seus serviços, mas de acordo com os ritos deles, que não são iguais aos nossos. Fazem sempre a Consagração do Pão no altar, rezando o Pater Noster e as palavras do sacramento e pouco mais; porque não conhecem os adicionamentos dos papas, a que os nossos padres estão habituados na Missa. No entanto, cantam a Missa deles com grande devoção. Perto dali fica um lugar onde Jesus descansou quando estava cansado de carregar a Cruz. E deveis saber que a cidade está pior defendida do lado da igreja do Sepulcro, por causa da planície imensa que se estende entre a cidade e a igreja em direcção a Oriente. Nessa direcção, fora das muralhas, fica o Vale de Jeosafate, que se estende até ao limite das muralhas. Fora das muralhas, sobranceira ao vale, fica a igreja de Santo Estevão, que foi apedrejado até à morte. Depois da igreja fica o portão a que chamam Porta Aurea e que ninguém consegue abrir. Nosso Senhor Jesus Cristo entrou por essa porta montado num burro no Domingo de Ramos; e a porta abriu-se à Sua frente quando Ele se dirigia ao Templo. As ferraduras do burro ainda conseguem ver-se marcadas para sempre na pedra da calçada. A duzentos passos em frente da igreja de Santo Estêvão fica um grande Hospício de São João, onde os Hospitalários tiveram a sua primeira fundação. Saindo do hospício em direcção a Oriente chega-se a uma capela belíssima chamada Notre Dame La Grande. Um pouco mais afastada fica ainda uma outra igreja, chamada Notre Dame des Latins. Foi aqui que pararam Maria Madalena e as outras mulheres, chorando por Jesus Cristo quando O mataram, e arrepanhando o cabelo. No Hospício de São João já mencionado fica uma casa grande isolada para pessoas doentes, sustentada por quatro pilares de pedra e seis de estrias.
11
Sobre o Templo de Nosso Senhor;
Da crueldade de Herodes;
Do Monte Sião;
Da Piscina Probatica e do lago de Siloão.
A seis passos quadrados para Leste da igreja do Sepulcro fica o Templo de Nosso Senhor, que é um edifício muito bonito. É circular, e muito alto, e com um telhado de chumbo, e com o pavimento em mármore. Mas os Sarracenos não deixam entrar nem Cristãos nem Judeus, porque dizem que é impossível que gente tão rude visite um lugar tão sagrado. Mesmo assim eu entrei, assim como entrei em muitos outros lugares sagrados por onde passei; porque tinha comigo cartas com o Grande Selo do Sultão, nas quais ele ordenava firmemente aos seus súbditos que me deixassem visitar todos os lugares que eu quisesse, e que me mostrassem as relíquias e os lugares sagrados segundo o meu bel-prazer; e que deviam conduzir-me de cidade em cidade se tal fosse necessário, assim como deviam saudar-me a mim e aos meus companheiros com grande alegria e júbilo, para que todos soubessem que éramos homens bons, pelo que deviam obedecer a todos os meus pedidos em todos os assuntos razoáveis a menos que fizessem planos contra a dignidade do próprio Sultão ou contra a lei. A outros homens que desejam obter dispensa e permissão do Sultão para visitar os lugares que eu mencionei ele dá geralmente um apenas o seu selo; os peregrinos carregam-no à sua frente pendurado de uma lança ou de um poste, e prestam-lhe uma grande veneração; e os homens dessa região prestam muito respeito a este selo, de tal forma que quando o vêem passar à sua frente se ajoelham como se estivesse o padre a passar com a Hóstia Consagrada. Mas a mim o Sultão fez um favor muito especial, já que eu estava há muito tempo ao seu serviço na corte. As cartas do Sultão também são objecto de grande reverência, pois que assim que são levadas até um senhor, ou a qualquer outro homem, este presta-lhes logo a devida homenagem, ajoelhando-se, e batendo com ela na testa em reverência. Carlos Magno estava neste Templo quando o anjo lhe trouxe o prepúcio de Nosso Senhor depois da circuncisão; depois o Rei Carlos levou esse prepúcio para Paris. Deveis compreender que este não é o Templo construído por Salomão; esse Templo só durou mil cento e dois dias. Porque Tito, o filho de Vespasiano, que era Imperador de Roma, lançou um cerco a Jerusalém para expulsar de lá os Judeus, que tinham determinado a morte de Cristo sem consulta nem consentimento do Imperador. Quando tomou a cidade, mandou incendiar o Templo e destruiu-o por completo; tomou todos os Judeus e matou onze mil deles, relegando o restante para a prisão. Tinha vendido trinta por um cêntimo, uma vez que constava que Jesus fora vendido aos romanos por trinta cêntimos. Muito tempo depois disto, o Imperador Juliano o Apóstata, que renegou e perseguiu a fé Cristã, deu autorização aos Judeus para voltarem a construir o seu Templo em Jerusalém, pois que, embora ele próprio tivesse sido educado como um Cristão, na realidade odiava os Cristãos. E quando os Judeus acabaram de construir o Templo, e porque era essa a vontade de Deus, veio um terramoto que sacudiu todas as fundações de Jerusalém e fez cair o edifício dos Judeus. Depois o Imperador Hadriano, que era da linhagem de Tróia, consertou de vez a cidade de Jerusalém e reconstruiu-lhe o Templo, e fê-lo como Salomão o tinha feito, real e nobre. Mas Hadriano não deixava entrar um único Judeu, só Cristãos; porque embora ele próprio não fosse Cristão, amava os Cristãos mais do que quaisquer outros homens, à excepção dos que professavam a sua própria fé pagã. Foi este Imperador que construiu uma muralha em torno da igreja do Sepulcro e a trouxe para dentro de uma muralha – antes dele a igreja ficava de fora. E mudou o nome da cidade e chamou-lhe Aelia, mas o nome não durou muito tempo. Os Sarracenos prestam grandes honras ao Templo de Nosso Senhor, dizendo que é um lugar muito sagrado. Quando entram na igreja tiram logo os sapatos e ajoelham-se com grande reverência. Quando eu e os meus companheiros os vimos fazerem isto, tirámos também nós os nossos sapatos e pensámos que era extremamente razoável – que nós, Cristãos, deveríamos honrar e admirar o Nosso Senhor tanto quanto os incréus O adoram. Este Templo tem sessenta e quatro cúbitos de largura, o mesmo de comprimento, e seis e cinco de altura. E por dentro, de todos os lados, tem pilares de mármore a perder de vista. No meio do Templo fica uma plataforma com de vinte e três degraus de altura, com pilares dourados a toda a volta. A este lugar chamam os Judeus Santa Sanctorum, ou seja, O mais Sagrado entre os Sagrados. Ninguém vai ao interior dessa plataforma excepto o Bispo da sua Lei quando fazia os sacrifícios. As pessoas apinhavam-se a toda a volta em diferentes níveis conforme a sua dignidade e devoção. Há quatro entradas para este Templo; as portas são de madeira de cipreste, bem e artisticamente feitas. Foi logo à entrada da porta oriental que Nosso Senhor disse ‘Aqui está Jerusalém´. Do lado Norte, dentro da porta, está um poço de onde não corre água – a Sagrada Escritura fala dele assim: Vidi Aquam egredientem de templum etc . Do outro lado está uma rocha que em tempos foi chamada Moriah, mas que depois se chamou Betel, onde se ergueu a Arca de Deus, e outras coisas sagradas dos Judeus. Quando Tito venceu os Judeus mandou esta Arca para Roma, com as coisas sagradas lá dentro. Nessa Arca estavam as Tábuas de Moisés, onde foram escritos os Dez Mandamentos, e a vara de Araão, e o bastão com que Moisés abriu o Mar Vermelho para que os Filhos de Israel passassem a pé enxuto quando o Rei Faraó os perseguia. Com o mesmo bastão Moisés bateu na pedra seca, e dela correu muita água em abundância. Moisés fez muitos milagres com esse bastão. Na arca estava também uma ânfora de ouro cheia de maná, a que os homens chamam a comida dos anjos, e muitos outros ornamentos e vestuário, de Araão e do Tabernáculo. Havia uma mesa de ouro, quadrada, com doze pedras preciosas, e um caixão de jade verde com quatro figuras lá dentro e oito nomes de Deus lá gravados; havia sete castiçais de ouro, dez frascos de ouro, e quatro incensórios de ouro; havia um altar de ouro e quatro leões de ouro, sobre os quais estavam querubins dourados com doze palmos e altura; havia um círculo com os doze símbolos dos Céus, um tabernáculo de ouro, doze trompetas de prata, uma tábua de prata, sete formas de pão sagrado, e muitas outras coisas sagradas e preciosas relativas ao serviço de Deus antes da Encarnação de Cristo. E nesta rocha dormiu José, quando viu os anjos subirem e descerem por um degrau, e disse, Vere locus iste sanctus, et ego nesciebam, o que quer dizer, ´Certamente, este lugar é sagrado, e eu não sei´. Foi nesta rocha que Nossa Senhora aprendeu o seu Psaltério , e foi nesta rocha que Nosso Senhor perdoou os seus pecados à mulher adúltera. Aqui foi Cristo circuncisado. Aqui Melchisedek ofereceu pão e vinho a Nosso Senhor, como símbolo do sacramento que estava para vir. Foi aqui que David ajoelhou, rezando ao Senhor que tivesse piedade de si e do seu povo, e o Senhor escutou a sua prece. E aqui teria ele construído o Templo, mas o Senhor proibiu-o através de um anjo, porque ele fizera o mal ao matar Urias, um bom cavaleiro, para agradar à sua mulher. E tudo o que David pôs de parte para construir o Templo foi depois usado por Salomão seu filho, e ele construiu-o. E rogou ao Senhor que ouvisse as preces de todos os que rezassem naquele Templo, e o Senhor assim o fez. Do lado do Templo fica um altar onde os Judeus costumavam oferecer rolas e pombos. E neste Templo foi assassinado o profeta Zacarias. De um pináculo deste Templo foi atirado São Tiago, que foi o primeiro Bispo de Jerusalém. À entrada do Templo está a porta chamada Speciosa, onde São Pedro curou o aleijado e o tornou capaz de andar. Um pouco afastada do Templo, para o lado direito, está uma igreja de telhas de chumbo, que se chama a Escola de Salomão. E em direcção ao Sul fica o Templo de Salomão, que é um lugar muito belo; fica num ponto estratégico de horizontes vastos. Neste lugar viveram os cavaleiros chamados Templários, e esta foi a casa-mãe dos Templários e da sua Ordem. E tal como os cavaleiros viveram ali, também os monges costumavam viver no Templo do Senhor. A seis passos quadrados deste Templo, numa esquina da cidade, fica o banho de Nosso Senhor, e a água costumava vir do Paraíso. Um pouco afastado dali fica o leito de Nossa Senhora, e por perto o túmulo de São Simeão. Para Norte, fora do Templo, há uma linda igreja de Santa Ana, a mãe de Nossa Senhora; aqui foi Nossa Senhora concebida. E descendo vinte e dois degraus a partir dessa igreja chega-se ao túmulo de pedra de Joaquim, o pai de Nossa Senhora. Dantes Santa Ana costumava jazer a seu lado, mas depois Santa Helena transladou-a para Constantinopla. Nesta igreja há um poço, como uma cisterna, que se chama a Probatica Piscina , e dantes tinha cinco entradas. Nessa cisterna costumavam vir os anjos banhar-se a agitar as águas, e o primeiro homem que ali se banhasse depois da agitação das águas ficava curado de todas as doenças que o afligissem. Foi aqui que se curou o homem que estava doente há vinte e oito anos. Foi aqui que Nosso Senhor lhe disse Tolle grabatum tuum et ambula, o que quer dizer,’ Agarra na tua cama e anda´ . Um pouco afastadas daqui ficavam a casa de Pilatos, e a casa de Herodes, o Rei que mandou matar os Inocentes. Este Herodes era um homem cruel e maldoso. Porque primeiro fez desaparecer a sua mulher, que ele amava sobre todas as outras criaturas; e por causa do grande amor que tinha por ela, quando a viu morta perdeu o juízo e assim ficou durante muito tempo. Depois, quando com o passar do tempo recuperou o juízo, fez matar os filhos que tivera dela. E depois mandou matar a sua outra mulher, e um filho que tivera dela, e a sua própria mãe. Teria feito o mesmo ao seu irmão, mas este morreu antes de ele ter conseguido atingir esse propósito. E quando ele viu que o seu irmão estava a morrer, mandou chamar a sua irmã e todos os grandes senhores daquela terra, e quando chegaram todos mandou fechar os grandes senhores numa torre; e disse à sua irmã que sabia muito bem que o povo do seu país não faria luto por si depois da sua morte, e portanto fê-la jurar que mandaria matar todos aqueles senhores quando ele morresse para que o país chorasse uma grande perda. Assim fez o seu testamento, e pouco tempo depois morreu. Mas a sua irmã não satisfez os seus últimos desejos; porque assim que o viu morto libertou os senhores da torre e disse-lhes o que o seu irmão queria, e deixou-os ir para onde quisessem. E deveis saber que existiram três reis Herodes, todos eles homens maldosos e cruéis. Aquele de que falei era Herodes Ascalónitas, também conhecido por Herodes o Grande; aquele que mandou cortar a cabeça de São João Baptista era Herodes Antipas; e Herodes Agrippa mandou matar São Tiago, o irmão de São João Evangelista, e pôs São Pedro na prisão.
Além disso, na cidade de Jerusalém fica a igreja de São Salvador, e aqui encontram-se o braço esquerdo de São João Crisóstomo, e a maior parte da cabeça de Santo Estêvão. Um pouco a Sul daí fica a igreja de São Tiago, onde ele foi decapitado. Depois vem o Monte Sião: há aqui uma bela igreja de Nossa Senhora, no lugar onde ela viveu e morreu. Costumava localizar-se aí uma abadia, com monges regulares. Foi daqui que Nossa Senhora foi levada pelos anjos para o Vale de Jeosafate. Também há uma pedra trazida a Nossa Senhora por anjos do Monte Sinai, e em todos os aspectos é igual à rocha do Monte de Santa Catarina. Ali ao pé fica o portão através do qual Nossa senhora partiu para Belém. No início do Monte Sião há também há também uma capela onde se encontra a grande pedra com que os homens cobriram o Santo Sepulcro depois de deitarem lá dentro o corpo de Nosso Senhor. As três Marias viram esta pedra virada e afastada do túmulo quando vieram ao Sepulcro. Também está aqui um pedaço do poste a que Jesus foi amarrado enquanto O chicoteavam. A casa da Anaás era ali – ele era então Bispo dos Judeus. Ali está também um pedaço da mesa em que Cristo instituiu o Eucaristo e deu aos outros o Seu corpo na forma de pão e vinho. Foi aqui que Pedro negou Nosso Senhor três vezes antes de o galo cantar. Descendo trinta e dois degraus para baixo desta capela encontra-se o lugar onde Nosso Senhor lavou os pés dos discípulos – o vaso em que se encontrava a água ainda lá está. Ali perto fica o lugar onde Santo Estêvão foi enterrado. Há um altar onde Nossa Senhora ouviu os anjos cantarem a Missa. Foi nesse lugar que Cristo apareceu aos Apóstolos pela primeira vez desde a Sua Ressurreição, quando as portas estavam trancadas, e lhes disse, Pax uobis . E no Monte Sião Cristo apareceu a São Tomé e disse-lhe que tocasse nas Suas feridas, então ele acreditou pela primeira vez e disse, Dominus meus et Deus meus´ . Atrás do altar mais alto desta capela estavam todos os Apóstolos reunidos no Domingo de Pentecostes quando o Espírito Santo desceu sobre eles sob a forma de línguas de fogo. Foi ali que Cristo observou a Sua Páscoa com os Seus Apóstolos, e foi ali que São João Evangelista dormiu no joelho de Nosso senhor e no seu sono viu muitos dos mistérios do Céu.
O Monte Sião fica dentro da cidade, e de certa forma é mais alto que os seus outros lugares. A cidade é mais forte desse lado que dos outros; porque no sopé do Monte Sião o fica um castelo bem forte que o Sultão mandou construir. Este é o lugar onde São Pedro chorou copiosamente depois da renegação. É no Monte Sião que estão enterrados o Rei Salomão, o Rei David, e muitos outros. A cerca de uma pedrada de distância está uma outra capela, onde Nosso senhor foi condenado à morte. A casa de Caifás era aqui. A Leste deste capela, a sete passos quadrados de distância, fica uma gruta profunda debaixo de um rochedo que se chama Galilea Domini; São Pedro escondeu-se aqui depois de ter negado Cristo Três vezes. Entre o templo de Salomão e o Monte Sião fica o sítio onde Nosso senhor levantou a rapariga dos mortos. Abaixo do Monte Sião, na direcção do Vale de Jeosafate, fica um poço chamado o Lago de Siloão. Nosso Senhor foi aqui lavado depois de ter sido baptizado; e aqui devolveu a vista aos cegos. Aqui, também, está enterrado o profeta Isaías. Um pouco mais para trás, na direcção do lago, está uma escultura em pedra, um trabalho muito antigo. Chamam-lhe a mão de Absalão, porque Absalão a mandou fazer. Um pouco mais longe fica a figueira onde Judas se enforcou depois de ter atraiçoado Jesus Cristo. Depois fica a sinagoga onde o Bispo dos Judeus e os Fariseus se juntaram em concílio contra Jesus. E aqui Judas lhes atirou com as moedas de trinta dinheiros e gritou, Peccaui, tradens sanguinem iustum, o que quer dizer ´Pequei porque atraiçoei o sangue dos justos´ . E do outro lado do Monte Sião, para a direita, a uma pedrada de distância, fica o campo comprado com esses trinta dinheiros; e chama-se Acheldemak, o que quer dizer “O Campo de Sangue”. Neste campo estão os túmulos de muitos peregrinos Cristãos, porque é costume enterrar aqui os peregrinos. Há também muitas igrejas e capelas, e eremitérios onde vivem eremitas. A cem passos daqui em direcção a Leste fica a Casa-Mãe do Hospício de São João.
Uma milha a Oeste de Jerusalém fica uma bela igreja onde cresceu a árvore de que foi feita a Santa Cruz. A duas milhas dali fica uma igreja no lugar onde Nossa Senhora se encontrou com Isabel quando ambas estavam grávidas, e São João saltou na barriga da sua Mãe venerando o Seu Salvador. Debaixo do altar está o lugar onde nasceu São João Baptista. A apenas uma milha daí fica o Castelo de Emaús, para onde dois discípulos de Cristo iam depois da Ressurreição, e aqui reconheceram Nosso senhor quando o viram partir o pão. Também a duas milhas de Jerusalém fica o Monte da Alegria, que é um lugar bonito e aprazível; o profeta Samuel jaz aqui num belo túmulo. Chama-se Monte da Alegria porque é daqui que os peregrinos podem ter a sua primeira grande vista de Jerusalém; e depois da sua longa jornada sentem aqui uma grande alegria e imenso reconforto. Entre Jerusalém e o Monte Olivete fica o Vale de Jeosafate para lá das muralhas da cidade, como já disse antes; e no meio do vale há um ribeiro pequeno chamado Kedron. Sobre este ribeiro costumava estar a árvore que forneceu a madeira para a Cruz, usada então como ponte de madeira para que os homens pudessem atravessar as águas do Kedron. A pouca distância está um buraco no chão que é o sítio onde foi enterrado o poste a que Jesus foi amarrado quando O chicotearam. No meio do vale fica a igreja de Nossa Senhora, onde está o seu túmulo. E deveis saber que quando Nossa Senhora morreu tinha setenta e dois anos. Junto ao seu túmulo está o lugar onde Nosso Senhor perdoou a São Pedro todos os seus pecados. A apenas pouca distância, para Oeste, debaixo de um altar, vê-se uma nascente que vem directamente de um dos quatro rios do Paraíso. Embora esta igreja agora pareça mais baixa que todo o chão que está à volta dela, no entanto deveis saber que não se encontrava assim na altura em que foi construída; mas por causa do desmoronamento das muralhas da cidade, que foram caindo para ali, o nível do chão à volta da igreja subiu, e portanto agora o chão está mais alto que a igreja embora a igreja estivesse ao nível do chão quando foi construída. No entanto a opinião comum é que a terra tem crescido por si própria desde que Nossa Senhora foi enterrada, e que continua a crescer de dia para dia. Costumavam viver aqui frades pretos beneditinos que tinham um abade sobre eles. Por trás desta igreja há uma capela, junto da pedra chamada Gethsemane, onde Judas beijou Nosso Senhor quando Ele foi aprisionado pelos Judeus. Aqui Cristo deixou os Seus discípulos antes da Sua Paixão, quando se afastou deles para rezar e disse, Pater, si fieri potest, transeat a me cálix iste, o que quer dizer, ´Pai, se puder ser feito, afasta de mim este cálice´ . Na rocha ainda se vê a impressão das mãos de Nosso Senhor, onde empurrou a rocha quando os Judeus O levaram. A uma pedrada de distância, para Sul, fica outra capela, onde Nosso Senhor suou sangue. Ali ao pé fica o túmulo do Rei Jeosafate, de quem o vale toma o nome, pois ele foi o Rei daquele país. A uma flecha de distância, para Sul, está uma igreja onde foram enterrados São Tiago e o profeta Zacarias. De um dos lados do Vale de Jeosafate fica o Monte Olivete; e tem este nome por causa das muitas oliveiras que lá crescem. É mais alto que Jerusalém, e por isso de lá os homens conseguem ver todas as ruas da cidade. Entre essa montanha e a cidade só fica o Vale de Jeosafate, que não é muito largo. Foi no cimo dessa montanha que Nosso Senhor se ergueu antes de ser transportado para os Céus; os homens ainda conseguem ver a impressão do seu pé esquerdo na rocha onde Ele esteve de pé. Em tempos existiu aqui uma abadia de frades pretos Agostinhos mas agora só resta a igreja pequena. Um pouco mais à frente – a vinte e oito passos – há uma capela, e lá dentro está a pedra onde Nosso Senhor se sentou e pregou ao povo, dizendo, Beati pauperes spiritu, quoniam ipsorum est regum celorum, etc, o que quer dizer, ´Bem-Aventurados os pobres de espírito, porque deles será o Reino dos Céus`. Aqui Ele ensinou o Pater Noster aos discípulos, escrevendo o texto num rochedo; a escrita ainda é visível hoje. Ali ao pé fica uma igreja, onde Santa Maria do Egipto jaz no seu túmulo. Um pouco mais à frente, para Leste, fica Besfágio, onde Nosso Senhor ordenou a dois discípulos que fossem buscar-lhe o burro que montou no Domingo de Ramos. Um pouco para Leste de Monte Olivete há um castelo a que os homens chamam Betânia. Aqui vivia o Leproso Simão, que alojou Nosso Senhor e os Seus discípulos. Este Simão foi mais tarde baptizado pelos Apóstolos e chamado Juliano, e mais tarde foi feito bispo. É a este Juliano que os homens rezam para que possam arranjar bons alojamentos. Nesse mesmo lugar Nosso Senhor perdoou a Maria Madalena todos os seus pecados; e aqui ela lavou os Seus pés com as suas lágrimas e secou-Os com os seus cabelos. Aqui foi Lázaro levantado dos mortos quatro dias depois de morrer, quando o seu corpo no túmulo já cheirava mal. Aqui ficavam as casas de Lázaro e da sua irmã Marta. Era também aqui que vivia Maria Cleofa. Este castelo só fica a uma milha de Jerusalém. Um pouco afastado fica o lugar onde nosso Senhor chorou por Jerusalém. E aí ao pé fica o lugar onde Nossa Senhora deu a Sua cinta a São Tomé depois da Assunção. E um pouco mais à frente fica a pedra onde Jesus costumava sentar-se para pregar, e no mesmo sítio Ele aparecerá no Dia do Juízo. Um pouco para lá do Monte Olivete fica o Monte da Galileia, onde os Apóstolos estavam todos reunidos quando Maria Madalena veio dizer-lhes que Nosso Senhor ressuscitara dos mortos. A meio caminho entre o Monte Olivete e o Monte da Galileia fica a igreja onde o anjo avisou Nossa Senhora da chegada da Sua morte.
Cinco milhas separam Betânia de Jericó. Jericó era dantes uma cidade formosa, mas está destruída, e agora só resta uma pequena aldeia. Foi esta cidade que José capturou graças a um milagre de Deus, e arrasou até ao nível da terra, e ordenou que nunca fosse reconstruída; e também amaldiçoou todos os que alguma vez tentassem fazê-lo. Zaqueu, que segundo o Evangelho subiu a um sicómoro para conseguir ver Nosso Senhor, era desta terra. Também desta terra era a prostituta Raab, que acolheu os mensageiros de Israel quando vieram espiá-la; escondeu-os em sua casa no meio dos molhos de linho e disse que tinham abandonado a cidade antes de se fecharem os portões. Depois, à noite, ajudou-os a descer as muralhas por uma corda, e salvou-os da morte. E por isso quando Israel tomou a cidade foi bem gratificada, e merecidamente. Porque a Sagrada Escritura diz, Qui recipit prophetam in nomine prophete, mercedem prophete acciepte, o que quer dizer ´aquele que receber um profeta com o nome [nome do profeta] receberá a recompensa do profeta ` E portanto ela teve uma dádiva especial de Deus, porque disse aos mensageiros que conquistariam toda aquela terra, e assim foi. Depois Salomão, que era Príncipe da tribo de Judá, casou-se com ela; e, a seu tempo, foi desta linhagem que nasceu Nossa Senhora a Virgem Maria, mãe de Jesus Cristo.
De Betânia os homens atravessam o deserto até chegarem ao Rio Jordão – é cerca de um dia de jornada. Mas de Betânia até uma colina onde Nosso Senhor jejuou durante quarenta dias e quarenta noites são só seis milhas; essa colina chama-se Quarentena. Aqui veio o Demónio tentar Nosso Senhor, dizendo-lhe, Dic, ut lapides isti panes fiant, o que quer dizer, ´Manda a estas pedras que se transformem em pão` . Nesse lugar existia dantes uma bela igreja, mas agora só há um eremitério onde vivem uns religiosos chamados Jorgeanos, porque foi São Jorge quem os converteu. Abraão viveu por muito tempo nessa colina. Entre essa colina e o Rio Jordão corre um rio estreito, cuja água costumava ser maravilhosamente amarga, mas desde que o profeta Elias a benzeu tornou-se bastante doce e pode beber-se. No sopé desta colina, em direcção à planície, há uma grande nascente, que desagua no Jordão. Desta colina a Jericó vai só uma milha, quando se desce para o Rio Jordão. Na estrada para Jericó sentou-se em tempos o cego que bradou, lhesu, fili David, miserere mei, o que quer dizer, ´Jesus, filho de David, tem piedade de mim`.
12
Sobre o Mar Morto;
Sobre o Rio Jordão;
E da cabeça de São João Baptista,
E dos costumes no país dos Samaritanos.
A três milhas de Jericó fica o Mar Morto. Entre Jericó e esse mar fica o país de Engeddi. Em tempos crescia aqui o bálsamo, mas foi transplantado daqui para o Egipto, onde os arbustos em que o bálsamo cresce ainda hoje se chamam vinhas de Engeddi. Na costa deste mar a que se chega vindo da Arábia fica a colina dos Moabitas, a que se chama Arnon. Balak, filho de Zipor, levou Balaão o profeta ao cimo desta colina para amaldiçoar os filhos de Israel. Este mesmo Mar Morto separa as terras da Judeia e da Arábia; estende-se de Zoar à Arábia. A água deste mar é muito amarga e salgada, e se a terra for banhada por ele torna-se estéril e nunca dá colheitas. Esta água muda frequentemente de cor. Este mar deposita uma substância a que se chama asfalto. Todos os dias se encontram grandes bocados dele, do tamanho de um cavalo, atirados contra cada uma das margens; é como pez. E por isso há quem chame ao Mar Lago Asphaltis, o que quer dizer Lago de Pez. Chamam-lhe um Mar por causa do seu tamanho; porque tem setecentos e quatro oitavos de milha de comprimento e cento e cinquenta de largura. E chama-se o Mar Morto porque não tem marés, mas antes está sempre quieto, e não contém em si nenhuma coisa viva, nem homem nem besta, nem carne nem peixe. Isto foi já provado muitas vezes; porque já por muitas vezes que os homens atiraram lá para dentro criminosos condenados à morte pelos seus crimes, e o Mar deitou-os imediatamente fora. Os navios não podem navegar aqui se não estiverem bem untados com resina. Se uma lanterna acesa por atirada a estas águas, fica a flutuar; se for atirada apagada, vai ao fundo. E se for atirado um ferro, sobe até à superfície e flutua; mas se for atirada uma pluma, vai ao fundo. E isto é contra a natureza. E foi por pecados contra a natureza que as cinco cidades da sua orla foram destruídas – ou seja, Sodoma e Gomorra, Admah, Zeboiim e Zoar. Mas a maior parte de Zoar foi salva graças às preces de Lot, porque ficava numa colina. Em dias de bom tempo ainda se conseguem ver as suas muralhas acima da água. Nenhum homem se atreve a viver perto deste Mar, nem a beber a sua água. Alguns homens, conforme já disse, chamam-lhe o Lago Asphaltis, e outros o Lago do Demónio, e outros o Rio Malcheiroso, porque cheira mal. Na orla deste mar crescem árvores que dão maçãs de cores muito belas e deliciosas ao olhar; mas, quando se colhem e cortam, só se encontram lá dentro cinzas e poeira, como símbolos da vingança que Deus fez exercer sobre aquelas cinco cidades e sobre os campos à sua volta, queimando-os com os fogos do Inferno. Do lado direito deste mar a mulher de Lot foi transformada numa estátua de sal porque olhou para trás contrariando as ordens do anjo quando Deus estava a queimar as cinco cidades. E deveis saber que Lot era filho de Araão, e Araão era irmão de Abraão; e Sara, a mulher de Abraão, e Milca, a mulher de Nahor, eram irmãs de Lot. Quando Sara deu à luz Isaac já tinha noventa anos de idade. Abraão também tinha outro filho, que se chamava Ismael, e que foi circuncisado aos catorze anos . Mas Isaac foi circuncisado aos oito anos.
O Rio Jordão corre até ao Mar Morto, e desagua ali, porque dali já não prossegue o seu curso. Isto acontece a apenas uma milha para Oeste de uma igreja a São João Baptista, que marca o sítio onde São João baptizou Nosso Senhor. Os homens Cristãos costumam lavar-se aí. E a uma milha do Jordão há outro ribeiro, a que chamam Jabbok, que Jacob atravessou quando regressou da Mesopotâmia. O Rio Jordão não é muito grande, mas está muito cheio de peixes; corre a partir do Líbano, onde brota de duas fontes, uma chamada Ior e a outra Dão; e deve o seu nome a estas duas nascentes. Corre através de um país chamado Lago Merom, depois através do Mar da Tibéria e sob as montanhas de Gilboa; há uma planície muito rica de cada lado do rio. As montanhas do Líbano estendem-se até ao deserto de Faran, separando o reino da Síria do País dos Fenícios. Nestas encostas crescem cedros muito altos, e dão maçãs compridas tão grandes quanto a cabeça de um homem. O Rio Jordão separa a Galileia e o Reino da Iduménia e a terra de Bosra; nalgumas partes corre por baixo da terra, numa planície muito bela chamada Meldan , e aqui o Jordão é muito largo. Nesta planície fica o túmulo de Job. Neste rio Cristo foi baptizado por São João, e aqui ouviu-se a voz de Deus a dizer, Hic est filius meus dilectus, in quo michi bene complacui, o que quer dizer, ´Este é o Meu filho muito amado, escutai-O` . E aqui o Espírito Santo desceu sobre Ele em forma de pomba, e assim toda a Trindade esteve presente no Seu Baptismo. Através deste Rio Jordão passaram todos os Filhos de Israel a pé enxuto; deixaram pedras grandes no meio da água como símbolo do milagre. Naamão da Síria banhou-se neste rio sete vezes e ficou curado da sua lepra e feito são como um peixe. Há muitas igrejas junto ao Rio Jordão com homens Cristãos que vivem nelas. A pouca distância do rio fica a cidade de Ai que José cercou e tomou. Para lá do Jordão fica o Vale de Mamre, que é um vale muito belo. A duas milhas da colina – que já mencionei – onde Nosso Senhor jejuou e rezou durante quarenta dias e quarenta noites, em direcção à Galileia, fica uma montanha alta onde o Diabo levou Nosso Senhor para Lhe mostrar todos os reinos da terra e Lhe dizer ´Dou-te tudo isto se ajoelhares e me adorares` .
E deveis saber que quando se começa a jornada para lá do Mar Morto, em direcção a Leste depois das fronteiras da Terra Prometida, há um castelo belo e forte chamado Krak, o que quer dizer Monte Real. Balduíno, que foi Rei de Jerusalém, e que conquistou toda essa terra, mandou construir o castelo e manteve-o com guardas Cristãos. Por baixo desse castelo há uma boa cidade, chamada Shobek, onde muitos Cristãos vivem sob tributo aos Sarracenos com bastante segurança. Daqui os homens vão para Nazaré, de onde Nosso Senhor ganhou a Sua alcunha. Daqui para Jerusalém são três dias de jornada. Atravessa-se o país da Galileia, através de Ramah em Efrain e das montanhas de Efrain, onde viviam Elkanah e Hannah, o pai e a mãe do profeta Samuel. Samuel nasceu aí, mas foi sepultado no Monte da Alegria, como já disse antes. Depois chega-se a Shiloh, onde a Arca do Senhor era guardada por Eli, o padre da Lei. O povo de Hebron sacrificou-se aqui a Nosso Senhor. Foi aqui que Nosso Senhor falou com Samuel pela primeira vez. Aqui perto, para o lado esquerdo, ficam Shobek e Ramah em Benjamin de que fala a Sagrada Escritura. Daqui vai-se para Shechem, que por outro nome se chama Sychar, no país da Samaria, a dez milhas de Jerusalém. Alguns chamam-lhe Neopolis, o que quer dizer ´Cidade Nova`. Ali muito perto fica o poço de Jacob, onde Nosso Senhor falou com a Samaritana. Dantes existia aí uma igreja; agora está destruída. Ao lado desse poço Jeroboão Rei de Israel mandou fazer dois bezerros de ouro, e um foi mandado para Dan e outro para Betel, com ordens para que o povo os adorasse como deuses. A uma milha de Shechem há uma cidade chamada Betel onde Abraão habitou durante algum tempo. Um pouco mais adiante fica o sepulcro de José, filho de Jacob, que governou o Egipto; os seus ossos foram trazidos do Egipto e enterrados aqui. Na cidade de Shechem foi Dinah, a filha de Jacob, violada; e por causa disto os seus irmãos assassinaram muitas pessoas dessa cidade. A pouca distância dessa cidade fica o Monte Gerizim, onde os Samaritanos fazem os seus sacrifícios. Foi nessa encosta que Deus pediu a Abraão que lhe oferecesse em sacrifício o seu filho Isaac. Ali perto fica o Vale de Dothan. Nesse vale está a cisterna em que em que José foi aprisionado pelos seus irmãos antes de o venderem aos Ismaelitas – fica a duas milhas de Shechem. Daqui os homens vão para uma cidade na Samaria que se chama Sebastiyeh, e que é a maior cidade desse país, no meio de colinas como Jerusalém. Mas esta cidade já não é tão grande como o foi em tempos. São João Baptista está aqui enterrado entre dois profetas, Elias e Obadias. Mas foi decapitado no castelo de Macário junto ao Mar Morto, e os seus discípulos carregaram-no para Sebastiyeh. Aqui Juliano o Apóstata, quando foi Imperador, mandou exumar e queimar os seus ossos, e as suas cinzas foram espalhadas ao vento. Mas o dedo com que são João apontara para Nosso Senhor, dizendo, Ecce Agnus Dei etc, o que quer dizer ´Este é o Cordeiro de Deus`, nunca ninguém conseguiu queimar. Este dedo levou a virgem Santa Tecla para as montanhas, e aqui lhe são prestadas grandes honras. Em tempos houve aí uma grande igreja, mas agora está destruída, tal como todas as outras igrejas construídas à sua volta. Ali a cabeça de São João estava emparedada; mas o Imperador Teodósio mandou que a tirassem dali e descobriu que estava envolta num pano manchado de sangue. Por isso levou-o para Constantinopla, e metade dele ainda lá está; a outra metade está em Roma, na igreja de São Silvestre. O recipiente em que foi posta a cabeça depois de libertada está em Génova e todos lhe prestam grandes homenagens. Outros dizem que a cabeça de São João Baptista está antes em Amiens, na Picardia; e outros ainda que essa cabeça é antes a cabeça do Bispo São João. Eu não sei; Deus sabe .
De Sebastiyeh a Jerusalém são doze milhas. Entre as colinas desta terra há um poço que muda de cor quatro vezes no ano. Umas vezes é verde, outras vezes é vermelho; umas vezes está turvo e outras vezes está claro. Os homens chamam-lhe o Banho de Job. As pessoas desta terra chamam-se os Samaritanos, e foram convertidas e baptizadas pelos Apóstolos. Mas não mantiveram todos os ensinamentos dos Apóstolos, e por isso caíram em erros e acabaram por formar a sua própria seita, em que seguem uma lei diferente da dos Cristãos, da dos Judeus, da dos Sarracenos e da dos pagãos. Mesmo assim, acreditam num só Deus, e dizem que não há mais nada para além Dele, que todos fez e todos julgará. Seguem os Cinco Livros do Pentateuco à letra, e usam o Psaltério da mesma forma que os Judeus. Dizem que são os verdadeiros Filhos de Deus, e mais amados por Ele do que qualquer outro Homem. A sua forma de vestir também é diferente da dos outros homens, e enrolam os turbantes com um pano de linho encarnado para se distinguirem de todos. Porque os Sarracenos usam um turbante branco, os homens Cristãos que aqui habitam usam um turbante azul, e os Judeus usam um amarelo. Muitos Judeus vivem aqui, pagando tributos tal como pagam os Cristãos. E se souberdes o tipo de letras que os Judeus usam, podeis soletrá-las pelos seus nomes: Aleph, Beth, Gymel, Daleth, He, Vau, Zain, Cheth, Teth, Jod, Caph, Lamed, Mem, Nun, Samech, Ain, Pe, Tzaddi, Coph, Resh, Schin, Tau. Agora mostrarei quais as formas dessas letras:
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Sobre a Província da Galileia,
E sobre onde nascerá o Anticristo;
Sobre a Idade de Nossa Senhora;
Do Dia do Juízo;
E dos costumes dos Jacobitas Sírios.
Deste país de que falei os homens vão para as planícies da Galileia, deixando as colinas de um lado. A Galileia é um país na Terra Prometida, e nele ficam as cidades de Naym e Cafarnaum, Chorozin e Bethsaida, onde nasceram São Pedro e Santo André. O Anticristo nascerá em Chorozin. Mas alguns dizem que nascerá na Babilónia, e por isso a profecia diz, De Babilónia exiet coluber, qui totum [mundum] deuorabit , o que quer dizer, ´De Babilónia virá uma serpente que devorará todo o mundo`. O Anticristo há-de crescer em Bethsaida e reinar em Chorozin; e é por isso que a Sagrada Escritura diz delas, Ve tibi, Corozaym! Ve tibi Bethsaida! Ve tibi Capharnaum!, o que quer dizer, ‘Chora por ti, Chorozin! Chora por ti, Bethsaida! Chora por ti, Cafarnaum!`. Canaan da Galileia é aqui, a quatro milhas de Nazaré; foi aqui que nasceu São Simão. Também foi aqui que Nosso Senhor fez o Seu primeiro milagre, no casamento de Arquitríclino, quando transformou a água em vinho . Foi para os pântanos da Galileia, entre as montanhas, que levaram a Arca de Deus. Do outro lado fica a montanha de Endor em Hermon. Um pouco mais à frente Barak, filho de Abinoam, e a profetisa Deborah, venceram as hostes de Idumeia, quando o Rei Sisera foi morto por Jael, a mulher de Heber, tal como relata a Bíblia. Neste mesmo lugar Gideão e trezentos homens derrotaram três reis, Zebah, Zeeb e Zalmunna, e perseguiram-nos até para lá do Rio Jordão; mataram-nos e mataram a maior parte do seu exército. A cinco milhas de Naym fica a cidade de Jezrel, também chamada Zaraym. Jezebel, a rainha malvada, era dessa cidade; mandou injustamente matar Naboth para lhe ficar com a vinha. Um pouco para lá desta cidade fica a planície de Megiddo, onde o Rei da Samaria matou Josias, o rei de Judá , que foi depois transportado para o Monte Sião e aí sepultado. A uma milha de Jezrel ficam as colinas de Gilboa, onde o Rei Saul, o seu filho Jónatas, e um grande número dos Filhos de Israel pereceram na batalha. Por esta razão o Rei David amaldiçoou essas montanhas. A uma milha para Oeste fica a cidade de Citopolis, ou Betscham. Os Filisteus penduraram a cabeça do Rei Saul nas suas muralhas.
Por aqui os homens vão através da planície da Galileia até Nazaré, que dantes era uma cidade grande; mas agora só lá existe uma aldeia sem muralhas. Nossa Senhora nasceu em Nazaré, mas foi concebida em Jerusalém. Nosso Senhor ganhou o seu sobrenome de Nazaré, conforme já disse. Foi aqui que José se casou com Nossa Senhora, quando ela tinha catorze anos. Foi aqui que o Arcanjo Gabriel saudou Nossa Senhora dizendo Aue, gratia plena! Dominus tecum!, o que quer dizer ´Avé Maria, cheia de graça! O Senhor está contigo!´ Neste mesmo lugar há uma capela, construída por trás do pilar de um igreja que existia aqui nos velhos tempos; os peregrinos Cristãos fazem aí grandes oferendas. Está lá o Poço de Gabriel, onde Nosso Senhor costumava banhar-se em criança. E desse poço costumava Ele tirar água para a Sua Mãe, e era nele que Ela lavava as Suas roupas. De Jerusalém a Nazaré a jornada é de três dias. Nosso Senhor foi criado aqui. Nazaré quer dizer ´flor do jardim`; e merece ser chamada assim, porque aqui foi amamentada a Flor da Vida, Nosso Senhor Jesus Cristo. A duas milhas de Nazaré, na estrada que os homens seguem em direcção ao Acre, fica a cidade de Seffûrich. A meia milha fora de Nazaré fica o Salto de Nosso senhor; porque os Judeus levaram-no para cima de uma rocha íngreme, de onde tencionavam atirá-lo para O matarem, mas Nosso Senhor passou pelo meio deles e saltou para outra rocha, onde ainda se vê a marca dos Seus pés. E é por isso que alguns homens, quando estão com medo dos ladrões , recitam o verso que aqui ficou inscrito, lhesus autem transiens per médium illorum ibat, o que quer dizer ´Jesus passou pelo meio deles e seguiu o seu caminho`. E também dizem estes versos do Psaltério, Irruat super eos formido et pauor in magnitudine brachii Tui, Dominie. Fiant immobilis quasi lápis, donec persansedtristi populus tuus, Domine, donec pertransiat tuus ist, quem possedisti, o que quer dizer ´Deixa a grandeza do gesto do Teu braço cair sobre eles, oh Senhor. Que sejais tão quieto quanto uma pedra enquanto passa o Teu povo, que Tu trouxeste até aqui contigo’ . Depois de recitar isto, um homem pode seguir corajosamente em frente sem hesitação. E deveis saber que Nossa Senhora a Virgem Maria, quando estava grávida de Cristo, tinha quinze anos; e que viveu com Ele na Terra trinta e três anos e três meses, conforme já disse.
De Nazaré até ao Monte Tabor são três milhas; é uma montanha alta e linda. Dantes era uma cidade com muitas igrejas , mas agora estão todas destruídas . Há no entanto um lugar que foi poupado, a Escola de Nosso Senhor, onde Ele instruiu os Seus discípulos no respeitante aos segredos do Céu. No sopé dessa montanha fica o lugar onde Melchisedek, que era padre de Deus e rei de Jerusalém, conheceu Abraão quando ele descia a montanha, depois de ter derrotado os seus inimigos. Foi nessa montanha que Nosso Senhor se transfigurou perante Pedro, Tiago e João; estes viram-no a conversar com Moisés e Elias. E assim São Pedro disse, Bonum est nos hic. Faciamus hic tria tabernacula`,, o que quer dizer `È bom estar aqui. Façamos aqui três tabernáculos.` E Cristo disse-lhes que não falassem a ninguém daquela visão até Ele se ter levantado dos mortos. Na mesma montanha, naquele preciso lugar, no Dia do Juízo, virão os quatro anjos tocar as suas trompetas e levantar para a vida todos os que estiverem mortos. E todos estes virão, de corpo e alma, prostrar-se perante o Deus Soberano no Vale de Jeosafate, para escutarem o julgamento sobre si próprios; isto acontecerá num Domingo de Páscoa, à hora da Ressurreição de Cristo. Pois que, como dizem os estudiosos, no mesmo espaço e tempo em que Ele vagueou pelo Inferno virá Ele agora destruir o mundo e tomar os seus amigos e conduzi-los à felicidade sem fim, ao mesmo tempo que condena os maus a dores que nunca acabam.
Também a uma milha de Monte Tabor fica o Monte Hermon; aqui ficava a cidade de Naym, diante de cujas grades Nosso Senhor reergueu para a vida o filho da viúva. A três milhas de Nazaré fica o castelo de Seffûrich, onde nasceram os filhos de Zebedeu e de Alfeu. A sete milhas de Nazaré está o poço onde Lamech matou Caim com uma flecha, tomando-o por um animal selvagem. De Seffûrich os homens vão para uma cidade chamada Tibéria, erguida frente ao Mar da Galileia. Embora lhe chamem mar, não é um mar nem um braço de mar mas antes um lago de água doce; tem quase uma centena de passos de comprimento e quarenta de largura. Há lá muitos bons peixes, e o Rio Jordão atravessa-o. É de grande valor para o país. Onde o Rio Jordão deixa o Mar da Galileia há uma grande ponte, sobre a qual os homens abandonam a Terra Prometida e passam para a terra de Basan e para a terra de Gennesaret, que fazem fronteira com o Rio Jordão.
Daqui pode-se ir até Damasco em três dias, através do país de Gaulonite, que se estende do Hebron ao Mar da Galileia, que também é chamado Mar da Tibéria ou Lago de Gennesaret. Tem estes diferentes nomes conforme as cidades que se erguem nas suas margens. Foi sobre este mar que Nosso Senhor caminhou quando disse a Pedro, Modice fidei, quare dubitasti?, o que quer disser, ´Homem de pouca fé, porque duvidaste?´ . E isto foi quando Pedro foi ter com Cristo na água, e estava quase a afogar-se quando Cristo lhe deu a mão e o levantou, e disse as palavras que acabo de citar. Cristo também apareceu aos Seus discípulos depois da Sua Ressurreição quando eles estavam a pescar, e encheu-lhes as redes de peixe. Eles deram-lhe uma parte de um peixe grelhado e um favo de mel. Pedro e André também pescavam neste mar, e Tiago e João, quando Jesus os chamou para O seguirem; eles abandonaram imediatamente as redes e foram atrás Dele. Nesta cidade de Tibéria está a mesa onde Nosso Senhor comeu com os Seus discípulos depois de ter ressuscitado, sobre a qual a Sagrada Escritura diz, Cognouerunt Dominum in fractione panis, o que quer dizer, ´Reconheceram Nosso Senhor ao partir o pão` . Junto desta cidade fica a colina onde Nosso Senhor alimentou cinco mil homens com cinco pães e dois peixes. Nesta cidade, também, um homem mau atirou um tição em chamas a Nosso Senhor para despertar Nele a cólera; atingiu-O na cabeça, e o tição caiu para o chão e enterrou-se aí e cresceu, e com o tempo veio a dar fruto, uma grande árvore. Ainda lá está, e continua a crescer. Na extremidade Norte do Mar da Galileia, fica um castelo chamado Safed, junto a Cafarnaum, e não há castelo melhor na Terra Santa. Junto a esse castelo há uma pequena cidade, com o mesmo nome que o castelo. Santa Ana, a Mãe de Nossa Senhora, nasceu neste castelo, e esta era a casa de Centúrio . Esta região chama-se Galilea Gentium, e ficou para o lote de Zebulão e de Naftalio. A trinta milhas desse castelo fica a cidade Dan; ergue-se junto ao Líbano, onde o Rio Jordão aflora à superfície. Esta é outra fronteira da Terra Prometida, que se estende de Norte a Sul até Betsabé – quase nove milhas quadradas. Em largura vai de Jericó a Jaffa, e isto são quarenta milhas da Lombardia.
A Terra Santa fica na Síria porque a Síria se estende dos desertos da Arábia aos da Cilícia, o que é como dizer, a Arménia Maior, de Sul a Norte; de Leste a Oeste vai dos grandes desertos da Arábia ao Mar Ocidental . Mas existem muitos reinados dentro deste Reino da Síria – a Judeia, a Palestina, a Galileia, a Arménia Menor, e muitos outros. Quando os castelos ou as cidades destes reinos estão em guerra, usam pombos em vez de mensageiros para levar cartas de umas facções para as outras. Atam as cartas aos pescoços dos pombos e deixam-nos voar na direcção desejada. Os pombos, com o costume do hábito e do uso, voam para a outra parte, e quando tiram as cartas do seu pescoço voam outra vez para onde foram criados.
E deveis saber que entre os Sarracenos, em diferentes lugares, vivem muitos homens Cristãos que lhes pagam tributo; seguem diferentes tradições, e leis, e costumes, conforme a Constituição da área que habitam. No entanto, são todos baptizados e acreditam na Santíssima Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo. Mas em alguns aspectos diferem de nós. Há homens Cristãos chamados Jacobitas que foram convertidos por Santo André e baptizados por São João Evangelista. Defendem que a confissão só deve ser feita a Deus, e não a outros homens. Porque dizem que Deus nunca ordenou que um homem se confessasse a outro, e é por isso que David diz no Salmo, Confitebor tibi, Domini, in totó corde meo, o que quer dizer, ´Senhor, confesso-me a Ti com todo o meu coração` . E noutro lugar diz, Delictum meum tibi cognitum feci, o que quer dizer, ´Senhor, a Ti revelarei os meus maus actos` . E mais à frente ainda diz, Quoniam cogitacio hominis confitebitur tibi, o que quer dizer, ´Porque o pensamento do homem Te será revelado` . Os Jacobitas também dizem que só devemos pedir perdão àquele que ofendemos. Mas Deus nunca ordenou – nem nenhum dos seus Profetas, ao que dizem – que um homem revelasse os seus pecados a ninguém excepto a Deus. E para sustentar esta afirmação alegam a autoridade do Psaltério, como já vos disse. Também dizem que Santo Agostinho e São Gregório e outros Padres da Igreja afirmam a mesma coisa. Porque Santo Agostinho diz, Qui scelera sua cogitat et conuersus fuerit, ueniam sibi credat, o que quer dizer, ´Quem conhecer o seu pecado e se converter dele, pode acreditar que tem perdão`. E São Gregório diz isto: Dominus potius mentem quam uerba considerat, o que quer dizer, ´Nosso Senhor toma mais nota dos pensamentos que das palavras`. Santo Hilário também diz, Longorum temporum crimina in ictu oculi perient, si corde nada fuerit contemplacio -- ´Pecados cometidos há muito tempo morrerão num piscar de olhos, se o desagrado por eles nascer no coração de um homem`. Citam estas autoridades na sua própria língua, e não em Latim; e por causa das suas autoridades defendem que um homem só deve confessar-se a Deus, e não a outro homem. E por isso quando querem fazer uma confissão acendem uma fogueira junto deles, atiram-lhe incenso, e, quando o fumo sobe, dizem ´Faço a minha confissão a Deus e peço perdão pelo meu pecado`. E embora esta fosse a forma de confissão dos tempos antigos, São Pedro e outros Apóstolos que vieram depois ordenaram na sua sabedoria que os homens devem confessar-se a padres, que são homens como eles. Porque consideram que um homem doente não pode receber a medicação adequada se não se conhecer bem a sua doença, e portanto um homem não pode prescrever a penitência justa se não souber quantos e que tipo de pecados é que estão em causa. Porque há pecados mais graves que outros, e em certas alturas há mais pecados que noutros; e portanto é necessário que o homem que vai impor a penitência conheça o pecado e as suas circunstâncias.
Há outros Cristãos chamados Sírios. Seguem uma lei a meio caminho entre a nossa e a dos Gregos. Deixam crescer as barbas como fazem os gregos, e consagram no altar pão que não foi levedado como os Gregos, e usam o alfabeto Grego; confessam-se como fazem os Jacobitas. Há ainda outros que são os Jorgeanos, que São Jorge converteu. É a ele que eles honram e reverenciam antes de todos os outros Santos. Todos rapam o cabelo, o clero com uma tonsura redonda e os leigos com uma tonsura quadrada. Seguem a lei dos Gregos. Há ainda um outro grupo a que chamam Os Cristãos do Cinto , porque usam um cinto como o dos Franciscanos. Também há outros chamados Nestorianos , outros que são Arianos, outros Núbios, outros Gregos, e outros Índios, sendo que estes últimos vêm da terra do Preste João. São todos chamados Cristãos, e mantêm e seguem muitos artigos da nossa fé, mas em muitos pontos também variam da nossa fé. As suas diferenças seriam demasiadas para relatar.
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Sobre a cidade de Damasco;
Sobre três estradas para Jerusalém,
Uma por terra e por mar,
A outra mais por terra que por mar,
E a terceira por terra.
Agora que vos falei dos diferentes povos que vivem nestes países, voltarei ao meu tema principal para vos dizer como é que um homem pode regressar daqueles países até aos nossos. Quem quiser regressar das terras da Galileia de que falei antes passará por Damasco, que é uma cidade encantadora cheia de boas mercadorias. Fica a três dias de marcha do mar, e a cinco de Jerusalém. Os homens de Damasco transportam as suas mercadorias em camelos, mulas, dromedários, cavalos, e outras bestas; os seus bens chegam pelo mar da Índia, da Pérsia, da Caldeia, da Arménia e de muitas outras regiões. Esta cidade foi fundada por Eleazar de Damasco, que era o filho do criado do Patriarca Abraão, e a cidade foi baptizada com o seu apelido. Eleazar esperava ser senhor deste país depois da morte de Abraão, porque nessa altura Abraão ainda não tivera Isaac. Foi neste lugar que Caim assassinou o seu irmão Abel. Atrás de Damasco fica o Monte Seir. Em Damasco há muitos poços, tanto dentro como fora da cidade; também há muitos jardins bonitos, que dão frutos com abundância. Não há outra cidade como esta para árvores de fruto. Nessa cidade vive uma grande população, e está bem protegida e murada, com muralhas duplas. Vivem aqui muitos físicos, e em tempos São Paulo exerceu aqui Medicina, antes de se converter; São Lucas foi seu pupilo na aprendizagem de Medicina, e muitos outros o foram também. Porque naquela cidade Paulo manteve uma escola dessa Ciência, mas depois passou a ser médico das almas. Converteu-se em Damasco, e ficou aí três dias e três noites, e nem comeu nem bebeu, nem viu nada com os seus olhos corpóreos,; mas em espírito foi levado ao Céu, onde viu os segredos celestes. A pouca distância de Damasco está o castelo de Arqa – um castelo sólido e forte. Vindos de Damasco os homens passam por um lugar chamado Saidenaya, a cinco milhas de distância. Fica em cima de uma rocha. É um lugar muito belo e delicioso, de certa forma semelhante a um castelo – dantes havia aqui um. Agora há uma bela igreja onde vivem monges e monjas Cristãos. Fazem aqui excelente vinho. Nesta igreja, atrás do altar-mór, na parede, há um painel de madeira onde em tempos foi pintado um retrato de Nossa Senhora, e esta imagem ganhava vida muitas vezes.; mas agora raramente se vê essa pintura. No entanto o painel está constantemente a exudar um óleo que é como se fosse azeite; e há um vaso de mármore aos pés do quadro para recolher esse óleo. Dão algum aos peregrinos, porque cura muitas das suas doenças; e diz-se que se for bem guardado durante sete anos depois se transforma em carne e osso.
De Sadenaya os homens avançam através do Vale de Bekaa, que é de uma grande fertilidade, produzindo todos os tipos de frutos. Está rodeado por montanhas. Essas montanhas têm rios admiráveis, e belos arbustos, e pastagens nobres para o gado. Os homens viajam através das montanhas do Líbano, que se estendem da Arménia Maior ao Dan , que é o extremo Norte da Terra Prometida, como disse antes. Estas montanhas são muito frutíferas, e contam com muitos bons poços, cedros e ciprestes, e muitos outros tipos de árvores. Há várias cidades populosas no sopé destas colinas.
Entre a cidade de Arqa e a cidade de Rafina fica um rio, chamado o Sabatório. Aos Sábados corre depressa, e durante o resto da semana ou corre devagar ou não corre de todo, ou só tem agitação à superfície. Entre as colinas que já mencionei há outro curso de água que à noite congela completamente e fica sólido, enquanto que de dia não se vê lá qualquer gelo. Depois chega-se a uma cidade grande e bela, chamada Tripoli, onde vivem muitos bons homens Cristãos, que seguem os mesmos costumes que nós. Daqui os homens chegam a uma outra cidade chamada Beirute, onde São Jorge matou o dragão. É uma boa cidade, com um bom castelo, e fica a três dias de jornada de Saidenaya. É em Beitute que embarcam os peregrinos que querem seguir via Chipre, e chegam ao porto de Sûr, portanto chegam a Chipre em pouco tempo. Ou, se quiserem nem aportar a Chipre, seguem directamente para a Grécia, e daí para esta parte do mundo.
Contei-vos agora tudo sobre a via mais longa e longínqua que os homens seguem para Jerusalém, via Babilónia e Monte Sinai e muitos outros lugares de que me ouvistes falar, e também indiquei um caminho para os homens regressarem da Terra Prometida. Vou agora falar-vos da via mais curta e rápida para Jerusalém. Porque alguns homens não querem usar a outra via – alguns por falta de dinheiro, outros por falta de companhia, outros por falta de saúde, outros por medo dos perigos do deserto, outros porque querem voltar depressa para casa para se reunirem com a mulher e com os filhos, e por muitas outras causas razoáveis que os fazem querer voltar depressa. E portanto vou mostrar como é que os homens podem viajar mais depressa e fazer a sua peregrinação a Jerusalém no tempo mínimo. Um homem vindo das terras do Oeste atravessará a França, a Burgandia e a Lombardia, e prosseguirá até Veneza ou Génova, ou outro porto, e embarcará aqui para velejar até à ilha de Corfu, que pertence aos Genoveses. Depois chega à Grécia pelo porto de Mavrovo, ou de Valona, ou de Durazzo, ou qualquer outro porto na Grécia; descansa, compra mantimentos, e depois volta a navegar até ao Chipre. Chegará a Famagusta sem aportar em Rodes. Famagusta é o maior porto de Chipre, e aqui o viajante pode outra vez descansar e comprar comida; e depois volta a embarcar; se assim o desejar, já não volta a ir a terra até chegar ao porto de Jaffa, de todos os que está mais perto de Jerusalém. Fica apenas a um dia e meio de jornada de Jerusalém – digamos que trinta e seis milhas. De Jaffa vai-se até à cidade de Ramleh, só um pouco mais à frente; é uma bela cidade, onde vivem muitos homens bons. Fora dessa cidade, para Sul, há uma igreja de Nossa Senhora, onde Nosso Senhor se mostrou a Ela em três nuvens, representativas da Trindade. Um pouco mais para o lado há outra cidade, chamada Dispolis, mas que dantes se chamava Lûud; uma cidade bem habitada; há ali uma igreja de São Jorge, onde ele foi decapitado. Daqui os homens vão para o castelo de Emaús, e daí para o Monte da Alegria; e daqui que muitos peregrinos vêem Jerusalém pela primeira vez, conforme já disse. O profeta Samuel está sepultado no Monte da Alegria. Daqui os homens vão para Jerusalém. De um lado dessa estrada fica a cidade de Ramah e Latrão; Matatias, o pai de Judas Macabeu, nasceu aqui, e os túmulos dos Macabitas ainda aqui estão. Para lá de Ramah fica a cidade de Tekoa, de onde veio o profeta Amos; a sua sepultura está aqui.
Já vos falei dos lugares sagrados de Jerusalém e dos lugares à sua volta, e por isso por agora não vou dizer mais sobre eles. Mas vou voltar atrás para vos dizer de outros roteiros que podeis escolher, desta vez permanecendo sobretudo em terra firme – útil para aqueles que não aguentam viajar por mar, mas antes preferem viajar por terra, mesmo que o caminho seja mais longo e lhes dê mais trabalho. Vai-se até um dos portos da Lombardia, porque esse é o melhor lugar para comprar provisões; ou podeis antes ir para Veneza, ou para Génova, ou para qualquer outro porto. Daqui um homem atravessa o mar até à Grécia, ao porto de Mavrovo, Valona, Durazzo, ou um outro porto. Daqui irá por terra até Constantinopla, e cruzará o braço de água chamado o Braço de São Jorge, que é uma infiltração do mar. Daqui irá por terra até Bufinel onde há um bom castelo, muito forte; e daqui para Bafira e para o castelo de Sinope; daqui vai para a Capadócia que é um país grande, com muitas montanhas altas. Passará através da Turquia até chegar ao porto de Chiutok e à cidade de Niceia que fica só sete milhas mais à frente. Os Turcos conquistaram esta cidade ao Imperador de Constantinopla ; é uma bela cidade, bem murada de um dos lados, e do outro lado há um grande lago e um grande rio, chamados Lay. Daqui os homens vão através das Montanhas Negras da Frígia e dos vales de Mailbrins, e dos campos abertos; passa-se pela cidade de Kunya e daqui para a Antioquia Menor que fica na margem do Rio Heracleia. Há muitas belas montanhas nestas partes, muitos belos bosques e muito boa caça para caçar.
Quem quiser tomar um caminho diferente irá através das planícies do Império Grego na Ásia Menor, junto à orla do Mar Romano. Nessa costa fica um castelo chamado Florach e é um lugar muito forte. Mais para a frente nas montanhas há uma bela cidade chamada Tarso, e também as cidades de Longemaath, Adana e Mopsuestia. Quando um homem já atravessou essas montanhas e campos, atravessará ainda a cidade de Marash e Artah, onde há uma grande ponte sobre o rio Oronte – um rio volumoso, que é navegável; corre depressa das montanhas até Damasco. Perto da cidade de Damasco há outro rio que vem do Líbano, que se chama Abana. Foi durante a travessia deste rio que Santo Eustácio, que antes se chamou Plácido, perdeu a mulher e dois filhos. Este rio corre através da planície de Arcadas e daqui para o Mar Vermelho. Daqui os homens vão para a cidade de Filomélio, onde há nascentes e banhos quentes. Depois os homens vão para a cidade de Ilgun, e são dez milhas de Filomélio a Ilgun. Aqui há muitos belos bosques. Mais dez milhas para a frente os homens chegam à Antioquia Maior. É uma bela cidade, muito bem murada, com muitas torres e torreões; continua a ser uma grande cidade, mas já não é tão grande como era dantes. Costumava ter duas milhas de comprimento e meia milha de largura. Através da cidade corria o rio Orontes, com uma grande ponte por cima. Dantes a cidade tinha 350 torres e cada poste da ponte era uma torre. É a principal cidade do Reino da Síria. A dez milhas da cidade fica o porto de São Simão onde o rio desemboca no mar. Da Antioquia vai-se para uma cidade chamada Latakia, daí para Gebal, e depois para Tortosa. Ali ao pé é aterra de Edessa onde fica um castelo forte chamado Baalbek. De Tortosa os homens viajam por mar até Tripoli, ou então vão por terra através de passagens na montanha. Há uma cidade chamada Djebeil. De Tripoli os homens vão para o Acre, e daqui há dois caminhos para Jerusalém, um pela direita e outro pela esquerda. O caminho da esquerda leva-vos por Damasco e pelo Rio Jordão. O caminho da direita leva-vos pela costa e através da terra da Flagrâmia, e perto das montanhas até à cidade de Haifa, a que os homens chamam Castelo dos Peregrinos. Daqui a Jerusalém é uma jornada de três dias, durante a qual os homens vão através da Caesarea Philippi, depois por Jaffa, Ramleh, o castelo de Emaús, e daqui até Jerusalém.
Agora falei-vos de alguns dos caminhos por mar e por terra que os homens podem seguir para a Terra Santa, de acordo com os países de onde começam. Todos vêm aqui com o mesmo objectivo. Há ainda outro caminho para Jerusalém, totalmente por terra, e, da França e da Flandres, não há necessidade de cruzar qualquer mar. Mas esse caminho é longo e perigoso e cheio de dificuldades, e por isso poucos o tomam. Mas se um homem quiser, pode ir até à Alemanha e à Prússia, e daqui avançar até à Tartaria . Esta Tartaria tem como suserano o Grande Khan de Cathay, de quem tenciono falar mais tarde. É uma terra dura, arenosa e estéril. Aqui não crescem nem milho, nem vinha, nem feijão, nem ervilhas, nem nenhum outro fruto destinado a manter um homem vivo. Mas há uma grande quantidade de bestas, e portanto os Tártaros comem muita carne, sem pão, e fazem canja com os ossos, e também bebem o leite de toda a ordem de bestas; e como têm pouca madeira cozinham a carne em fogos feitos com o estrume dos animais. Comem cães e gatos, ratazanas e ratos, e toda a outra sorte de bestas. Só comem uma vez por dia, príncipe ou servo, e mesmo nessa única refeição comem muito pouco. São pessoas diabólicas, cruéis e cheias de más vontades. A terra raramente não tem grandes tempestades. E no verão há grandes trovadas, que matam homens e bestas. A temperatura do ar também muda muito depressa – agora muito quente, e logo a seguir muito frio – e portanto é um sítio onde é difícil viver. O príncipe que governa esta terra chama-se Batu e vive numa cidade chamada Orda . Com toda a certeza, nenhum homem bom viverá nesse lugar, porque só é bom para cicuta e urtigas e outras ervas daninhas; não é bom para mais nada, tal como ouvi (porque eu próprio nunca lá estive). Estive, no entanto, noutras terras que fazem fronteira com esta, tais como a Rússia, a Livónia, a Lituânia, o Reino de Cracóvia e o Reino de Silistria e muitos outros lugares. Mas nunca segui esse caminho para Jerusalém, e portanto não posso falar dele. Ouvi dizer que ninguém pode facilmente passar por aqui no Inverno por causa dos rios e pântanos que lá existem, que só podem ser atravessados se tiverem por cima uma camada sólida de gelo, que se forma depois de ter caído muita neve. Se não houver neve, ninguém pode progredir sobre o gelo. Três dias de jornada desta poderão levar um homem da Prússia até uma terá habitável de Sarracenos. E, quando os homens Cristãos tomam este caminho todos os anos, transportam provisões com eles em trenós e carros sem rodas; porque não encontrarão nada senão o que levarem consigo. Podem ficar lá o tempo que durar a comida, e nem mais um dia. Quando os espiões dessa terra vêem Cristãos aproximarem-se para a guerra, correm para as cidades gritando “Kera, Kera, Kera! ”, e armam-se imediatamente para se defenderem. E deveis saber que o gelo e a neve são muito mais fortes ali que nos nossos países; e por isso cada homem tem um fogão em casa, onde come e bebe. Porque ali é chocantemente frio, uma vez que se trata do lado Norte do mundo, onde o frio é geralmente mais intenso do que nas outras partes porque o sol brilha menos. E do lado Sul do mundo há lugares que são tão quentes que nenhum homem consegue lá viver.
15
Sobre os costumes dos Sarracenos e sobre as suas leis;
Como o Sultão falou com o Autor deste Livro;
E sobre o princípio de Maomé, etc.
Agora, como falei dos Sarracenos e das suas terras, irei dizer-vos algumas coisas sobre as suas leis e o seu credo, tal como está escrito no livro da sua lei, o Corão. Alguns chamam-lhe o Mashaf , e outros o Horme , dependendo da linguagem dos diferentes países. Maomé deu-lhes este livro. Entre outras coisas nesse livro está contida a afirmação, e eu várias vezes o li e vi nas suas páginas, de que depois da Morte os homens bons e justos vão para o Paraíso e os homens maus vão aguentar as dores sem fim do Inferno. Todos os Sarracenos acreditam firmemente nisto. E se lhes perguntarem de que Paraíso é que estão a falar, eles respondem que é um lugar de delícias, onde um homem encontrará todos os tipos de frutos em todas as estações do ano, e rios de vinho correndo em pequenas cascatas, e leite, e mel, e águas claras, e dizem que terão belos palácios e grandes mansões, dependendo dos hábitos dos seus desertos, e que esses palácios e mansões são feitos de pedras preciosas, ouro e prata. Cada homem terá quatro mulheres, que serão quatro jovens muito belas, e poderá estar com elas sempre que quiser, e há-de encontrá-las sempre virgens. Todos acreditam que encontrarão tudo isto no Paraíso, e isto é contra o nosso credo. Os Sarracenos acreditam na Encarnação, e estão sempre dispostos a falar na Virgem Maria; dizem que ela foi ensinada por um anjo, e que Gabriel lhe disse ter ela sido escolhida por Deus, antes do Princípio do Mundo, para dar à luz o Seu filho; e que o teve e no entanto era virgem antes, e que permaneceu virgem depois. E o Corão concorda com isto. Também dizem que Cristo começou a falar assim que nasceu e que foi (e é) um santo e verdadeiro profeta em palavras e obras, e justo e misericordioso para todos, e sem pecado. Também dizem que quando o anjo saudou Nossa Senhora e lhe falou da Encarnação Ela se sentiu muito envergonhada e estupefacta com as suas palavras; dizem que isto foi principalmente porque por essa altura vivia ali perto um homem diabólico chamado Takyna, que praticava feitiçaria, fazendo-se passar por um anjo com os seus encantamentos e assim enganando as donzelas por forma a seduzi-las. Por isso Maria teve medo, e enfrentou Gabriel para que lhe dissesse se era ou não Takyna. E o anjo respondeu-lhe e disse-lhe para não ter medo, porque ele era o verdadeiro mensageiro de Deus. O livro deles, o Corão, também diz que quando Maria teve o seu filho, à sombra de uma palmeira, rompeu em soluços e desejou estar morta. Nessa altura a Criança voltou-se para Ela e confortou-a com as seguintes palavras: “Não chores, porque em Ti Deus fez o Tabernáculo de onde virá a salvação do Mundo”. E o Corão testemunha em várias outras passagens que Jesus Cristo falou assim que nasceu. Esse livro diz que Deus mandou Jesus ao mundo como um exemplo e um espelho para todos os homens. Também fala do Dia do Juízo, quando Deus virá para julgar todos os homens; trará os bons para o Seu lado para lhes dar glória e alegria para sempre, e condenará os maus às dores intermináveis do Inferno. Dizem que Cristo é o melhor entre todos os profetas, o mais valioso, o mais próximo de Deus, e que fez os Evangelhos, nos quais há boa doutrina, verdade, e exaltação para os que acreditam em Deus; dizem que Ele era mais que um profeta, uma vez que viveu sem pecado, deu vista aos cegos, curou os leprosos e ressuscitou os mortos – e subiu aos Céus com o Seu corpo. Quando conseguem encontrar cópias dos Evangelhos honram-nas deveras, especialmente o Evangelho do Missus est ; esse Evangelho aqueles que são letrados beijam com devoção, e recitam-no com frequência nas suas orações. Todos os anos jejuam durante um mês inteiro, e só comem ao cair da noite, e afastam-se das suas mulheres durante todo esse mês. Os doentes, no entanto, não são obrigados a seguir este jejum. O livro, o Corão, também fala dos Judeus dizendo que são maus e amaldiçoados, porque se recusam a acreditar que Jesus foi mandado por Deus; também diz que mentem sobre Maria e sobre o seu filho Jesus Cristo, quando dizem que O crucificaram. O Corão diz que eles não crucificaram Jesus, porque Deus O chamou para junto de si sem morte e transferiu a forma e aparência do Seu corpo para Judas Iscariote, e foi ele que os Judeus crucificaram, pensando que era Jesus. Mas Jesus, dizem eles, foi levado vivo para os Céus, e na Sua carne voltará para julgar o Mundo. Os Cristãos não acreditam nisto, e por isso os Sarracenos defendem que os Cristãos estão enganados quando insistem que Jesus morreu na Cruz. Todas as suas ideias principais estão no Corão. Os Sarracenos também dizem que, se Jesus tivesse sido crucificado, Deus teria actuado contra a Sua própria justiça, deixando um tal inocente ter uma morte tão horrível; dizem que estamos enganados a este respeito. Mas são eles que estão enganados. Admitem livremente que todas as acções de Cristo, os Seus dizeres, os Seus ensinamentos e os Seus Evangelhos são bons e verdadeiros; e que os Seus milagres também são verdadeiros. Confessam sem problemas que a Virgem Maria também era uma donzela pura, santa, e sem mácula, tanto antes como depois do nascimento de Cristo; e que aqueles que acreditam perfeitamente em Deus serão salvos. E como se aproximam tanto da nossa fé nestes pontos – e em muitos outros – parece-me que seriam muito mais facilmente convertidos ao nosso credo através de pregação de homens Cristãos. Dizem que bem sabem, a partir das suas próprias profecias, que a lei do Corão falhará no fim tal como a lei dos Judeus já falhou, e que só o credo Cristão viverá até ao Juízo Final. Se um homem lhes perguntar qual é o seu credo, eles respondem sem hesitação “Acreditamos em Deus, que fez os Céus e todas as outras coisas a partir do nada, e nada foi feito sem ser por Ele. Acreditamos que virá o Dia do Juízo, quando cada homem será recompensado de acordo com os seus feitos. Também acreditamos verdadeiramente que tudo o que Deus disse através dos Seus santos profetas enquanto estes estavam na Terra é a verdade”. Também dizem que, no Corão, Maomé ordenou que cada homem tivesse três ou quatro mulheres. Mas agora tomam mais, porque alguns têm nove, e cada homem mantém tantas concubinas quantas a sua riqueza lhe permitir manter. Se alguma destas mulheres pecar contra o seu marido deixando qualquer outro homem vir para a sua cama, a lei permite então ao marido divorciar-se dela e tomar outra mulher; mas tem que dar-lhe uma porção da sua propriedade. Quando os homens lhes falam da Trindade eles dizem que existem três pessoas, mas não um só Deus. Porque o Corão não fala da Trindade. No entanto concedem que Deus é o Verbo, pois de outra forma seria mudo; e que também é um Espírito, senão não teria vida. Quando os homens lhes falam da Encarnação de Cristo, de como pela palavra de Deus o anjo trouxe sabedoria à Terra e se envolveu pela Virgem Maria, eles dizem que é tudo verdade e nisso acreditam, e que a Palavra de Deus tem um grande poder, e que o homem que não conhece a Palavra de Deus não conhece Deus. Também dizem que Cristo foi a Palavra de Deus; é o que diz o Corão, onde se lê que o anjo falou a Maria dizendo, “Maria, Deus vai mandar-te a Palavra da Sua boca, e o Seu nome vai chamar-se Jesus Cristo”. E também dizem que Abraão foi amigo de Deus, Moisés foi o representante de Deus, e Jesus Cristo foi a Palavra e o Espírito de Deus, e Maomé foi o verdadeiro mensageiro de Deus; e que, destes quatro, Jesus foi o mais valoroso e mais excelente. Parece portanto que os Sarracenos têm muitos artigos da nossa fé, mesmo que não sejam perfeitos; pelo que deveria ser mais fácil convertê-los para a nossa verdade – especialmente aqueles que são letrados e sabem ler as Escrituras. Porque entre eles têm os Evangelhos e os Profetas, e toda a Bíblia, escritos na língua Sarracena. Mas não compreendem a Sagrada Escritura espiritualmente, antes a seguem à letra, como fazem os Judeus; e São Paulo diz, Litera occidit, spiritus autem uiuificat, o que quer dizer ‘a palavra mata, mas o espírito dá vida’ . E assim os Sarracenos dizem que os Judeus são homens maldosos, e amaldiçoados, porque quebraram a lei que Deus lhes deu através de Moisés, e também dizem que os homens Cristãos são maus e diabólicos porque não seguem os ensinamentos dos Evangelhos, que lhes foram deixados por Jesus Cristo .
Vou agora contar-vos o que o Sultão me disse nos seus aposentos . Fez toda a gente sair, os senhores e todos os outros que lá estavam, porque queria ter uma conversa privada só entre nós os dois. Quando já todos tinham saído, perguntou-me como nos governávamos nos nossos países. E eu disse, “Meu Senhor, bastante bem – graças a Deus”. E ele respondeu e disse, “Na verdade, não. Não é assim. Porque os vossos padres não servem Deus adequadamente com vidas exemplares, tal como deveriam fazer. Porque deveriam dar aos homens menos letrados um exemplo de como viver bem, e fazem exactamente o oposto disso, dando exemplos de todo o tipo de malícia. E, como resultado, nos dias santos, quando as pessoas deveriam ir à igreja servir a Deus, vão para a taberna e passam o dia inteiro – e talvez também a noite inteira – entregues ao álcool e à gula, como bestas sem razão que não sabem parar a tempo. E depois de bêbedas todas se entregam a grandes discursos, lutando e discutindo até que alguém mata alguém. Os homens Cristãos enganam-se frequentemente uns aos outros, porque juram falsamente as mais importantes das juras. E estão, também, tão inchados de orgulho, e de glória vã, que nem sabem como vestir-se quando saem à rua – umas vezes usam roupas curtas, outras vezes longas, umas vezes largas, outras vezes justas. Todos devemos ser simples, parcos e verdadeiros, e prontos a dar caridade e esmolas, tal como Cristo, em quem dizeis que acreditais. Mas tudo se passa de outra maneira. Na realidade, os homens Cristãos são tão orgulhosos, tão invejosos, de tal forma comilões, tão devassos, e mais ainda tão cheios de desejo pelo que não é deles, que por um punhado de prata são capazes de vender as irmãs, as filhas, e até as próprias mulheres, a homens que queiram deitar-se com elas. E todos tomam a mulher do próximo e ninguém é fiel a ninguém: é assim que cruelmente quebrais e desrespeitais as regras que Jesus Cristo vos deixou. É certamente por causa da vossa maldade que perdestes estas terras que nós conquistámos e guardamos. Foi por causa da vossa vida maldosa e do vosso pecado, e não por causa da nossa superioridade física, que Deus as pôs nas nossas mãos. E sabemos bem que, quando decidis servir o vosso Deus, e servi-Lo de forma dedicada e limpa, ninguém consegue atravessar-se no vosso caminho. Também sabemos pelas nossas profecias que os Cristãos hão-de recuperar esta terra num tempo que há-de vir, quando servirdes o vosso Deus bem e devotamente. Mas enquanto viverdes, como viveis, em maldade e pecado, sabemos que nada temos a temer de vós, porque o vosso Deus não vos ajudará”. Quando ouvi o Sultão pronunciar estas palavras – e muitas outras, que não repetirei aqui – perguntei-lhe, com grande respeito, como é que tinha um conhecimento tão completo do estado da Cristandade. E então ele mandou todos os senhores e os poderosos que tinham saído dos aposentos voltarem lá para dentro. E ordenou a quatro desses senhores que falassem comigo. Estes descreveram-me todos os modos do meu país, e de outros países da Cristandade, tão completamente e com tantos detalhes como se sempre tivessem lá vivido. Estes senhores e o Sultão falavam Francês maravilhosamente bem, e eu fiquei estupefacto com isso. Finalmente, percebi que o Sultão manda os seus senhores para os nossos países e terras como mercadores, uns com ouro, outros com jóias, outros com pedras preciosas, e que estes nos espiam para conhecerem as maneiras de ser dos Cristãos e descobrirem as nossas fraquezas. Pareceu-me motivo de grande vergonha que os Sarracenos, que não têm nem uma fé correcta nem uma lei perfeita, possam desta forma criticar-nos pelos nossos falhanços, mantendo melhor a sua falsa fé do que nós mantemos a nossa em Jesus Cristo; e aqueles que devíamos com o nosso bom exemplo converter à lei de Jesus Cristo são assim afastados da fé Cristã. E não é de admirar que nos chamem pecadores e maldosos, porque isto é verdade. E eles são muito piedosos e honestos na sua fé, seguindo de perto o Corão, que Deus lhes enviou pelo seu profeta Maomé, a quem, dizem eles, o arcanjo Gabriel falava com frequência, dizendo-lhe qual era a vontade de Deus.
Deveis saber que Maomé nasceu na Arábia, e ao princípio era um homem pobre, que tratava de cavalos e camelos e viajava por vezes com eles até ao Egipto, que nessa altura era habitado por Cristãos. Nos desertos da Arábia, na estrada principal para o Egipto, havia uma capela, e aqui vivia um eremita. E Maomé foi a essa capela falar com este eremita. E quando entrou na capela, a soleira da porta, que era muito baixa, cresceu de repente e ficou tão grande como a de um palácio. Este, dizem eles, foi o primeiro milagre que ele fez, quando ainda era muito novo. Depois disso Maomé começou a ficar sábio, e rico, e um grande astrónomo. O príncipe de Khorasão fê-lo chefe e governador dessa terra; e ele governou-a sábia e graciosamente, de tal forma que, quando o príncipe morreu, ele casou com a princesa, que se chamava Khadija. Este Maomé sofria de epilepsia, e caía com frequência sob a violência dessa doença; e a senhora arrependia-se amargamente de o ter desposado. Mas ele fê-la acreditar que de cada vez que caía era porque Gabriel aparecia e falava com ele, e que ele tombava devido ao brilho estonteante do anjo. E por isso os Sarracenos dizem que o arcanjo Gabriel falava muitas vezes com ele. Este Maomé reinou na Arábia no Ano de Nosso Senhor 620; era da raça de Ismael, filho de Abraão, que ele teve de Hagar, a sua criada. E por essa razão alguns Sarracenos chamam-se Ismaelitas, alguns Hagaritas, e outros Amonitas por causa dos dois filhos de Lot, que ele teve das suas filhas. Alguns, muito apropriadamente, são chamados Sarracenos segundo a cidade de Sarras . Também deveis saber que a certa altura Maomé gostava de ouvir um eremita que vivia no deserto a uma milha do Monte Sinai, na estrada que vai da Arábia à Caldeia e à Índia – a um dia de jornada do mar, onde os mercadores de Veneza vêm muitas vezes comprar mercadorias. E Maomé ia tantas vezes escutar este eremita que os seus servos começaram a ficar irritados e impacientes com tantas viagens e tantas noitadas, pois foi-se tornando cada vez mais frequente ele fazer os seus homens ficarem acordados até ao amanhecer. Então aconteceu que uma noite Maomé estava bêbedo com vinho e caiu num sono profundo; e, enquanto ele dormia, os seus servos desembainharam-lhe a espada, e mataram o eremita com ela; depois voltaram a por a espada dentro da bainha, ainda toda suja de sangue. De manhã, quando acordou e viu o eremita morto, Maomé acusou os seus criados; mas eles responderam a uma só voz que ele mesmo matara o eremita, enquanto dormia, ainda sob o efeito da embriaguês. Primeiro Maomé não quis acreditar neles; mas, quando viu a sua própria espada toda suja de sangue, acreditou. Então amaldiçoou o vinho, e proibiu todos os homens da sua fé de o beberem; e, por isso, os Sarracenos devotos não lhe tocam. Mas têm outro tipo de bebida que é boa e deliciosa e muito fortificante, que é feita de diferentes especiarias; especialmente cálamo, de que se faz um bom açúcar. No entanto alguns Sarracenos bebem vinho em privado, mas não o fazem em público – porque se beberem vinho publicamente serão censurados por isso. Às vezes acontece os homens Cristãos tornarem-se Sarracenos, devido à pobreza, à tolice, ou à maldade; e o homem que é o mestre das suas leis, quando os recebe, diz-lhes La elles ells silla Machomet rores alla hec, o que quer dizer, ‘Não há senão um Deus, e Maomé é o seu mensageiro’.
Como vos contei alguma coisa sobre a lei dos Sarracenos, sobre as suas maneiras e costumes, dir-vos-ei agora que letras eles usam, com os seus nomes e formas:
Almoy, betach, cathi, delphoi, ephoti, fothi, garophi, hethim, iocchi, kacchi, lothyn, malach, nahalet, orthi, porizeth, qutholath, routhi, salathi, totinthus, uzazoth, yirtim, theth.
Estes são os nomes das letras, e esta é a sua semelhança:
1º ESQUEMA pg. 110
E aqui desenharei as letras de outra forma, como as vi noutros livros; e desta maneira gosto mais que da primeira:
almoy, bethath, cathi, delphoi, ephoti, fothi, garophi, hechim, hechim, iocchi, kaythi, lothim, malach, nahalot. Orthi, corizi, 3och, rutolath, routhi, salathi, thatimus, yrthom, azazoth, arotthi, 3otipin, ichet.
Estas são as letras:
2º ESQUEMA pg. 110
Têm mais quatro letras do que nós no nosso alfabeto porque a sua língua é muito diferente, falam de forma muito gutural. De qualquer forma, nós, em Inglaterra, temos mais duas letras na nossa linguagem que não existem na deles.
Sejam dadas graças a Deus.
A PEREGRINAÇÃO À TERRA SANTA
1
Sobre o caminho
de Inglaterra
para Constantinopla
Em nome de Deus Todo-Poderoso. Aquele que quer atravessar o mar para ir a Jerusalém, pode ir por muitos caminhos, tanto pelo mar como pela terra, dependendo dos países de onde vier: muitas vias chegam a um único fim. Mas não pensem que vos falarei de todas as vilas e cidades e castelos, porque senão teria que escrever uma longa história a esse respeito. Só tenciono tocar brevemente nos países grandes e nos lugares importantes que um homem tem que atravessar para seguir a estrada certa. Porque, se um homem vier das partes ocidentais do mundo como a Inglaterra, a Irlanda, Gales, a Escócia ou a Noruega, poderá, se quiser, atravessar a Alemanha e através do reino da Hungria, que faz fronteira com as terras da Polónia e a terra da Bulgária e da Silésia. E deveis saber que o Rei da Hungria é um senhor muito grande e poderoso, e possui muita terra importante. Porque possui a terra da Hungria, da Eslovénia, Cumânia, uma grande parte da Bulgária, a que também chamam a terra dos búlgaros, e uma grande parte do reino Russo, e que se estende para a terra da Livónia e até às fronteiras com a Prússia. E através da terra da Hungria os homens vão para uma cidade que se chama Soprónia, e passam pelo Castelo de Newburgo, e depois para o Rio Danúbio. Este é um grande rio que aflora na Alemanha atrás das montanhas da Lombardia, e toma para si outros quarenta rios; e corre pela Hungria e pela Grécia e pela Trácia e depois entra no mar de forma tão poderosa, e com tamanha força, que a água é doce a vinte milhas de distância dentro do mar . E depois os homens vão para Belgrado e entram na terra dos Búlgaros, a aí passa-se uma ponte de pedra sobre o Rio Maritsa. E depois os homens atravessam a terra de Petschenegs, e vêm para a Grécia para a cidade de Sofia e para a cidade de Philippopolis; depois para a cidade de Adianópolis, e depois para a cidade de Constantinopla, que já foi chamada Bizâncio, e onde geralmente se encontra o imperador da Grécia. Aqui está a melhor e mais bela igreja do mundo, Santa Sofia. E diante da igreja de Santa Sofia está uma estátua do Imperador Justiniano, bem coberto de ornamentos dourados; está esculpido sentado, coroado, em cima de um cavalo. Esta estátua costumava segurar na sua mão uma maçã redonda feita de ouro; mas já há muito tempo que ela caiu da sua mão. E aqui dizem que a queda da maçã é o um símbolo de que o Imperador perdeu grande parte do seu antigo território. Porque Justiniano costumava ser da Roménia, da Grécia, da Ásia Menor, da Síria e da terra da Judeia, onde está Jerusalém, e da terra do Egipto da Pérsia e da Arábia; mas perdeu tudo, à excepção da Grécia, e agora só tem essa terra. Há muito que os homens tentam voltar a pôr a maçã de ouro na sua mão, mas a maçã não se aguenta lá. Porque essa maçã significa o território que ele tinha em todo o mundo. Tem a outra mão levantada em direcção ao Oeste, como sinal de ameaça aos que fazem o mal. Esta estátua ergue-se sobre um pilar de mármore.
2
Sobre a Cruz
e a Coroa
de Nosso Senhor
Irei agora descrever a origem das quatro madeiras da Cruz . O poste onde Lhe prenderam a cabeça era de cipreste; e a peça que a atravessava, à qual as Suas mãos foram pregadas, era de palma; e o bloco preso à terra, no qual foi feito um encaixe, era de cedro; e a placa sobre a Sua cabeça tinha um pé e meio de comprido, na qual a sobrescrição foi escrita em Hebraico, Grego e Latim, e era de oliveira. Destas quatro espécies de madeira os Judeus fizeram a Cruz de Jesus, porque acreditavam que Ele estaria suspenso da Cruz enquanto a Cruz pudesse durar. E assim fizeram o pé de cedro;
porque o cedro não apodrece na terra ou na água. Queriam que durasse por muito tempo. E porque pensavam que o corpo de Cristo ia cheirar mal, fizeram o poste, em que o seu corpo estava pendurado, de cipreste, devido ao seu cheiro doce, para que o cheiro do Seu corpo não fosse ofensivo para os homens que passassem. E a peça atravessada, onde as Suas mãos foram pregadas, era de palma; porque no Velho Testamento foi ordenado que quando qualquer homem tivesse uma vitória sobre o seu inimigo fosse coroado com uma palma. E porque acreditavam que tinham a vitória sobre Cristo, fizeram a peça atravessada de palma. E a tabuleta com os títulos era de oliveira; porque a oliveira simboliza a paz, como a história de Noé
testemunha, quando a pomba trouxe o ramo de oliveira no seu bico, que simbolizava a paz entre Deus e os homens . E assim os Judeus acreditavam que teriam a paz quando Jesus morresse, porque diziam que Ele criava divisões entre eles.
Os homens da Grécia, e outros homens cristãos que viajam para lá do mar, dizem que a madeira da cruz a que chamamos cipreste era da Árvore de que Adão comeu a maçã, e que isto encontram escrito. E também dizem que a sua Escritura diz que Adão ficou doente e disse ao seu filho Seth que devia ir ao Paraíso e pedir ao anjo que guarda o Paraíso que lhe mandasse algum óleo da Árvore da Misericórdia para esfregar os seus membros, para que pudesse curar-se. E Seth foi ao Paraíso mas o anjo que o guarda não o deixou entrar, e antes lhe disse que não poderia levar nenhum óleo de misericórdia. Mas tomou quatro sementes da mesma árvore de que o seu pai tinha comido a maçã e disse-lhe que, assim que Adão morresse, devia pô-las debaixo da sua língua e enterrá-lo assim, e dessas quatro sementes cresceriam árvores com frutos que haviam de salvar Adão. E, quando Seth voltou a casa outra vez, encontrou o pai quase morto; e fez o que o Anjo lhe dissera para fazer com as sementes, das quais nasceu uma cruz que deu o excelente fruto Jesus Cristo, pelo qual Adão e todos os seus descendentes foram salvos e libertados da morte sem fim, a menos que ocorresse por sua própria culpa. Esta Cruz Sagrada tinham os Judeu escondida debaixo da Rocha do Monte Calvário, e aí ficou durante mais de duzentos anos até ser descoberta por Santa Helena, mãe do Imperador Constantino de Roma . E era a filha de Coel, rei da Inglaterra, que na altura se chamava Reino Unido. E o Rei de Roma, quando estava nesse país, ficou tão maravilhado com a sua beleza que a levou como nubente e a casou com Constantino.
E deveis saber que a Cruz de Nosso Senhor media oito cúbitos de comprimento, e essa prancha tinha três cúbitos e meio de largura. E a Coroa de Espinhos com que Nosso Senhor foi coroado, e um dos pregos, e a ponta da lança, estão em França na Capela Real. E a Coroa está dentro de em frasco de cristal, feito de forma muito bela e rica. Um rei de França comprou uma vez estas peças aos Genoveses, a quem o Imperador as tinha apresentado por uma grande soma em ouro. E embora os homens digam que esta Coroa é a Coroa de Espinhos, deveis compreender que é feita de algas do mar , que são muito brancas e quebradiças e tão pontiagudas como os espinhos. Porque eu vi muitas vezes tanto a que está em Paris como a que está em Constantinopla; porque eram as duas partes de uma mesma peça, feita dos sargaços do mar, mas foram divididas em duas partes, das quais uma está em Paris e outra e Constantinopla . E tenho um espinho dela, que parece um pilriteiro, e que me foi dado em sinal de grande amizade. Porque muitos deles se quebraram e caíram no fundo do frasco em que está a Coroa, porque se quebram quando os homens perturbam o frasco para mostrar a Coroa aos grandes Senhores e aos peregrinos que por lá passam.
E deveis saber que Nosso Senhor, na noite em que foi capturado, foi levado para um jardim, e aí foi intensamente interrogado; e aí os Judeus O ridicularizaram e puseram uma Coroa na Sua cabeça e empurraram-na para baixo com tanta força que o sangue correu por muitas partes da Sua testa, do Seu pescoço e dos Seus ombros. E essa coroa era feita de ramos de pilriteiro, e por isso o pilriteiro tem muitas virtudes. Porque quem carregue consigo um ramo dele, nenhum raio nem nenhuma forma de tempestade pode atingi-lo; e nenhum espírito maligno pode entrar em sua casa nem em qualquer outro sítio onde o ramo esteja. E nesse mesmo jardim São Pedro renegou Nosso Senhor três vezes. Depois Nosso Senhor foi levado perante o Bispo e os Homens da Velha Lei noutro jardim, o da Anaás, e aí também foi interrogado e ridicularizado e coroado depois com um espinho que se chama uva-espim, que crescia naquele jardim. E este também tem muitas virtudes. E depois ainda foi levado para o jardim de Caifás; e aí foi coroado com urze branca. E depois foi levado para os aposentos de Pilatos; e aí também foi acusado e coroado. Porque os Judeus O sentaram numa cadeira e O cobriram com um manto; e fizeram-Lhe uma Coroa com sargaços do mar, ajoelharam-se perante Ele e coroaram-No e disseram, Aue Rex Judeorum, o que quer dizer, ‘Salve, Rei dos Judeus’. E esta Coroa, da qual uma metade está em Paris e a outra em Constantinopla, tinha Cristo na Cabeça quando foi crucificado. E devem portanto os homens honrá-la, e venerá-la mais que qualquer outra. O tronco da lança com que Cristo foi perfurado tem o Imperador da Alemanha ; mas a sua ponta está em Paris. O Imperador de Constantinopla diz que tem a ponta da lança; e essa ponta de lança vi eu muitas vezes, mas é maior do que a que está em Paris .
3
Sobre a cidade de Constantinopla,
E quanto à fé dos Gregos.
Deveis saber que, embora os Gregos sejam Cristãos, no entanto variam da nossa fé. Porque dizem que o Espírito Santo não procede do Filho, mas apenas do Pai, e não estão em obediência à Igreja de Roma, nem ao Papa. E dizem que para lá do Mar Grego o seu Patriarca tem muito mais poder do que o que o nosso Papa tem deste lado. E por isso o Papa João XXII mandou-lhes cartas mostrando-lhes que a fé cristã deve ser unificada, e que todos os homens cristãos têm de obedecer a um Papa, que é o Vigário de Cristo na Terra e a quem Deus deu plenos poderes para atar e desatar; e por isso devem obedecer-lhe. E eles responderam:
“Acreditamos que o teu poder é grande sobre os teus súbditos; não podemos suportar o teu grande orgulho; não estamos dispostos a abonar a tua grande avareza. Que Deus esteja contigo, porque Deus está connosco. Adeus.”
Dizem que não há Purgatório, e que as almas não terão nem alegria nem dor antes do Dia do Juízo. Também dizem que a fornicação não é um pecado mortal, mas um pecado natural. Os seus padres também se casam. E dizem que a usura não é um pecado mortal. E não jejuam aos Sábados em nenhuma altura do ano, a menos que seja Natal ou Véspera da Páscoa. Não deixam nenhum homem que venha deste lado do Mar Grego celebrar nos seus altares; e, se por acaso isto acontece, lavam o altar imediatamente com Água Benta. Além disso, dizem que Nosso Senhor nunca comeu comida material, pretendo apenas que o fazia, para mostrar sinais de natureza humana. Dizem que cometemos um pecado mortal quando fazemos a barba, porque a barba é um sinal de masculinidade e um dom de Deus. E aqueles que fazem a barba fazem-no apenas para parecerem melhores ao mundo ou para agradarem às suas mulheres. E dizem que cometemos pecados mortais comendo animais cuja carne foi proibida pela Velha Lei, como porcos, lebres e outras bestas que não ruminam. E amaldiçoam todos aqueles que não comem carne ao Sábado. Também o Imperador de Constantinopla designa os patriarcas, os arcebispos e os bispos, e distribui todas as dignidades da Santa Igreja naquele país.
Em Constantinopla jaz também Santa Ana, a mãe de Nossa Senhora, que Santa Helena trouxe de Jerusalém. E aqui jaz também o corpo de João Crisóstomo, que foi o bispo de Constantinopla. E ali jaz São Lucas, o Evangelista; pois os seus ossos foram trazidos de Betânia, onde estava enterrado. E aqui se encontram várias outras relíquias. E há uns vasos de pedra, como mármore, a que os homens chamam ‘ydrious’, que pingam água continuamente e se enchem todos os anos . Constantinopla é uma muito bela e boa cidade, e bem murada; tem três linhas de defesa . Há um braço de mar a que os homens chamam Hellesponte; e alguns chamam-lhe a Boca de Constantinopla, e outros o Braço de São Jorge. E esta água rodeia e protege duas partes da cidade. E mais para cima em direcção ao mar, ao longo da mesma extensão de água, costumava erguer-se a cidade de Tróia; mas esta cidade foi destruída pelos Gregos.
Em torno da Grécia há muitas ilhas: o que é como dizer Carki, Thera, Delos, Lesbos, Paros, Naxos, Melos, Scarpanto, Lemnos. E nesta região fica o monte Atos, que fura as montanhas. Há também muitos outros diferentes países e nações que falam línguas diferentes e obedecem e prestam tributo ao Imperador –– Turcople, Petschenegs, Cumania, Trácia, Macedónia, de que Alexandre foi Rei, e muitas outras. É preciso atravessar o lugar onde existia uma cidade formosa chamada Adalia. E todo esse país se perdeu por causa da loucura de um jovem. Porque existia uma bonita donzela que ele muito amava, mas ela morreu subitamente
e foi enterrada num túmulo de mármore; e por causa do grande amor que tinha por ela ele uma noite foi ao seu túmulo e abriu-o e entrou lá dentro e deitou-se com ela e assim passou a noite e depois seguiu ao seu caminho. Ao fim de nove meses uma voz veio ter com ele e disse-lhe: Vai ao túmulo da mulher e abre-o, e vê o
que fizeste nascer nela. E se não fores terás grandes males e sofrimentos. E ele foi e abriu o túmulo e de lá saiu uma enorme cabeça, horrível de se olhar, que voou a toda a volta da cidade; e assim a cidade afundou-se, e todas as províncias que estavam à volta; e ainda hoje há lá muitas passagens perigosas.
Nesta região nasceu Aristóteles, numa cidade chamada Stagira, a pouca distância da Trácia. Em Stagira jaz Aristóteles, e há um altar sobre o seu túmulo. E aqui os homens fazem uma festa solene todos os anos, como se ele fosse um santo. E sobre o seu altar estabelecem o Grande Conselho e a Assembleia, e acreditam que através da inspiração de Deus e da dele conseguirão ter melhor conselho. Logo a seguir ao túmulo de Aristóteles fica a Fossa de Mynon, que é muito admirada pelos homens. Do túmulo corre um rio pequeno, chamado Abellin, e ao pé dele fica a Fossa de Mynon, toda redonda, com mais ou menos cem cúbitos de largura; e está cheia de gravilha. E não importa o que se tirar de lá durante um dia, na manhã seguinte está tão cheia como sempre esteve, e é uma grande maravilha. E há sempre um grande vento nesse fosso que levanta toda a gravilha e a faz girar em volta das paredes . E se algum metal for lá posto dentro, imediatamente se transforma em vidro. Esta gravilha é brilhante, e os homens fazem vidro muito bom e claro com ela. E alguns dizem que é um afluente do Mar de Gravilha . A gente vem de países distantes por mar com barcos ou por terra com carros para vir buscar alguma dessa gravilha.
Neste país há montanhas muito grandes junto da fronteira da Macedónia. E entre elas há uma que se chama Olimpo, que separa a Macedónia da Trácia; e é mais alta que as nuvens. Há também uma outra montanha a que os homens chamam Atos; e é tão alta que a sua sombra se estende até Lemnos, que está à distância de cerca de setenta e oito milhas. No alto destas montanhas o ar é tão limpo e tão puro que não se sente lá qualquer vento; e por isso nenhum animal ou pássaro pode lá viver, tão seco é o ar. E os homens dizem nesses países que uma vez homens sábios subiram aos cumes e levavam uma esponja contra o nariz molhada em água para segurar o ar, pois assim o ar era seco. E também no alto desses cumes escreveram letras na poeira com os seus dedos, e ao fim de um ano voltaram a ir lá acima e viram que as letras estavam tal como
as haviam escrito um ano antes, tão frescas como estavam no primeiro dia, sem qualquer defeito. E por isso parece-nos certamente que essas montanhas passam através das nuvens até ao ar puro .
Nessa cidade de Constantinopla está o palácio do Imperador, muito belo e bem construído; e ao seu lado está um lugar magnífico preparado para os torneios. Há terraços construídos a toda a sua volta, e degraus, e os homens podem sentar-se neles, um por cima do outro, para verem o torneio, de forma a que ninguém atrapalhe ninguém nem lhe tape a vista. E debaixo dos terraços há estábulos, com belas abóbadas, para os cavalos do Imperador; e todos os pilares são de mármore. E na igreja de Santa Sofia uma vez um imperador queria colocar os restos do corpo do seu pai, quando ele morreu; e escavaram o túmulo, e encontraram um corpo na terra, e sobre o corpo estava um grande placa de ouro, e nela estava escrita em Hebreu, em Grego e em Latim, Lhesus Christus nascetur de uirgine Maria; et ego credo in eum, o que quer dizer, ‘Jesus Cristo nascerá da Virgem Maria, e eu acredito Nele’. E a data de quando isto foi escrito e enterrado naquele túmulo era de dois mil anos antes da Encarnação de Cristo. E essa placa continua no tesouro da igreja; e os homens dizem que o corpo era o corpo de Hermogenes, o homem sábio.
Em Constantinopla estão a esponja e a cana com que os Judeus deram a Nosso Senhor de beber quando Ele estava pregado na Cruz. Alguns homens acreditam que metade da Cruz de Cristo está em Chipre, numa abadia de monges que é chamada a Colina da Santa Cruz; mas isto não é verdade. Porque essa cruz que está em Chipre é a cruz em que Dismas o bom ladrão foi pendurado. Mas nem todos os
homens sabem isso, e isto está mal feito. Porque para poderem receber ofertas dizem que é a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Se desejais saber qualquer coisa sobre o ABCD da Grécia e que géneros de letras usam, aqui podeis vê-las, e os seus nomes também :
ESQUEMA pg. 52
4
Sobre São João Evangelista;
e sobre a filha de Hipócrates,
transformada na forma de um dragão
E embora estas coisas não se prendam com ensinar-vos o caminho para a Terra Santa, no entanto tocam aquilo que eu prometi mostrar-vos, ou seja os costumes, as maneiras, e as diversidades dos países. E como a terra da Grécia é o país mais próximo que varia e é discordante na fé, falei em tudo isso em consequência, para que possais conhecer as diferenças entre a nossa crença e a deles. Porque muitos homens desejam ouvir falar das coisas que não lhes são familiares e tomam prazer nisso.
Agora regresso ao ensinamento do caminho de Constantinopla para a Terra Santa. Aquele que for através da Turquia vai para a cidade que se chama Niceia e assim através do Portão de Ciboto e a montanha de Ciboto, que é muito alta; fica a uma légua e meia da cidade de Niceia. Quem passar de Constantinopla para a Terra Santa por mar irá pelo Braço de São Jorge, e depois, navegando o Mar Grego, ao largo de um lugar onde jaz São Nicolau, e de muitos outros lugares. E primeiro os homens chegam a uma ilha chamada Chios. E nessa ilha cresce almécega, em árvores pequenas, e escorre delas como que a resina das amoreiras ou das cerejeiras.
Depois os homens passam para a ilha de Patmos, onde São João Evangelista escreveu o Apocalipse. E deveis saber que quando Nosso Senhor morreu São João tinha trinta e dois anos de idade, e depois da Paixão de Cristo viveu mais sessenta e dois anos. De Patmos os homens passam para Efeso, uma bela cidade, junto ao mar. E aqui São João morreu, e foi enterrado num túmulo atrás do altar. E é uma excelente igreja; porque os homens Cristãos costumavam possuir a cidade. Mas agora está ocupada pelos Turcos, tal como toda a Ásia Menor; e por isso a Ásia Menor é chamada Turquia. No túmulo de São João muitos não encontram nada a não ser maná, porque alguns homens dizem que o seu corpo foi transladado para o Paraíso. E deveis compreender que São João mandou fazer o seu túmulo enquanto estava vivo e ali se deitou ainda vivo; e por isso alguns dizem que ele nunca morreu, e apenas repousa até ao Dia do Juízo. E realmente esta é uma grande maravilha, porque os homens podem muitas vezes ver a terra do túmulo agitar-se e abanar, como se por baixo estivesse uma coisa viva.
A partir de Efeso os homens passam por muitas ilhas no mar até à cidade de Patera, onde São Nicolau nasceu, e depois para a cidade de Mira, onde foi escolhido para ser Bispo. Aqui cresce uma vinha muito forte, chamada a vinha de Mira. Daqui os homens passam para a ilha de Creta, que o Imperador ofereceu uma vez aos Genoveses. E daqui os homens fazem o seu caminho pela ilha de Cos, e pela ilha de Lango, ilhas essas das quais Hipócrates foi o senhor.
E alguns dizem que na ilha de Lango está a filha de Hipócrates, na forma de um dragão , que tem cem pés de comprido –– tal como os homens dizem, porque eu próprio não o vi. Foi transformada de jovem formosa em dragão por causa de uma deusa que se chama Diana. E diz-se que vai ficar assim até que venha um cavaleiro de Rodes que seja suficientemente corajoso para se atrever a ir até ela e beijá-la na boca . Nessa altura ela voltará à sua forma verdadeira e será uma mulher, mas só viverá pouco tempo depois disso.
Desta ilha os homens passam para a ilha de Rodes, que os Hospitalários conquistaram e governam. Ganharam esta ilha ao Imperador de Constantinopla. Já foi chamada Colos e ainda é assim que os Turcos lhe chamam. E São Paulo escreveu ao povo dessa ilha na Epístola aos Colossianos .
5
Sobre coisas diferentes em Chipre;
Sobre a estrada de Chipre para Jerusalém;
E sobre a maravilha de uma vala cheia de areia
Da ilha de Rodes os homens passam ao largo para a ilha de Chipre, onde há muitas vinhas, das quais se faz um vinho forte e muito nobre; no primeiro ano é vermelho, e depois de um ano torna-se branco, e, quanto mais velho fica, mais branco se torna, e mais claro e forte, e melhor é o seu bouquet. No caminho para Chipre os homens passam por um lugar que se chama o Golfo de Catali, que era dantes uma grande e belo país, onde ficava uma grande cidade.
De Rodes a Chipre são cerca de quinhentas milhas; mas os homens podem viajar para Chipre e não parar em Rodes. Chipre é uma bela ilha, e bastante grande; há várias cidades boas, mas principalmente quatro. Há também três bispos e um arcebispo. O Arcebispado está em Nicósia. A cidade principal de Chipre está em Famagusta; e aqui fica o melhor porto do mundo. Cristãos e gentios e homens de todas as nações aportam aqui. E em Chipre há outro porto na cidade de Limassol. Em Chipre também há a Montanha da Santa Cruz, onde há uma abadia de monges, e aí está a cruz do bom ladrão Dismas, como disse antes. E alguns acreditam que metade da cruz de Nosso Senhor está lá, mas isso não é verdade. Em Chipre jaz Santa Genoveva, pela qual os homens deste país celebram um grande e solene festival. E no castelo de Amours jaz o corpo de Santo Hilário, que está guardado com grandes honras. Em Chipre os homens caçam com papiões que são como leopardos; e apanham muito bem as bestas selvagens –– melhor e mais rapidamente que os mastins. E são de certa forma maiores que os leões. Em Chipre dita o costume que todos os homens, senhores e outros, comam a sua comida no chão. Porque fazem covas na sala, à altura dos joelhos, e têm-nas bem pavimentadas; e quando querem comer, vão para essas covas e sentam-se. E isto é para estarem mais frescos, porque essa terra é mais quente do que a nossa. Nas grandes festas, e para os estrangeiros que lá vão, instalam mesas e bancos como os homens fazem no nosso país; mas preferem sentar-se na terra.
Em Chipre há um lago a meia milha do mar, cuja água em certas alturas se congela em sal muito bom; e por isso os barcos que vêm de Jerusalém vão até lá para se abastecerem de sal.
De Chipre os homens vão por mar e por terra para Jerusalém, e num dia e uma noite aquele que tiver um bom vento pode chegar ao porto de Tiro, que agora se chama Sûr; e este é o porto de entrada na Síria. Havia aqui dantes uma bela cidade de homens Cristãos, mas os Sarracenos destruíram grande parte dela. E guardam o porto com muita força por causa do medo que têm dos homens Cristãos. Os homens poderiam passar directamente para esse porto sem acostarem a Chipre, mas vão a Chipre com grande alegria para se refrescarem nessa terra, e também carregam os navios com sal, como vos disse antes –– e para comprarem outras coisas de que necessitam para as suas vitualhas. Na orla da costa de Tiro, de vez em quando, encontram-se muitos rubis. E há também o poço do qual o Livro Sagrado diz isto: Fons ortorum, puteus aquarum uiuencium . Nesta cidade de Tiro a mulher Samaritana disse estas palavras a Nosso Senhor: Beatus uenter qui te portauit et ubera que suxisti, o que é como dizer, ‘Benditos sejam o ventre que Te criou e as mamas em que Tu mamaste’ . E aqui Nosso Senhor perdoou os seus pecados à mulher de Canaan. Diante da cidade de Tiro estava dantes a pedra em que Nosso Senhor se sentava e pregava; e nessa pedra foi fundada a igreja do Santo Salvador.
E a oito milhas de Tiro junto à costa fica a cidade de Sûrafend, virada para Leste. O profeta Elias costumava deambular por aqui, e foi aqui que Jesus Nosso Senhor ressuscitou dos mortos o filho da viúva. E cinco milhas mais à frente fica a cidade de Sidon, e desta cidade Dido, que foi a mulher de Eneias depois da destruição de Troia, era rainha. E Dido fundou Cartago em África, que agora se chama Dydoncato. Na cidade de Tiro governou Agenor, o pai de Dido. E a dezoito milhas de Sidon fica a cidade de Beirute. E a três dias de jornada de Beirute fica a cidade de Saidenaya. E a cinco milhas dali fica a cidade de Damasco.
Quem queira viajar mais adiante por mar e chegar perto de Jerusalém irá de Chipre até Jaffa porque esse é o porto mais próximo de Jerusalém. Aqui fica a cidade de Joppa, mas chamam-lhe Jaffa segundo o nome de um dos filhos de Noé, que era Japheth, e que foi o seu fundador. E alguns homens dizem que é a cidade mais antiga do mundo, porque foi fundada antes do Dilúvio de Noé. E aqui encontram-se os ossos de um gigante chamado Andromeda , e uma das suas costelas tem cinco pés de comprido. Quem chega ao primeiro porto, Tiro (de que já falei), pode se quiser ir por terra para Jerusalém. Irá para a cidade de Acre, a que às vezes chamam Ptolemais, a um dia de jornada de Tiro. E esta já foi uma cidade de homens Cristãos, mas está quase toda destruída. E por mar, de Veneza ao Acre, são duas mil e quatro milhas da Lombardia; e da Calábria ou da Sicília para o Acre são mil e trezentas milhas. E a ilha de Creta fica directamente no caminho. Junto à cidade de Acre, a seis oitavos de milha na direcção do mar, à direita para o Sul fica o Monte Carmelo, onde viveu o profeta Elias. E aqui foi fundada a ordem dos monges Carmelitas. Esta montanha não é muito grande nem muito alta. No sopé da montanha havia dantes uma boa cidade de homens Cristãos, e chamava-se Haifa, porque foi fundada por Caiafás; mas agora está deserta. À esquerda da montanha fica uma cidade chamada Seffûrich que foi construída noutra montanha. Foi aqui que nasceram São Tiago e São João: e no local do seu nascimento ergue-se uma bela igreja. Do Acre até uma montanha a que os homens chamam a Escada de Tiro são cem oitavos de milha.
E junto ao Acre corre um rio pequeno, chamado o Abellin, e aí perto fica a Fossa de Mynon, completamente redonda, com cerca de cem cúbitos de largura; e está cheia de gravilha, conforme já disse.
Do Acre fazem-se três dias de jornada até à cidade de Philistia, que agora se chama Gaza, e é uma cidade muito bela, cheia de riqueza e de povo. Foi desta cidade para uma colina fora dela que Sansão o Forte carregou os portões, que eram feitos de bronze. E nessa cidade matou ele o Rei no seu Palácio, e mais trezentas outras pessoas, e ele com elas. Porque o tinham capturado e o tinham cegado, e cortado o cabelo, e posto na prisão. E nos seus festivais trouxeram-no diante deles e fizeram-no dançar para eles e diverti-los. E então, num grande dia do festival, quando estava cansado de dançar diante deles, pediu ao homem que os conduzia que o levasse ao pilar que sustentava todo o edifício; e agarrou no pilar com o braço e abanou todo o edifício sobre eles, e portanto matou-se e matou todos os que estavam dentro dele, tal como é dito na Bíblia, em Juízes xvi. Desta cidade os homens podem ir até à cidade de Caesarea e assim ao Castelo dos Peregrinos, e daí para Jaffa, e assim para Jerusalém.
Aquele que quer antes de mais nada ir para Babilónia, onde se encontra o Sultão, para obter licenças e viajar com mais segurança por estes países, e para ir ao Monte Sinai antes de ir a Jerusalém, irá de Gaza até ao Castelo de Darum. E daqui um homem passa para a Síria e entra no deserto, onde a estrada é muito arenosa. A jornada pelo deserto demora oito dias. No entanto os homens podem encontrar todas as provisões de que precisam ao longo do caminho. Esta zona selvagem chama-se Et-Tih. E quando um homem sai deste deserto entra no Egipto, que também se chama Canopak; e noutra língua chama-se Merfyne. E a primeira cidade boa que os homens encontram chama-se Belbays, e fica na fronteira com o reino de Aleppo. E dali os homens vão para Babilónia e para a cidade do Cairo.
No lado Sul da Etiópia, e também no Norte, há grandes desertos que se estendem até às lonjuras da Síria. E portanto o Egipto é forte em todos os lados. A terra do Egipto, em comprimento, é de quinze dias de jornada, mas de espessura é apenas três, se não contarmos os desertos. Entre o Egipto e a terra a que se chama Núbia são doze dias de jornada através dos desertos. Os homens que vivem nesse país são chamados os Núbios e são Cristãos. Mas são pretos de cor, e isso eles consideram uma grande beleza, e quanto mais pretos são mais belos parecem aos olhos dos outros. E dizem que se tivessem que pintar um anjo e um demónio, pintariam o anjo preto e o demónio branco. E se não parecerem suficientemente pretos quando nascem, usam certas medicinas para os tornarem mais escuros. Este país é maravilhosamente quente, o que faz os seus habitantes muito pretos.
Há cinco distritos no Egipto. Um chama-se Saîd, o outro Damanhûr, o terceiro Rosetta (é uma ilha no rio Nilo), o quarto Alexandria e o quinto Damietta. A cidade de Damietta já foi muito forte; mas foi tomada duas vezes por homens Cristãos, e depois disso os Sarracenos destruiram-lhe as muralhas, e as de todos os castelos do distrito. E construíram uma cidade nova e chamaram-lhe Nova Damietta. Nesta cidade de Damietta fica um dos portos do Egipto, e o outro está em Alexandria, que é uma cidade forte e bem murada. Mas não têm qualquer água, à excepção da que vem em condutas do rio Nilo. E portanto, se algum homem cortasse a água dessas condutas, os habitantes não conseguiriam resistir muito tempo. No Egipto há poucos castelos, porque o país é suficientemente forte só por si.
Houve uma vez, há muito tempo, em que um santo eremita, que vivia num desses desertos do Egipto, se encontrou com uma besta monstruosamente deformada: pois que tinha a forma de um homem do umbigo para cima, e para baixo tinha a forma de uma cabra, com dois cornos que se erguiam no alto da sua cabeça. O eremita perguntou-lhe, em nome de Deus, o que era ele; e a besta respondeu: “sou uma criatura mortal, pois Deus me fez, e neste deserto vivo, e o percorro procurando subsistência. Por isso reza tu, eremita, reza a Deus por mim, para que Aquele que veio do Céu à Terra para a salvação da alma dos homens, e que nasceu de uma virgem, e que sofreu uma amarga Paixão, pela qual todos vivemos, e nos movemos, e temos a nossa alma, possa Ele ter piedade de mim”. A cabeça dessa besta, com os cornos, continua guardada em Alexandria como uma coisa maravilhosa.
No Egipto também existe uma cidade a que chamam Heliopolis – o que quer dizer “a cidade do sol”. Nesta cidade há um templo redondo como o Templo de Jerusalém. O padre desse templo tem um livro onde está escrita a data de nascimento de um pássaro a que chamam a Fénix; e só existe uma no mundo. E este pássaro vive quinhentos anos, e no fim do quinhentésimo ano vem até ao templo e faz-se arder nas chamas do altar até dele não restarem mais do que cinzas no altar. E o padre do templo, que conhece o dia da vinda do pássaro a partir do seu livro, prepara o altar e cobre-o de várias especiarias, de enxofre virgem e de raminhos de azevinho, e de outras coisas que ardem depressa. E depois o pássaro chega e inflama-se no altar, e agita as suas asas até todas as coisas mencionadas estarem inflamadas; e só então se deixa arder até ficar reduzido a cinzas. Na manhã seguinte os homens encontram as cinzas como se fossem um verme; no segundo dia esse verme transformou-se num pássaro já completamente formado; e no terceiro dia esse pássaro voa do templo para o lugar onde vive normalmente. E por isso nunca há mais do que um. Este mesmo pássaro é um símbolo de Nosso Senhor Jesus Cristo, uma vez que também só há um só Deus, que ressuscitou ao terceiro dia da morte para a vida. Este pássaro é muitas vezes visto flutuando nas alturas, quando o tempo está sereno e claro; e os homens dizem que, quando vêem o pássaro a subir no ar, sabem que a seguir terão anos bons e felizes, porque este é o pássaro do Céu. Este pássaro não tem o corpo maior do que o de uma águia; tem na sua cabeça uma crista como a do pavão, mas muito maior que a do pavão, O seu pescoço é amarelo, as suas costas azul indigo; as suas asas são vermelhas e a sua cauda tem várias barras de verde e amarelo e vermelho. E na luz do sol parece maravilhosamente belo, pois estas são as cores que brilham com mais beleza.
No Egipto há lugares em que a terra dá fruto oito vezes por ano. E aqui encontram-se no chão as mais belas esmeraldas de que há memória; e esta é a razão porque são aqui tão baratas, ao contrário de todos os outros lugares. E deveis também saber que, se acontecer chover no Verão, toda a terra do Egipto fica cheia de ratos. Na cidade do Cairo homens e mulheres que nasceram noutros países são frequentemente trazidos ao mercado e vendidos, tal como os homens vendem bestas nos outros países. Existe também, na cidade do Cairo, um edifício público cheio de buracos – de certa forma, à maneira dos ninhos de galinha; e as mulheres deste país trazem para aqui ovos de galinha, de pato, de ganso, e põem-nos nos ninhos. E algumas pessoas têm como emprego tomar conta desse edifício e cobrem os ovos com estrume de cavalo ainda quente. E através do calor do estrume de cavalo nascem pintos dos ovos sem terem sido chocados pela galinha nem por nenhum outro pássaro. E ao fim de três ou quatro semanas as mulheres que trouxeram os ovos voltam e levam consigo os pintos e criam-nos de acordo com os costumes do país. E desta forma todo o país está abastecido com este tipo de pássaros. E fazem isto tanto no Verão como no Inverno .
Neste país vende-se um certo tipo de maçãs muito longas , a que os homens chamam as maçãs do Paraíso.
6
Dos vários nomes dos Sultões;
Das suas terras;
E sobre a Torre de Babilónia
No Cairo, ou Babilónia , fica uma bela igreja de Nossa Senhora; Ela parou aqui durante oito dias quando fugiu da terra da Judeia com medo do Rei Herodes. E aí jaz o corpo da virgem sagrada Santa Bárbara, e José esteve aqui quando os seus irmãos o venderam ao Egipto. E foi aqui também que o Rei Nabucodonosor mandou queimar as Três Crianças na fogueira, porque mantiveram a Verdadeira Fé. E estas crianças eram Anay, Azary e Mysael, como diz o salmo Benedicte. Mas Nabucodonosor chamou-lhes outros nomes, que foram Sydrak, Mysak e Abdenago ; o que é o mesmo que dizer Bom Glorioso, Bom Vitorioso e Bom Sobre Todos os Reinos; e isso foi por causa do milagre a que ele assistiu, quando viu o Filho de Deus caminhar com as crianças para cima e para baixo no fogo. Na Babilónia fica geralmente a residência do Sultão, num belo, grande castelo, construído no alto de um rochedo. Nesse castelo há sempre mais de oito mil homens, para o guardarem e servirem o Sultão, e o Sultão mantém todas as suas necessidades. Devo dizer que conheço a organização deste país muito bem, porque vivi por muito tempo com o Sultão e alistei-me como soldado com ele durante a guerra contra os Beduínos. E ele queria arranjar para mim um grande casamento com a filha de um príncipe, e dar-me muitas nobrezas se eu abandonasse a minha fé, mas isso eu não quis.
E deveis compreender que o Sultão é senhor de cinco reinos, que ganhou por conquista e de que se apropriou. E esses reinos são estes: o Egipto, e o reino de Jerusalém, de que já foram reis David e Salomão; a Síria, que tinha a capital na cidade de Damasco; o reino de Allepo e a terra de Hamasth; e o reino da Arábia, de que foi rei um dos Três Reis Magos que trouxe oferendas ao Menino Jesus na Manjedoura quando ele nasceu. O Sultão governa muitas outras terras. E é chamado o Califa, que é um nome de dignidade e honra, e é equivalente ao Rei; porque o Sultão é uma grande autoridade entre eles como o Rei é entre nós no nosso país. E deveis saber que existiam outrora cinco Sultões, de acordo com o número de cinco reinos que pertencem ao Sultão actual. Mas agora só existe um Sultão, que se chama o Sultão de Babilónia.
O primeiro Sultão do Egipto chamava-se Sheerkooh, e era o pai de Saladino; que foi Saladino segundo Sheerkooh, na altura em que Ricardo Coração de Leão estava nestas partes com o seu exército de homens Cristãos. Depois de Saladino reinou o seu filho al-Afdal, e depois dele reinou o seu sobrinho. Quando ele morreu, o povo do Egipto considerou-se oprimido e escravizado, e viram que eram fortes devido aos seus números; e foram e escolheram um deles para ser Sultão; e chamou-se as-Salih Ayub. E nesta altura Luís o Rei da França foi para a Terra Santa e lutou com o Sultão, onde o Rei foi capturado e posto na prisão. O mesmo Sultão foi depois assassinado pelos seus servos e outro foi escolhido para o seu lugar, que se chamava Turanshah. E ele pediu um resgate pelo Rei Luís e libertou-o da prisão. Depois, um dos membros do povo, chamado Cothas, assassinou Turanshah, e foi feito Sultão no seu lugar; e fez que lhe chamassem ad-Din Aibek. Pouco depois, outro membro do povo, Benochdaer de seu nome, assassinou-o e reinou em seu nome, e recebeu o nome de Baibars. Nesse tempo o bom Rei Eduardo foi para a Síria e fez muitos estragos entre os Sarracenos. O mesmo Sultão foi envenenado em Damasco e morreu lá. E depois dele o seu filho mais velho deveria ter reinado como o próximo herdeiro; e fez que lhe chamassem Baraqa. Mas em breve outro popular chamado Qalawun veio com um grande grupo e expulsou Baraqa do país, e fez-se a si próprio Sultão. Tomou a cidade de Tripoli e matou aí muitos homens Cristãos no ano de Nosso Senhor de 1279. Depois, Qalawun foi envenenado por um qualquer outro que também queria ser Sultão; e também esse foi assassinado pouco depois. E então o filho de Qalawun foi escolhido para Sultão , e chamaram-lhe al-Ashraf Khalil. Tomou a cidade do Acre e expulsou de lá os Cristãos. Depois morreu de veneno e o seu irmão tomou o seu lugar e foi chamado an-Nasir. Pouco depois um homem chamado Guytoga tomou o lugar deste Sultão e aprisionou-o no Castelo de Monte Real e reinou ele como Sultão e chamou-se al-Adil. Como era estrangeiro – o que quer dizer, um Tártaro – foi expulso daquela terra; e outro chamado Bathyn foi feito Sultão e chamado an-Din. E um dia, quando estava a jogar xadrez, com a espada deitada no chão ao seu lado, começou a discutir com o seu adversário, que agarrou na espada e o matou. E depois houve uma grande discórdia entre eles sobre quem deveria ser o próximo Sultão. Por fim todos concordaram que an-Nasir, já mencionado, que al-Adil tinha aprisionado no castelo de Monte Real, devia ser o seu Sultão. Esse mesmo an-Nasir reinou durante muito tempo e governou com grande sabedoria, de tal forma que após a sua morte o seu filho mais velho foi nomeado Sultão e foi chamado al-Mansur. O seu irmão fê-lo assassinar secretamente e reinou no seu lugar, e fez-se chamar al-Ashraf. E era ele o Sultão quando eu deixei aquela terra.
O Sultão pode despachar do Egipto mais de vinte mil homens de armas; e do reino da Síria e da Turquia, e dos outros reinos que estão sob as suas ordens, pode juntar mais de cinquenta mil. E todos recebem do Sultão os seus salários e tudo aquilo de que precisam; o que quer dizer que cada homem recebe por ano seis florins; mas cada homem mantém três cavalos e um camelo. E entre eles são designadas, em cada cidade ou vila, certas pessoas a que chamam emires, e cada emir deve ter ao seu comando quinhentos ou seiscentos homens de armas e alguns comandam ainda mais. E cada emir deve receber para si próprio tanto quanto todos os que estão abaixo dele recebem juntos. E portanto, quando o Sultão quer fazer avançar qualquer homem bom que tenha consigo, torna-o emir. E se alguma escassez ocorre no país, os cavaleiros e soldados mais pobres têm que vender o seu equipamento por causa da pobreza.
O Sultão tem três mulheres, uma das quais deve ser Cristã e as outras duas Sarracenas. E uma dessas mulheres deve viver em Jerusalém, outra em Damasco, e a outra em Ascalon. E quando lhe dá prazer vai visitá-las, e outras vezes trá-las para junto de si. No entanto, tem concubinas, tantas quantas lhe apraz ter; porque, quando vem a qualquer vila ou cidade, faz com que tragam perante ele as mais nobres e mais belas virgens de toda a região vizinha, e faz com que tratem delas com nobreza e dignidade. E quando o Sultão deseja uma delas, faz com todas sejam trazidas perante ele, e àquela que lhe inspire mais prazer entrega um anel que tira do seu dedo. E então ela será lavada e perfumada e vestida de forma muito rica e depois da ceia será levada até à sua câmara. E o Sultão faz isto sempre que quer. Nenhum estranho deve vir diante do Sultão a menos que se cubra com um manto de ouro da Tartaria, ou com formas de vestir que os Sarracenos usam. E quando alguém vê o Sultão, numa janela ou noutro sítio, deve ajoelhar-se e beijar a terra; pois essa é a maneira que ali se usa para prestar reverência ao Sultão quando alguém quer falar com ele. E quando qualquer estrangeiro vem ter com ele como mensageiro de uma terra distante, os seus homens colocam-se à sua volta de espadas desembainhadas, e com as mãos levantadas para o despedaçarem se disser alguma coisa que desagrade ao Sultão. Ninguém pode vir falar com ele sem ter o seu acordo prévio, pois tem que ser razoável e não pode contrariar a lei. E assim fazem todos os outros príncipes e senhores deste país, porque dizem que nenhum homem pode ter uma audiência com um príncipe sem sair mais feliz do que veio.
Deveis compreender que a Babilónia de que aqui falo, onde vive o Sultão, não é a Grande Babilónia, onde aconteceu a Confusão das Línguas, quando a Torre de Babilónia estava a ser construída. As suas paredes tinham sessenta e três oitavos de milha de altura, e ficava nos desertos da Arábia quando se vai em direcção à Caldeia. Mas já há muito tempo que ninguém se atreve a aproximar-se daquela zona malfadada; porque é vasta, e tão cheia de dragões e cobras e outras bestas venenosas que nenhum homem se atreve a aproximar-se. A circunferência da Torre, com a extensão da cidade que dantes aí se encontrava, é de cerca de vinte e cinco milhas de diâmetro, pelo que dizem nesse país. E embora lhe chamassem uma Torre, no início existiam dentro dela muitos edifícios, que agora estão destruídos; não existe nada senão deserto selvagem. E deveis saber que tinha quatro bases quadradas, e cada lado tinha pelo menos seis milhas de comprido. Nemrod fez esta mesma Torre, e era rei deste país. E os homens dizem que ele foi o primeiro Rei desta Terra. Também teve uma imagem feita em memória do seu pai, e mandou todos os seus súbditos venerarem essa imagem. Outros grandes senhores das redondezas fizeram o mesmo; e foi assim que começou a idolatria. A mesma cidade, Babilónia a Grande, estava construída numa planície muito bela, que se chamava a Terra de Shinar, na margem do rio Eufrates, que corria nessa altura através da cidade. E as paredes da cidade tinham vinte cúbitos de altura e cinquenta cúbitos de espessura. Mas mais tarde Ciro, rei da Pérsia, cortou o abastecimento da água e destruiu a cidade e toda a terra à sua volta. Desviou o curso do Grande Rio Eufrates, e fê-lo correr por trezentos e quarenta canais diferentes. Porque tinha feito um grande voto, e jurado muito seriamente, de que traria a cidade ao ponto em que as mulheres poderiam passá-lo a vau e não molhar os seus corpos; e assim o fez. E a razão por que o fez foi porque nesse rio se tinham afogado muitos dos seus homens mais valorosos.
Desta Babilónia onde governa o Sultão até à Grande Babilónia são quarenta dias de jornada, viajando para nordeste através do deserto. E a Grande Babilónia não está sujeita ao Sultão mas caiu sob o poderio do Rei da Pérsia. Ele domina-a com a permissão do Grande Khan, que é um grande imperador –– na verdade, o maior imperador do mundo, porque é o senhor da grande terra de Cathay e de muitos outros países, e de grande parte da Índia. A sua terra confunde-se com as terras do Preste João ; e tem tantos domínios que não conhece o seu fim. É, sem comparação, maior e mais poderoso que o Sultão. Do seu grande território e majestade tenciono falar, mais tarde, quando chegar a hora.
Nos grandes desertos da Arábia fica a cidade de Meca e aqui jaz o corpo de Maomé, muito honrado, num templo a que os Sarracenos chamam uma Mesquita . E esta cidade fica a trinta e dois dias de viagem da Babilónia onde reina o Sultão. Deveis saber que o território da Arábia é muito vasto, mas dentro dele há muitos desertos, que não podem ser muito habitados por causa da falta de água. Porque estes desertos são tão secos e arenosos que nada consegue crescer neles. Mas onde a terra está habitada há uma quantidade muito grande de pessoas. A Arábia estende-se do fim da Caldeia até ao fim de África, e é contígua à Idumeia em direcção a Bosra. A cidade mais importante da Caldeia é Bagdade, e da África a cidade mais importante é Cartago, que foi fundada por Dido, que foi a mulher de Eneias, o primeiro rei de Tróia e o último de Itália. A Mesopotâmia também entra pelos desertos da Arábia, e é um grande país, onde se encontra a cidade de Harran, onde em tempos viveu o Patriarca Abraão. Desta cidade vieram os grandes sábios Efraim Siro e São Teófilo o Penitente, que a Virgem Maria libertou da escravatura do Demónio, tal como se encontra escrito no Livro dos Milagres de Nossa Senhora. A Mesopotâmia estende-se do Rio Eufrates ao Rio Tigre; o reino encontra-se contido entre esses dois grandes rios. E para lá do Tigre fica o reino da Caldeia, que é um país muito vasto. Nesse país, como já disse antes, é na cidade de Bagdade que costuma estar o Califa –– era o Papa e o Imperador daquele povo, o que quer dizer que é senhor das temporalidades e das espiritualidades. E era o sucessor de Maomé e da sua família. Esta cidade de Bagdade chamava-se antes Susis, e foi fundada por Nabucodonosor. Aqui viveu o profeta Daniel, e muitas vezes teve visões mandadas por Deus; e aqui interpretou os sonhos do Rei. Desde o tempo do Sultão Saladino, o Califa passou a chamar-se Sultão.
A cidade do Cairo, ou a Babilónia Menor, onde o Sultão vive, também é uma cidade muito bela. Fica situada nas margens do rio Gibon, que também se chama o Nilo, e que vem do Paraíso Terrestre . Todos os anos, quando o sol entra no Signo de Cancer, este rio começa a crescer, e cresce continuamente enquanto o sol está nesse signo e no signo de Leo. Cresce tanto que algumas vezes tem vinte cúbitos de profundidade, e depois inunda toda a terra circunvizinha e faz frequentemente muitos estragos nos lugares que ficam ao pé do rio. Pois nenhum homem pode nesse tempo tratar do cultivo do campo, e assim acontece que há uma grande escassez de milho nesta estação por causa do excesso de água. E, da mesma forma, há fome quando o rio só sobe um bocadinho, porque a terra fica seca demais. E quando o sol entra no signo de Virgo, o Nilo começa a descer até o sol entrar em Libra, e então mantém-se dentro do seu leito. Este rio, como já disse antes, vem do Paraíso terrestre e corre através dos desertos da Índia, e depois mergulha na terra e corre durante muito tempo debaixo dela; volta a aparecer à superfície no sopé de uma grande montanha chamada Atlas, que fica entre a Índia e a Etiópia. E depois corre a toda a volta da Etiópia e da Mauritânia, e assim através de todo o comprimento do Egipto, até chegar a Alexandria. Aqui entra no mar, onde o Egipto acaba. Ao longo deste rio há muitos pássaros, que são chamados cegonhas e íbis.
7
Sobre o país do Egipto;
Sobre a Fénix da Arábia;
Sobre a cidade do Cairo;
Como conhecer o bálsamo;
Sobre os Celeiros de José.
A terra do Egipto é longa mas é estreita, porque os homens não conseguem habitar no seu seio devido ao deserto, onde há uma grande falta de água; e portanto é habitada a todo o comprimento ao longo do rio. Pois não têm humidade a não ser aquele que o dito rio fornece; pois ali não chove, mas a terra é inundada pelo rio em certas alturas do ano, como já disse antes. E como não há distúrbios do ar causados por quaisquer chuvas, e o ar é sempre limpo e claro, sem nuvens, e por isso costumavam existir ali os melhores astrónomos do mundo. A supracitada cidade do Cairo, onde está instalado o Sultão, fica a pouca distância do Rio Nilo, na direcção do deserto da Síria. O Egipto está dividido em duas partes: uma entre o Nilo e a Etiópia, e a outra entre o Nilo e a Arábia. No Egipto ficam o reino de Ramsés e o reino de Goshen, onde viveram o Patriarca José e a sua descendência. O Egipto é um país muito forte; e nele existem vários portos deveras perigosos, porque em cada porto estão barreiras de pedra em cada entrada. A Leste do Egipto está o mar Vermelho, que se estende até às lonjuras de Kus. E para Oeste fica o país da Líbia que, devido ao excesso de calor, é totalmente estéril e não dá qualquer espécie de fruto. No lado Sul da Etiópia, e também no Norte, há grandes desertos que se estendem até às lonjuras da Síria. E portanto o Egipto é forte em todos os lados.
E neste país, numa certa altura do ano, vendem-se aquelas maçãs muito longas de que já falei , a que os homens chamam maçãs do Paraíso. São doces e deliciosas na boca. E, quando se cortam, encontra-se-lhes sempre no meio a figura da cruz. Mas apodrecem em oito dias, e por isso não podem ser levadas para terras distantes. As árvores onde elas crescem têm folhas com um metro e meio de largura; o mais comum é os homens encontrarem cachos de cem destas maçãs. Há também outras maçãs a que os homens chamam maçãs de Adão , e cada uma tem de lado como que uma marca de dentes, à semelhança de uma dentada humana. Também há figueiras que nunca dão folhas, mas que ostentam os figos nos seus ramos. E chamam-lhes os figos do Faraó. Um pouco para fora da cidade do Cairo fica um campo onde o bálsamo cresce em arbustos pequenos, com cerca de um pé de altura, e parecem vinhas selvagens. Também neste campo há sete poços, onde Cristo, na sua juventude, costumava brincar com outras crianças; e aqui mostrou Ele várias maravilhas. O campo não está tão bem vedado que quem queira não consiga entrar, excepto na estação em que cresce o bálsamo – nessa altura o bálsamo é tratado e vigiado com muito cuidado. Porque não cresce em mais nenhum lado senão ali. Porque se plantas ou rebentos forem levados para outros sítios, podem crescer mas não frutificam. As folhas do bálsamo não cheiram tão bem como o próprio bálsamo. Os ramos mortos são cortados com um instrumento feito de propósito para este trabalho, mas que não é de ferro: os homens cortam-no com uma pedra ou um osso aguçado. Se o instrumento fosse de ferro, viciaria a virtude e a natureza das árvores, como foi muitas vezes comprovado pela experiência. Os Sarracenos chamam à árvore que dá o bálsamo enochbalse, e ao fruto chamam abebissan. Mas à resina que escorre dos ramos chamam oxbalse, o que quer dizer opobalsamum. Alguns homens dizem que o bálsamo também cresce na Grande Índia, no deserto onde as árvores do Sol e da Lua falaram com Alexandre o Grande. Mas eu não vi esse lugar devido ao caminho perigoso que lá leva, portanto não posso comprovar a verdade disto. E deveis compreender que um homem pode ser facilmente enganado ao comprar bálsamo a menos que tenha um bom conhecimento da matéria. Porque alguns vendem uma espécie de goma chamada terebintina, e juntam-lhe um pouco de bálsamo para cheirar bem. Alguns misturam-no com o óleo da árvore das bagas e dizem que é bom bálsamo. Alguns destilam cravinho, noz moscada e outras especiarias de cheiro doce, e vendem o líquido assim destilado como se fosse bálsamo; e desta forma muitos homens são enganados. Porque os Sarracenos fazem estas adulterações para iludir os homens Cristãos, como eu próprio verifiquei por experiência. Os comerciantes e boticários, depois, também introduzem as duas próprias adulterações, mas são de menos valor. Agora, se vos apraz, posso mostrar-vos como testar se o bálsamo é verdadeiro para não serdes enganados. Deveis saber que o bálsamo que é natural e bom é de um amarelo claro e tem um cheiro doce muito forte. Se for espesso, vermelho ou preto, é adulterado. Ou toma-se um pouco de bálsamo e põe-se na palma da mão e vira-se a palma da mão para o sol; e se não conseguirmos aguentá-lo ali muito tempo por excesso de calor, é bom bálsamo. Também se pode por um pouco de bálsamo na ponta de uma faca e aproximar-lhe a chama: se arder, é bom sinal. Ou toma-se uma gota de bálsamo e põe-se numa tigela ou bacia e junta-se leite de cabra: se o bálsamo for bom, o leite coalha imediatamente. Ou junta-se o bálsamo a uma bacia cheia de água e misturam-se os dois: se, no final, a água estiver limpa, o bálsamo é puro, se estiver turva é impuro. O verdadeiro bálsamo é muito mais forte do que aquele que está impuro. Agora disse-vos brevemente alguma coisa sobre o bálsamo; e a seguir irei falar-vos dos Celeiros de José, que ainda existem no Egipto para lá do Rio Nilo em direcção ao deserto entre o Egipto e África.
São os Celeiros de José que foram construídos para guardar o milho durante os sete anos de fome que foram profetizados ao Rei Faraó num sonho que este teve conforme consta do Livro Primeiro
da Velha Lei. E são feitos de forma espantosamente engenhosa com pedra bem cortada. Dois deles são maravilhosamente altos, e largos, também; os outros não são tão grandes. Cada um deles tem um alpendre na entrada. Estes mesmos Celeiros estão agora cheios de cobras; e por fora podem ver-se vários escritos em línguas diversas. Alguns homens dizem que são os túmulos de grandes homens de tempos antigos; mas a opinião comum é que são os Celeiros de José. E, de verdade, não é provável que sejam túmulos, pois que estão vazios por dentro e têm alpendres e portões à sua frente. E os túmulos não devem, em boa razão, ser tão altos como estes Celeiros .
No Egipto há diferentes línguas, e diferentes letras de formas diferentes das dos outros países; e portanto deixo aqui as letras, os seus sons, e os seus nomes, para que conheçais a diferença entre estas letras e as letras de outros países.
VER pg 67
8
Sobre a iIlha da Sicília;
Do caminho de Babilónia para o Monte Sinai;
Da igreja de Santa Catarina, e das maravilhas que lá existem.
Antes de continuar, gostaria de regressar ao ponto de partida e falar-vos de outros caminhos que o viajante pode usar para alcançar Babilónia onde está o Sultão, sem qualquer passagem pelo Egipto. Porque muitos visitantes vão lá antes, e daí para o Monte Sinai, e depois regressam por Jerusalém, como antes disse. Porque primeiro fazem a sua peregrinação mais distante, e depois regressam para os lugares sagrados que ficam mais perto, mesmo que não sejam da importância de Jerusalém, à qual nenhuma outra peregrinação pode ser comparada. Agora aquele que deseja ir para Babilónia por outro caminho, mais rápido do que todos os que falei antes, desde que seja a partir deste país ou outros que lhe fiquem perto, pode ir através da França ou da Burgandia. Não é necessário listar todas as cidades e aldeias que bordejam este caminho porque elas são bem conhecidas pelos nossos viajantes. Mas há vários portos onde podem embarcar; alguns embarcam em Génova, outros em Veneza e vão pelo Mar Adriático, que se chama Golfo da Grécia e separa a Itália da Grécia, e alguns vão por Nápoles, e outros por Roma, e alguns para Brindisi e embarcam aí –– ou, na realidade, em qualquer outro porto onde encontrem um barco e alimentos disponíveis. Também há outros que vão através da Toscânia, da Campagna, e pelas ilhas da Itália pelo caminho de Córsega, Sardenha e Sicília, que é uma ilha muito bela e grande. Nessa ilha há um jardim cheio de árvores com diferentes tipos de frutos e está sempre verde e cheio de flores, tanto no Verão como no Inverno. Esta ilha tem trezentas e cinquenta léguas de largura; e entre está apenas separada do continente por um braço de mar, chamado o Estreito de Messina. Esta ilha da Sicília fica entre o Adriático e o mar da Lombardia. Na Sicília há um certo tipo de cobra que os homens da terra estão habituados a usar como teste de se os seus filhos foram concebidos no santo matrimónio. Porque, no primeiro caso, a serpente irá à roda dos meninos sem lhes fazer qualquer mal. Mas, em caso de adultério, a serpente morderá na criança e ela morrerá. Desta forma os homens desta terra que suspeitam que os seus filhos sejam ou não fruto da malícia das suas mulheres ficarão a saber se o filho é seu ou não.
E nesta ilha há também o Monte Etna, que por outro nome também é chamado Gebel. Há chaminés na terra que estão sempre a arder; sete lugares, especialmente, de onde saem chamas coloridas que não param de mudar de cor. Pela mudança das cores os homens sabem –– ou pressentem –– se haverá nesse ano falta de milho ou se o milho será barato, se o clima será quente ou frio, chuvoso ou aprazível. E muitas outras coisas eles adivinham ou prevêem pelas cores das chamas. De Itália a estas chaminés a distância é só de 24 milhas, e diz-se que são os portões de entrada para o Inferno.
Aquele que vai pela cidade de Pisa, como alguns fazem, onde há uma entrada de mar e dois portos, viajará pelo caminho da ilha de Corfu, que pertence aos Genoveses. Depois os homens atracam na Grécia ou na cidade de Mavrovo, ou em Valona, ou em Durazzu, que pertence ou Duque de Durazzo; e daí vão para Constantinopla, depois por mar para a Grécia, e para a ilha de Rodes para o Chipre. E assim, seguindo o caminho directo, de Veneza a Constantinopla são 1880 milhas da Lombardia. Do reino de Chipre pode viajar-se para a cidade de Alexandria, que se ergue do outro lado. Santa Catarina foi decapitada nessa cidade , e nessa cidade foi São Marco martirizado e enterrado. Mas depois o imperador Leo fez com que trouxessem os seus ossos para Veneza, e ainda se encontram lá. E em Alexandria há uma bela igreja toda coberta de branco, e o mesmo acontece a todas as igrejas dos Cristãos nestas partes, porque os pagãos e os Sarracenos por toda a parte as fazem cobrir de cal para que não se vejam os frescos e as imagens que decoravam as paredes. Esta cidade de Alexandria tem trinta oitavos de milha de comprido e dez de largura; é uma bela e nobre cidade. É nesta cidade que o Rio Nilo entra no mar, conforme já foi dito. Nesse rio encontram-se frequentemente pedras preciosas, e a madeira que se chama lignum aloes, que vem do Paraíso. É medicinal para muitos casos, e vende-se muito cara. De Alexandria os homens vão para Babilónia onde reside o Sultão; fica à beira do Nilo. Esta é a maneira mais fácil e mais curta de chegar a Babilónia.
Irei agora descrever o caminho que deve seguir-se para se chegar de Babilónia ao Monte Sinai, onde jaz o corpo de Santa Catarina. Os homens devem passar pelos desertos da Arábia, onde Moisés e Aarão levaram os filhos de Israel. Nesse caminho existe um poço onde Moisés os levou e lhes deu de beber, pois já murmuravam contra ele por terem sede. Mais à frente no caminho há outro poço chamado Marah, onde acharam que a água era salobra quando foram bebê-la; Moisés deitou lá para dentro uma certa espécie de madeira e as águas ficaram imediatamente doces. Depois os homens vão por este deserto para o Vale de Elim, onde há doze poços e setenta e duas palmeiras com tâmaras, onde Moisés acampou com os Filhos de Israel. Daqui até ao Monte Sinai fica apenas um dia de jornada.
Se alguém quiser ir de outra maneira de Babilónia ao Monte Sinai tem que passar pelo Mar Vermelho, que é um braço do Mar Ocidental; por ele passaram os filhos de Israel sem molharem os pés, quando o Rei Faraó os perseguia, e todos os seus homens se afogaram nele. E tem seis milhas de largura. A água desse mar não é mais vermelha do que a outra água do mar em qualquer parte; mas porque há muita gravilha rósea na margem desse mar, chamam-lhe Mar Vermelho. E estende-se pelas fronteiras da Arábia e da Palestina. Por este mar os homens demoram quatro dias de viagem, e depois chegam aos desertos e ao Vale de Elim que já mencionámos, e daí seguem para o Monte Sinai. E deveis saber que ninguém pode atravessar estes desertos com cavalos, porque não existem estábulos, nem ração, nem água para os cavalos. E portanto essa peregrinação é feita a camelo, porque eles conseguem encontrar em qualquer parte no caminho ramos de árvores para comer, porque eles gostam bem dessa comida e podem passar sem água durante dois ou três dias, o que os cavalos não podem. De Babilónia ao Monte Sinai é uma jornada de doze dias. No entanto, alguns viajam a tal velocidade que demoram menos tempo. Nesta parte da viagem, é necessário que tenham com eles intérpretes que entendam a linguagem do país; isto também é necessário noutros países destas partes. Os homens também têm que levar a sua comida consigo através destes desertos.
O Monte Sinai é chamado o Deserto do Pecado –– o que é como dizer, a Sarça Ardente¸ pois foi aqui que Moisés viu Nosso Senhor falando com ele numa sarça ardente. No sopé do Monte Sinai fica uma abadia de monges, bem rodeada por paredes altas, e com portões de ferro por medo das horríveis bestas selvagens que vivem nesses desertos. Os monges que lá vivem são Gregos e Árabes, e vestem-se como eremitas; há um grande convento deles. Alimentam-se de raízes e tâmaras e ervas; geralmente não bebem vinho: só nos dias de grandes festivais. São homens devotos e observam uma vida pura, e vivem em grande abstinência e grande penitência. Aqui fica a igreja de Santa Catarina, na qual há muitas lâmpadas a arder. Usam azeite de oliveira tanto para as lâmpadas como para a comida e para a iluminação, e esse óleo chega-lhes como que por magia. Porque todos os anos gralhas e corvos e outros pássaros voam para este lugar em grandes bandos, como se estivessem a fazer uma peregrinação; e cada um deles traz no bico um ramo de oliveira que deixa lá; e desta forma há uma grande quantidade de azeite para sustento da abadia. Agora se os pássaros, que não têm pensamento, prestam semelhante reverência àquela virgem gloriosa, nós homens Cristãos devemos certamente visitar aquele lugar sagrado com grande devoção. Atrás do Grande Altar da igreja fica o lugar onde Moisés viu Nosso Senhor numa sarça ardente. E quando os monges vêem para este lugar despem as suas meias e sapatos porque Deus disse a Moisés ‘Tira os teus sapatos dos teus pés, porque o lugar onde estás é Terra Sagrada’ . Esse lugar é chamado Sombra de Deus. E por trás ficam quatro degraus que levam ao túmulo de alabastro onde jaz a virgem Santa Catarina. E o prelado dos monges mostra as relíquias aos peregrinos; com um instrumento de prata move os ossos da santa num altar. Daqui escorre um pouco de óleo, como suor; mas não é como óleo nem como bálsamo, porque é mais escuro. Deste óleo dão um pouco aos peregrinos –– porque é só um pouco que sai . Depois, mostram-lhes a cabeça de Santa Catarina, e o pano em que estava enrolada quando os anjos a trouxeram para o Monte Sinai. E foi ali, com o pano, que a enterraram, e o pano ainda está ensanguentado, e sempre estará. E também mostram o arbusto que Moisés viu a arder, quando Nosso Senhor falou com ele. E mostram várias outras relíquias. Cada monge desta abadia tem uma lâmpada a arder, e, disseram-me, quando o abade morre a lâmpada dele apaga-se. Quanto a escolher um novo abade, a lâmpada daquele que pela graça de Deus é mais meritório de tomar esse lugar acende-se sozinha. Como disse, cada um deles tem a sua lâmpada; e sabem pela lâmpada quando qualquer um deles está prestes a morrer, porque nessa altura a sua lâmpada começa a dar cada vez menos luz. Também me disseram que, quando um prelado morreu e vai ser enterrado, aquele que canta a Missa Solene encontrará diante dele num pergaminho no altar o nome daquele que será seguidamente escolhido para ser prelado; perguntei aos monges se isso era verdade. Eles não me disseram, mas às vezes uns diziam que tinha sido isso mesmo. E mesmo assim, nunca diziam muito até que lhes disse que não era correcto esconder do mundo semelhante maravilha de Deus, pois, se todos soubessem deste Milagre, mais se converteriam e mais O glorificariam. Pelo contrário, este Milagre devia ser publicado em todo o mundo e excitar os homens com devoção. E ainda acrescentei que pecavam gravemente ao esconder isto, parecia-me, pois os milagres de Deus são sinais Seu grande poder, como David diz no Psaltério.
Ouvindo-me falar acabaram por admitir ser tudo verdade no respeitante às lâmpadas que se acendem e apagam, e ainda falaram de outras acções espantosas de Deus. Naquela abadia nunca entra a corrupção de moscas, piolhos, lagartas, ou quaisquer outros vermes, por Milagre de Deus e da Sua mãe Virgem Maria e pela jovem Virgem Santa Catarina. Porque dantes existiu na abadia uma tal quantidade desta corrupção que os monges eram tão torturados por ela que acabaram por abandonar a Abadia e foram viver para as colinas próximas. E uma noite a Mãe de Deus foi ter com eles e disse-lhes que voltassem para a Abadia, pois nunca mais qualquer corrupção os incomodaria lá dentro. Eles fizeram o que Ela lhes disse, e, desde esse dia, em todo o recinto que fica dentro dos portões da abadia, não há nem uma mosca, nem um piolho, nem qualquer espécie de vermes. E diante do portão fica o poço onde Moisés bateu na rocha com o seu cajado e fez jorrar a água, que jorrará para sempre.
Desta Abadia os homens sobem muitos degraus até ao Monte de Moisés. E aqui há uma igreja de Nossa Senhora, onde ela se encontrou com os monges, como vos disse. E mais alto na montanha está a igreja de Moisés, e as rochas para onde Moisés correu quando viu Nosso Senhor. Nessas rochas está a impressão do seu corpo. Porque correu tão depressa através delas que por milagre de Deus o seu corpo ficou marcado nelas. E ali muito perto fica o lugar onde Nosso Senhor deu a Moisés os Dez Mandamentos da Lei escritos em duas tábuas de pedra pelas próprias mãos de Deus. Debaixo de uma pedra há uma gruta, onde Moisés viveu quando jejuou durante quarenta dias e quarenta noites. Mas Moisés morreu na Terra Santa, e ninguém sabia onde ele estava enterrado. Desta montanha os homens atravessam um longo vale para chegarem a outra montanha alta, onde os anjos enterraram o corpo de Santa Catarina. Nesse vale fica a igreja dos Quarenta Mártires, onde os monges da outra abadia tinham frequentemente serviço; esse vale é muito frio. Depois os homens sobem para a Montanha de Santa Catarina; e é muito mais alta que o Monte de Moisés. Aqui Santa Catarina não foi enterrada numa igreja, numa capela, nem em outro abrigo; mas há uma pilha de pedras reunida no lugar onde ela foi enterrada. Já houve aqui uma capela, mas entretanto caiu, e as pedras ainda lá estão. E embora o anel de Santa Catarina diga que foi exactamente no mesmo lugar que Nosso Senhor deu a Lei a Moisés e que Santa Catarina foi enterrada, deveis entender que um país é diverso, de forma que dois lugares diferentes podem ter o mesmo nome. Ambos se chamam Monte Sinai, embora fiquem a uma longa distância um do outro.
9
Sobre o deserto entre a igreja de Santa Catarina e Jerusalém;
Sobre a Árvore Seca;
E de como foi que as rosas apareceram na Terra.
Quando os homens já visitaram o lugar sagrado de Santa Catarina, primeiro despedem-se dos monges e recomendam-se a si próprios com as suas orações. Esses monges com boa vontade dão-lhes provisões para que possam atravessar o deserto da Síria. E o deserto estende-se por uma jornada de doze ou treze dias. Nesses desertos vivem vários povos, que se chamam Àrabes, Beduínos e Ascopardes . São gente de má formação, cheia de todos os tipos de maldade e malícia. Não têm casas, só tendas que fazem de pele de camelo e de outras bestas selvagens que eles comem, e bebem água quando conseguem encontrá-la. Acontece com frequência que onde se encontra água numa parte do ano, noutra altura que se siga já lá não está; por isso não constroem as casas em pontos fixos, mas antes umas vezes aqui e outras vezes ali, onde encontrarem água. Estes povos de que falo não trabalham no amanho da terra, pois que não comem pão, a menos que vivam junto de uma grande cidade onde podem ir regularmente buscá-lo. Cozinham todas as suas carnes, ou os peixes a que conseguem ter acesso, em pedras aquecidas pelo sol. No entanto são homens fortes, grandes lutadores; e há uma grande quantidade deles. Não fazem nada que não seja caçar bestas selvagens, para as trazerem para a sua comida. E não dão valor às próprias vidas, e por isso não temem o Sultão nem nenhum grande príncipe deste mundo, e lutarão com eles se de alguma forma os incomodaram. Lutaram várias vezes contra o Sultão, por exemplo, na altura em que vivi com ele. Não usam armas nem roupas para se defenderem, apenas uma lança e um escudo. Enrolam um lenço branco de linho em torno da cabeça e do pescoço. São gentes muito cruéis, de natureza diabólica.
Depois de homens terem atravessado este deserto no caminho para Jerusalém, chegam a uma cidade que se chama Betsabé, que era dantes uma bela cidade habitada por homens Cristãos, e ainda se vêem de pé algumas das suas igrejas. Nesta cidade viveu Abraão o Patriarca. Betasabé, a mulher de Urias, fundou a cidade, e deu-lhe o seu próprio nome. Foi nesta cidade que o Rei David lhe confiou Salomão o Sábio, que foi rei de Jerusalém durante quarenta anos. Daqui os homens vão até ao vale do Hebron, que por outro nome também é chamado Gebel, e que fica a doze milhas de distância. Alguns chamam-lhe o Vale de Mamre, o que quer dizer o Vale dos Soluços, porque o nosso primeiro pai Adão lamentou aqui durante cem anos a morte do seu filho Abel, assassinado por Caim. Em Hebron ficava dantes a cidade principal dos Filisteus, e viviam lá gigantes. Depois foi também a cidade dos padres da tribo de Judá, filho do Patriarca Jacob. E tinha o privilégio de que quando um homem fugia para lá por acusação de homicídio ou outro crime sério, podia viver tranquilamente nessa cidade sem ser desafiado por nenhum outro homem e sem lhe fazerem mal. A Hebron vieram Joshua e Caleb e os da sua companhia, para espiarem a forma de conquistarem a Terra Prometida. Em Hebron reinou o rei David durante sete anos e meio; e em Jerusalém reinou durante trinta e sete anos e meio. Na cidade de Hebron estão os túmulos dos Patriarcas Adão, Abraão, Isaac, e Jacob, e as suas mulheres Eva, Sara e Rebeca, e ficam no declive da encosta. Sobre eles está uma bela igreja, bem cercada de muralhas, como um castelo, que os Sarracenos mantêm com muito cuidado. Têm um grande respeito por este lugar devido aos Patriarcas que aqui jazem. Não deixam entrar nem Cristãos nem Judeus, a menos que tragam autorização do Sultão, porque consideram Judeus e Cristãos como porcos, que não devem entrar num local sagrado. Este lugar chama-se Spelunca Duplex, ou seja ´cave dupla´ ou ´duplo túmulo´, porque eles estão enterrados uns por cima dos outros. Na sua língua, os Sarracenos chamam-lhe Cariatharbe, o que quer dizer ´o lugar dos Patriarcas´ . Os judeus chamam-lhe Arboth. Neste mesmo lugar estava Abraão sentado à soleira da sua porta quando viu três homens e venerou um deles, como a Sagrada Escritura testemunha, dizendo tres uidit et unum adoravit, o que quer dizer ´viu três e adorou um´. E aqui Abraão levou os anjos para sua casa como convidados. E um pouco mais abaixo há uma gruta numa rocha, para onde seguiram Adão e Eva quando foram expulsos do Paraíso.; e aqui tiveram os seus filhos. E, segundo alguns dizem, aqui foi Adão feito. Dantes este lugar chamava-se Campo de Damasco porque se encontrava sob o domínio do Senhor de Damasco. Daqui Adão foi transladado por Deus para o Paraíso, como esses homens dizem; depois voltou para o Paraíso e depois foi expulso. Foi posto no Paraíso e expulso de lá no mesmo dia, porque, assim que pecou, teve que abandonar esse lugar maravilhoso. O Vale do Hebron começa aqui, e estende-se até Jerusalém. Aqui disse o anjo a Adão que devia viver com a sua mulher; aqui nasceu Seth, a cuja linhagem pertenceu Nosso Senhor Jesus Cristo. Nesse vale há um campo onde os homens retiram da terra uma substância chamada cambille , e usam-na para comer em vez de especiarias; levam-na muitas vezes para a venderem nas terras a toda a volta. O buraco onde a escavam nunca consegue ser tão largo ou tão fundo que, pela Graça de Deus, não volte a estar cheio até ao topo no ano seguinte.
A duas milhas de Hebron fica o túmulo de Lot, o sobrinho de Abraão; e um pouco para lá de Hebron fica o Monte de Mamre, de onde o vale tirou o seu nome. E há aqui uma espécie de carvalho a que os Sarracenos chamam dirpe, e que data do tempo de Abraão. É a esta árvore que os homens chamam a Árvore Oca; e dizem que está ali desde o começo do mundo, e que estava sempre verde e com folhas até ao dia em que Nosso Senhor morreu na Cruz, e então secou. E o mesmo aconteceu a todas as árvores destas de todo o mundo, dizem alguns, ou então dizem que só ficou a casca e tudo o que tinham por dentro secou, e que ainda encontramos de pé muitas destas árvores. Muitos dizem que um Grande Senhor do Oriente ainda se juntará aos Cristãos para reconquistar a Terra Santa com o auxílio das Armas de Cristo , e nessa altura mandará cantar a Missa debaixo da Árvore Seca, e ela voltará a ficar verde e cheia de rebentos. Pelo poder desse milagre, Judeus e Sarracenos hão-de converter-se à fé Cristã. E portanto têm esta árvore em grande reverência, e as pessoas dessa terra prestam-lhe grandes honras e cuidam dela com todo o cuidado. E embora se chame, e de facto seja mesmo, uma Árvore Seca, tem sem dúvida grandes poderes, pois aquele que a transporta consigo nunca sofre de epilepsia, tal como o seu cavalo nunca se empina. A Árvore Seca tem muitas outras virtudes e portanto é deveras preciosa.
Do Hebron os homens vão até Belém só num meio dia, porque são só cinco milhas. O caminho é agradável e bom, através de uma planície e de um bosque. Belém é só uma cidade pequena, comprida e estreita, e bem murada e cercada de fossos. Nos tempos antigos chamava-se Effrata, como diz a Sagrada Escritura: “Ecce, audiuimus eum in Effrata” , o que quer dizer “Acreditai, isto ouvimos em Effrata”. Junto ao extremo ocidental dessa cidade há uma bela igreja com muitas trincheiras e torres, bem murada de todos os lados. Dentro dessa igreja há quarenta e quatro grandes pilares de mármore de grande beleza. Entre esta igreja e a cidade fica o campo Floridus; e chamam-lhe o “Campo das Flores” porque uma jovem donzela foi falsamente acusada de fornicação, razão pela qual foi decidido que seria ali queimada. Foi levada para ali e amarrada ao poste e puseram molhos de espinheiro e de outras madeiras à sua volta. Ela viu a madeira começar a arder, rezou a Nosso Senhor para que a ajudasse já que ela não era culpada daquele crime, para que todos vissem que não tinham razão. Quando acabou esta reza, pôs um pé nas chamas – e estas apagaram-se logo, e as árvores que estavam a arder deram rosas vermelhas, e as que ainda não estavam em fogo deram roseiras brancas todas em botão. E estas foram as primeiras rosa e roseiras que alguma vez se viram. E assim foi a donzela salva pela graça de Deus. E também, debaixo do coro dessa igreja, para a direita quando os homens descem dezasseis degraus, está o lugar onde Nosso Senhor nasceu. Está agora lindamente decorado, e colorido ricamente com ouro, prata, lápis-lazuri e outras cores. E um pouco para trás – uns três passos – está a mangedoura da vaca e do burro. E um pouco mais adiante está o lugar onde caiu a estrela que conduziu os Três Reis a Nosso Senhor; os seus nomes eram Gaspar, Melchior e Baltazar. Mas os Gregos chamam-lhes Galgalath, Malgalath e Seraphy. Estes Três Reis ofereceram a Nosso Senhor ouro, incenso e mirra. E vieram aqui graças a um milagre de Deus, porque se encontraram numa cidade da Índia chamada Kashan; fica a cinquenta e três dias de jornada de Belém, mas eles chegaram a Belém quatro dias depois de verem a estrela. No claustro desta igreja, a dezoito passos para o lado direito, fica a Capela dos Santos Inocentes, onde jazem os seus ossos. E diante desse lugar onde Jesus nasceu está o túmulo de Santo Jerónimo, que foi padre e cardeal, e que traduziu a Bíblia de Hebraico para Latim. Fora da igreja está a sua cadeira, onde se sentava quando estava a traduzir a Bíblia. Um pouco para lá desta igreja fica outra igreja, a de São Nicolau, onde Nossa Senhora descansou depois de ter dado Nosso Senhor à luz. E como tinha demasiado leite nos seus peitos, e isso lhe fazia doer, esvaziou-os no pavimento vermelho de mármore que ali existia. As manchas de leite branco ainda são ali visíveis, nos pontos onde caíram. E deveis saber que praticamente todos os que vivem em Belém são Cristãos. E há grandes vinhas em torno da cidade, e grandes quantidades de vinho devidas ao trabalho e organização dos homens Cristãos – porque os Sarracenos não cultivam vinhas, nem bebem qualquer espécie de vinho. Porque o Livro da Lei que Maomé lhes deu, chamado o Corão – alguns chamam-lhe Massap , e outros Harme – proíbe-os de beber vinho. Porque nesse livro Maomé amaldiçoa todos aqueles que bebem vinho e todos aqueles que o vendem. Porque alguns homens dizem que ele uma vez, na sua embriaguês, matou um bom eremita, que muito amava, e portanto amaldiçoou o vinho e todos os que o bebem. Mas essa maldição só existe na sua cabeça, pois a Sagrada Escritura diz, “Et in uerticem ipsius iniquitas eiusdescendet”, o que quer dizer “e a sua maldade cairá na sua própria cabeça” . Os Sarracenos também não criam porcos, e não comem carne de porco; porque dizem que é um irmão do homem e que foi proibido pela Velha Lei. Também na terra da Palestina e na terra no Egipto só comem um pouco de vitela ou vaca, a não ser que o animal esteja tão velho que já não sirva para trabalhar nos campos. Foi nesta cidade de Belém que nasceu o Rei David; e teve seis mulheres, das quais a primeira se chamava Michal, a filha do Rei Saul. E também teve muitas concubinas.
De Belém a Jerusalém são só duas milhas. No caminho para Jerusalém, a meia milha de Belém, fica uma igreja, no lugar onde os anjos anunciaram aos pastores o nascimento de Cristo. E nessa estrada está o túmulo de Raquel, a mão do Patriarca José; e que morreu assim que deu à luz Benjamim. Aqui foi enterrada, e José colocou sobre o seu corpo doze pedras grandes, simbolizando os doze Patriarcas. A meia milha de Jerusalém a apareceu a estrela aos Três Reis. E nesta estrada para Jerusalém há muitas igrejas, que todos os peregrinos visitam.
10
Sobre as peregrinações em Jerusalém,
E sobre os seus lugares sagrados.
Para falar de Jerusalém: deveis compreender que a cidade está bem instalada entre as montanhas. Não tem rios nem poços, mas a água chega aqui através de condutas vindas do Hebron. E devo dizer-vos que esta cidade se chamava Jebus, até ao tempo de Melchisedek, e depois foi chamada Salem até ao tempo do Rei David. E ele juntou esses dois nomes e chamou-lhe Jebusalem; e depois Salomão chamou-lhe Jerusalém e ainda assim é chamada. E à volta de Jerusalém fica o distrito da Síria; abaixo fica a terra da Palestina, e ainda Ascalon. Mas Jerusalém fica na terra da Judeia; e é assim chamada porque Judas Macabeu era o rei dessa terra. E para Leste marcha ao lado do reino da Arábia, para o Sul com o Egipto, no Oeste faz fronteira com o Mediterrâneo, e para o Norte com o reino da Síria e o Mar de Chipre. Costumava existir um patriarca um Jerusalém, e arcebispos e bispos nas terras em volta. Em torno de Jerusalém ficam sete cidades: Hebron a sete milhas, Betsabé a oito, Jericó a seis, Ascalon a dezoito, Jaffa a vinte e sete, Rama a três e Belém a duas milhas de distância. E a duas milhas para o Sul de Belém fica a igreja de São Caritário, que em tempos foi ali abade, e a quem os monges fizeram grandes cerimónias fúnebres quando morreu. Ainda lá está uma pintura que representa todo o desespero e sofrimento que apresentaram por ele, e é certo que desperta muita piedade vê-la.
Esta terra de Jerusalém já esteve nas mãos de povos muito diferentes – Judeus, Canaanitas, Assírios, Persas, Macedónios, Gregos, Romanos, Cristãos, Sarracenos, Bárbaros, Turcos e muitas outras nações. Porque Cristo não deseja que permaneça por muito tempo nas mãos de incréus, sejam eles Cristãos ou não. E agora os infiéis apoderaram-se desta terra já há mais de sete anos bissextos – mas, pela graça de Deus, não vão mantê-la por muito mais tempo.
Deveis compreender que quando os homens chegam a Jerusalém fazem a sua primeira peregrinação à igreja onde fica o Sepulcro de Nosso Senhor, que dantes ficava fora da cidade para o Norte; mas agora já está dentro das muralhas da cidade. É uma igreja muito bela, de plano circular, com um bom telhado de folhas de chumbo. No lado ocidental fica uma bela torre muito forte para os sinos. No meio dessa igreja fica um tabernáculo, como uma casa pequena, construído em semi-círculo, decorado muito ricamente com ouro e prata e lápis-lazúli e outras cores. Do lado direito fica o Sepulcro de Nosso Senhor. Este tabernáculo tem oito pés de comprido, cindo de largura, e onze de altura. Há não muito tempo o Sepulcro estava bastante aberto, de tal forma que os homens podiam beijá-lo e tocar-lhe. Mas como alguns homens que lá iam costumavam tentar quebrar pedaços da pedra para a levarem consigo, o Sultão mandou construir uma parede em volta do Sepulcro para que ninguém pudesse tocar-lhe a não ser do lado esquerdo. O Tabernáculo não tem janelas, mas lá dentro tem muitas lamparinas a brilhar. Entre as outras luzes há uma que brilha diante do Sepulcro, e em cada Sexta Feira Santa apaga-se sozinha, e no Domingo de Páscoa volta a acender-se à hora precisa em que Nosso Senhor se levantou dos mortos. Também dentro dessa igreja, para o lado direito, fica o Monte Calvário, onde Nosso Senhor foi crucificado. A Cruz foi encaixada numa rocha, que é branca, raiada de vermelho. É que no alto da rocha o sangue caiu das feridas de Nosso Senhor quando ele sofria na Cruz. Chamam-lhe agora o Gólgota; e os homens têm que subir vários degraus para o verem. E foi nesse encaixe que se encontrou a cabeça de Adão depois do Dilúvio de Noé, como símbolo de que os pecados de Adão seriam redimidos naquele lugar. E foi mais acima nessa rocha que Abraão fez o seu sacrifício a Nosso Senhor. Há aqui um altar, e à sua frente jazem Godofredo de Bouillon e o seu irmão Balduíno, e outros reis Cristãos de Jerusalém. Onde nosso Senhor foi crucificado está uma inscrição em Grego, que diz: Otheos basileon ysmon presemas ergaste sothias oys – alguns livros dizem Otheos basileon ymon proseonas ergasa sothias emesotis gis – o que quer dizer em Latim Hic deus, rex noster, ante saecula operatus est salutem in medio terrre, o que quer dizer ´Aqui Deus nosso Rei perante todos os mundos fez nascer a Salvação do fundo da terra´. Sobre a pedra onde se pôs a cruz está escrito assim: Gros guist rasis thou pestes thoy thesmoysi, ou, Oyos iusutiyis basis thou pesteos thoy themosi, o que quer dizer em Latim Quod vides, est fundamentum totius fidei mundi huius, o que quer dizer ´Isto que vedes é a fundação de toda a fé no mundo´. Deveis compreender que quando Nosso Senhor morreu tinha trinta e três anos e três meses de idade. Mas a profecia de David anuncia que Ele terá quarenta anos na Sua morte, quando diz isto: Quadraginta annis proximus fui generatione huic, o que quer dizer ´Por quarenta anos fui vizinho da tua espécie´. Deste modo pode parecer que a Sagrada Escritura se contradiz, o que não é de todo verdade, porque nos tempos antigos os homens contavam o ano como sendo só de dez meses. Depois Júlio César fez inserir Janeiro e Fevereiro no calendário, passando os anos a ser de 365 dias, excepto nos anos bissextos, de acordo com o curso correcto do Sol. E portanto, se trabalharmos com anos de dez meses, Ele morreu no quadragésimo ano; mas no nosso sistema Ele só tinha trinta e três anos e três meses. Junto ao Monte Calvário, para o lado direito, está um altar onde jaz o tronco a que Nosso Senhor foi atado enquanto era chicoteado. A quatro pés de distância estão quatro pedras, que estão sempre a deitar água; e alguns homens dizem que elas estão sempre a chorar a morte de Jesus Cristo. Junto a este altar, num lugar que fica a quarenta e dois degraus debaixo do chão, Santa Helena encontrou a Cruz de Nosso Senhor, debaixo de um rochedo onde os Judeus a tinham escondido. Encontraram-se outras duas cruzes, onde foram crucificados os dois ladrões pendurados um de cada lado de Nosso Senhor. Santa Helena não sabia ao certo qual delas era a verdadeira Cruz de Jesus Cristo, e por isso agarrou nas três e deitou-as, uma de cada vez, por cima de um cadáver estendido no chão. Assim que lhe pôs por cima a verdadeira Cruz, o morto levantou-se e recomeçou a viver. Ali perto na parede está o sítio onde se esconderam os quatro pregos que atravessaram as mãos e os pés de Cristo, dois nas mãos e dois nos pés. O Imperador Constantino mandou incrustar um destes pregos na sua cabeçada, que usava sempre que partia em batalha.; pelo seu poder venceu muitos inimigos e conquistou muitos reinos diferentes – a saber a Ásia Menor, e Turquia, a Grande e a Pequena Arménia, a Síria, Jerusalém, a Arábia, a Pérsia, a Mesopotâmia, o reino de Aleppo e o Alto e Baixo Egipto, e muitos outros reinos até às distâncias da Etiópia e da Índia Menor, que então era na sua maior parte Cristã . Nessa altura existiam muitos homens e eremitas sagrados nesses países, dos quais nos fala o Livro Vitae Patrum . E agora, na sua maioria, estas terras estão nas mãos de Pagãos e Sarracenos . Mas, quando Deus assim o entender, tal como estas terras se perderam pelos pecados dos homens Cristãos, assim serão de novo reconquistadas por Cristãos, com a ajuda de Deus . No meio do coro desta igreja há um círculo, onde José de Arimateia estendeu o corpo de Nosso Senhor quando O tiraram da Cruz; e os homens dizem que esse círculo marca o centro perfeito do mundo . Nesse lugar José lavou as feridas de Nosso senhor. É também na igreja do Sepulcro, para o lado Norte, que fica um lugar onde Nosso Senhor foi aprisionado – porque foi aprisionado em muitos lugares. Ainda se vê um pedaço da cadeia com que esteve preso. Foi aqui que Ele apareceu pela primeira vez a Maria Madalena quando ressuscitou dos mortos, e ela pensou que Ele era o jardineiro . Na igreja do Santo Sepulcro costumavam pontificar os monges da Igreja de Santo Agostinho, que tinham um prior; mas o seu chefe máximo era o Patriarca. Fora da porta da prisão, para a direita, onde se sobem vinte e oito degraus, fica o lugar onde Jesus falou com a Sua Mãe quando estava preso na Cruz: Mulier, esse, filius tuus, o que quer dizer, ´Mulher, este é o teu filho´ -- referia-se a São João, que estava ali de um dos lados. E a ele Jesus disse: ´Esta é a tua Mãe´. E por esses degraus subiu Nosso Senhor com a Cruz às costas até ao lugar onde foi crucificado. Por baixo desses degraus fica uma capela, onde os padres fazem os seus serviços, mas de acordo com os ritos deles, que não são iguais aos nossos. Fazem sempre a Consagração do Pão no altar, rezando o Pater Noster e as palavras do sacramento e pouco mais; porque não conhecem os adicionamentos dos papas, a que os nossos padres estão habituados na Missa. No entanto, cantam a Missa deles com grande devoção. Perto dali fica um lugar onde Jesus descansou quando estava cansado de carregar a Cruz. E deveis saber que a cidade está pior defendida do lado da igreja do Sepulcro, por causa da planície imensa que se estende entre a cidade e a igreja em direcção a Oriente. Nessa direcção, fora das muralhas, fica o Vale de Jeosafate, que se estende até ao limite das muralhas. Fora das muralhas, sobranceira ao vale, fica a igreja de Santo Estevão, que foi apedrejado até à morte. Depois da igreja fica o portão a que chamam Porta Aurea e que ninguém consegue abrir. Nosso Senhor Jesus Cristo entrou por essa porta montado num burro no Domingo de Ramos; e a porta abriu-se à Sua frente quando Ele se dirigia ao Templo. As ferraduras do burro ainda conseguem ver-se marcadas para sempre na pedra da calçada. A duzentos passos em frente da igreja de Santo Estêvão fica um grande Hospício de São João, onde os Hospitalários tiveram a sua primeira fundação. Saindo do hospício em direcção a Oriente chega-se a uma capela belíssima chamada Notre Dame La Grande. Um pouco mais afastada fica ainda uma outra igreja, chamada Notre Dame des Latins. Foi aqui que pararam Maria Madalena e as outras mulheres, chorando por Jesus Cristo quando O mataram, e arrepanhando o cabelo. No Hospício de São João já mencionado fica uma casa grande isolada para pessoas doentes, sustentada por quatro pilares de pedra e seis de estrias.
11
Sobre o Templo de Nosso Senhor;
Da crueldade de Herodes;
Do Monte Sião;
Da Piscina Probatica e do lago de Siloão.
A seis passos quadrados para Leste da igreja do Sepulcro fica o Templo de Nosso Senhor, que é um edifício muito bonito. É circular, e muito alto, e com um telhado de chumbo, e com o pavimento em mármore. Mas os Sarracenos não deixam entrar nem Cristãos nem Judeus, porque dizem que é impossível que gente tão rude visite um lugar tão sagrado. Mesmo assim eu entrei, assim como entrei em muitos outros lugares sagrados por onde passei; porque tinha comigo cartas com o Grande Selo do Sultão, nas quais ele ordenava firmemente aos seus súbditos que me deixassem visitar todos os lugares que eu quisesse, e que me mostrassem as relíquias e os lugares sagrados segundo o meu bel-prazer; e que deviam conduzir-me de cidade em cidade se tal fosse necessário, assim como deviam saudar-me a mim e aos meus companheiros com grande alegria e júbilo, para que todos soubessem que éramos homens bons, pelo que deviam obedecer a todos os meus pedidos em todos os assuntos razoáveis a menos que fizessem planos contra a dignidade do próprio Sultão ou contra a lei. A outros homens que desejam obter dispensa e permissão do Sultão para visitar os lugares que eu mencionei ele dá geralmente um apenas o seu selo; os peregrinos carregam-no à sua frente pendurado de uma lança ou de um poste, e prestam-lhe uma grande veneração; e os homens dessa região prestam muito respeito a este selo, de tal forma que quando o vêem passar à sua frente se ajoelham como se estivesse o padre a passar com a Hóstia Consagrada. Mas a mim o Sultão fez um favor muito especial, já que eu estava há muito tempo ao seu serviço na corte. As cartas do Sultão também são objecto de grande reverência, pois que assim que são levadas até um senhor, ou a qualquer outro homem, este presta-lhes logo a devida homenagem, ajoelhando-se, e batendo com ela na testa em reverência. Carlos Magno estava neste Templo quando o anjo lhe trouxe o prepúcio de Nosso Senhor depois da circuncisão; depois o Rei Carlos levou esse prepúcio para Paris. Deveis compreender que este não é o Templo construído por Salomão; esse Templo só durou mil cento e dois dias. Porque Tito, o filho de Vespasiano, que era Imperador de Roma, lançou um cerco a Jerusalém para expulsar de lá os Judeus, que tinham determinado a morte de Cristo sem consulta nem consentimento do Imperador. Quando tomou a cidade, mandou incendiar o Templo e destruiu-o por completo; tomou todos os Judeus e matou onze mil deles, relegando o restante para a prisão. Tinha vendido trinta por um cêntimo, uma vez que constava que Jesus fora vendido aos romanos por trinta cêntimos. Muito tempo depois disto, o Imperador Juliano o Apóstata, que renegou e perseguiu a fé Cristã, deu autorização aos Judeus para voltarem a construir o seu Templo em Jerusalém, pois que, embora ele próprio tivesse sido educado como um Cristão, na realidade odiava os Cristãos. E quando os Judeus acabaram de construir o Templo, e porque era essa a vontade de Deus, veio um terramoto que sacudiu todas as fundações de Jerusalém e fez cair o edifício dos Judeus. Depois o Imperador Hadriano, que era da linhagem de Tróia, consertou de vez a cidade de Jerusalém e reconstruiu-lhe o Templo, e fê-lo como Salomão o tinha feito, real e nobre. Mas Hadriano não deixava entrar um único Judeu, só Cristãos; porque embora ele próprio não fosse Cristão, amava os Cristãos mais do que quaisquer outros homens, à excepção dos que professavam a sua própria fé pagã. Foi este Imperador que construiu uma muralha em torno da igreja do Sepulcro e a trouxe para dentro de uma muralha – antes dele a igreja ficava de fora. E mudou o nome da cidade e chamou-lhe Aelia, mas o nome não durou muito tempo. Os Sarracenos prestam grandes honras ao Templo de Nosso Senhor, dizendo que é um lugar muito sagrado. Quando entram na igreja tiram logo os sapatos e ajoelham-se com grande reverência. Quando eu e os meus companheiros os vimos fazerem isto, tirámos também nós os nossos sapatos e pensámos que era extremamente razoável – que nós, Cristãos, deveríamos honrar e admirar o Nosso Senhor tanto quanto os incréus O adoram. Este Templo tem sessenta e quatro cúbitos de largura, o mesmo de comprimento, e seis e cinco de altura. E por dentro, de todos os lados, tem pilares de mármore a perder de vista. No meio do Templo fica uma plataforma com de vinte e três degraus de altura, com pilares dourados a toda a volta. A este lugar chamam os Judeus Santa Sanctorum, ou seja, O mais Sagrado entre os Sagrados. Ninguém vai ao interior dessa plataforma excepto o Bispo da sua Lei quando fazia os sacrifícios. As pessoas apinhavam-se a toda a volta em diferentes níveis conforme a sua dignidade e devoção. Há quatro entradas para este Templo; as portas são de madeira de cipreste, bem e artisticamente feitas. Foi logo à entrada da porta oriental que Nosso Senhor disse ‘Aqui está Jerusalém´. Do lado Norte, dentro da porta, está um poço de onde não corre água – a Sagrada Escritura fala dele assim: Vidi Aquam egredientem de templum etc . Do outro lado está uma rocha que em tempos foi chamada Moriah, mas que depois se chamou Betel, onde se ergueu a Arca de Deus, e outras coisas sagradas dos Judeus. Quando Tito venceu os Judeus mandou esta Arca para Roma, com as coisas sagradas lá dentro. Nessa Arca estavam as Tábuas de Moisés, onde foram escritos os Dez Mandamentos, e a vara de Araão, e o bastão com que Moisés abriu o Mar Vermelho para que os Filhos de Israel passassem a pé enxuto quando o Rei Faraó os perseguia. Com o mesmo bastão Moisés bateu na pedra seca, e dela correu muita água em abundância. Moisés fez muitos milagres com esse bastão. Na arca estava também uma ânfora de ouro cheia de maná, a que os homens chamam a comida dos anjos, e muitos outros ornamentos e vestuário, de Araão e do Tabernáculo. Havia uma mesa de ouro, quadrada, com doze pedras preciosas, e um caixão de jade verde com quatro figuras lá dentro e oito nomes de Deus lá gravados; havia sete castiçais de ouro, dez frascos de ouro, e quatro incensórios de ouro; havia um altar de ouro e quatro leões de ouro, sobre os quais estavam querubins dourados com doze palmos e altura; havia um círculo com os doze símbolos dos Céus, um tabernáculo de ouro, doze trompetas de prata, uma tábua de prata, sete formas de pão sagrado, e muitas outras coisas sagradas e preciosas relativas ao serviço de Deus antes da Encarnação de Cristo. E nesta rocha dormiu José, quando viu os anjos subirem e descerem por um degrau, e disse, Vere locus iste sanctus, et ego nesciebam, o que quer dizer, ´Certamente, este lugar é sagrado, e eu não sei´. Foi nesta rocha que Nossa Senhora aprendeu o seu Psaltério , e foi nesta rocha que Nosso Senhor perdoou os seus pecados à mulher adúltera. Aqui foi Cristo circuncisado. Aqui Melchisedek ofereceu pão e vinho a Nosso Senhor, como símbolo do sacramento que estava para vir. Foi aqui que David ajoelhou, rezando ao Senhor que tivesse piedade de si e do seu povo, e o Senhor escutou a sua prece. E aqui teria ele construído o Templo, mas o Senhor proibiu-o através de um anjo, porque ele fizera o mal ao matar Urias, um bom cavaleiro, para agradar à sua mulher. E tudo o que David pôs de parte para construir o Templo foi depois usado por Salomão seu filho, e ele construiu-o. E rogou ao Senhor que ouvisse as preces de todos os que rezassem naquele Templo, e o Senhor assim o fez. Do lado do Templo fica um altar onde os Judeus costumavam oferecer rolas e pombos. E neste Templo foi assassinado o profeta Zacarias. De um pináculo deste Templo foi atirado São Tiago, que foi o primeiro Bispo de Jerusalém. À entrada do Templo está a porta chamada Speciosa, onde São Pedro curou o aleijado e o tornou capaz de andar. Um pouco afastada do Templo, para o lado direito, está uma igreja de telhas de chumbo, que se chama a Escola de Salomão. E em direcção ao Sul fica o Templo de Salomão, que é um lugar muito belo; fica num ponto estratégico de horizontes vastos. Neste lugar viveram os cavaleiros chamados Templários, e esta foi a casa-mãe dos Templários e da sua Ordem. E tal como os cavaleiros viveram ali, também os monges costumavam viver no Templo do Senhor. A seis passos quadrados deste Templo, numa esquina da cidade, fica o banho de Nosso Senhor, e a água costumava vir do Paraíso. Um pouco afastado dali fica o leito de Nossa Senhora, e por perto o túmulo de São Simeão. Para Norte, fora do Templo, há uma linda igreja de Santa Ana, a mãe de Nossa Senhora; aqui foi Nossa Senhora concebida. E descendo vinte e dois degraus a partir dessa igreja chega-se ao túmulo de pedra de Joaquim, o pai de Nossa Senhora. Dantes Santa Ana costumava jazer a seu lado, mas depois Santa Helena transladou-a para Constantinopla. Nesta igreja há um poço, como uma cisterna, que se chama a Probatica Piscina , e dantes tinha cinco entradas. Nessa cisterna costumavam vir os anjos banhar-se a agitar as águas, e o primeiro homem que ali se banhasse depois da agitação das águas ficava curado de todas as doenças que o afligissem. Foi aqui que se curou o homem que estava doente há vinte e oito anos. Foi aqui que Nosso Senhor lhe disse Tolle grabatum tuum et ambula, o que quer dizer,’ Agarra na tua cama e anda´ . Um pouco afastadas daqui ficavam a casa de Pilatos, e a casa de Herodes, o Rei que mandou matar os Inocentes. Este Herodes era um homem cruel e maldoso. Porque primeiro fez desaparecer a sua mulher, que ele amava sobre todas as outras criaturas; e por causa do grande amor que tinha por ela, quando a viu morta perdeu o juízo e assim ficou durante muito tempo. Depois, quando com o passar do tempo recuperou o juízo, fez matar os filhos que tivera dela. E depois mandou matar a sua outra mulher, e um filho que tivera dela, e a sua própria mãe. Teria feito o mesmo ao seu irmão, mas este morreu antes de ele ter conseguido atingir esse propósito. E quando ele viu que o seu irmão estava a morrer, mandou chamar a sua irmã e todos os grandes senhores daquela terra, e quando chegaram todos mandou fechar os grandes senhores numa torre; e disse à sua irmã que sabia muito bem que o povo do seu país não faria luto por si depois da sua morte, e portanto fê-la jurar que mandaria matar todos aqueles senhores quando ele morresse para que o país chorasse uma grande perda. Assim fez o seu testamento, e pouco tempo depois morreu. Mas a sua irmã não satisfez os seus últimos desejos; porque assim que o viu morto libertou os senhores da torre e disse-lhes o que o seu irmão queria, e deixou-os ir para onde quisessem. E deveis saber que existiram três reis Herodes, todos eles homens maldosos e cruéis. Aquele de que falei era Herodes Ascalónitas, também conhecido por Herodes o Grande; aquele que mandou cortar a cabeça de São João Baptista era Herodes Antipas; e Herodes Agrippa mandou matar São Tiago, o irmão de São João Evangelista, e pôs São Pedro na prisão.
Além disso, na cidade de Jerusalém fica a igreja de São Salvador, e aqui encontram-se o braço esquerdo de São João Crisóstomo, e a maior parte da cabeça de Santo Estêvão. Um pouco a Sul daí fica a igreja de São Tiago, onde ele foi decapitado. Depois vem o Monte Sião: há aqui uma bela igreja de Nossa Senhora, no lugar onde ela viveu e morreu. Costumava localizar-se aí uma abadia, com monges regulares. Foi daqui que Nossa Senhora foi levada pelos anjos para o Vale de Jeosafate. Também há uma pedra trazida a Nossa Senhora por anjos do Monte Sinai, e em todos os aspectos é igual à rocha do Monte de Santa Catarina. Ali ao pé fica o portão através do qual Nossa senhora partiu para Belém. No início do Monte Sião há também há também uma capela onde se encontra a grande pedra com que os homens cobriram o Santo Sepulcro depois de deitarem lá dentro o corpo de Nosso Senhor. As três Marias viram esta pedra virada e afastada do túmulo quando vieram ao Sepulcro. Também está aqui um pedaço do poste a que Jesus foi amarrado enquanto O chicoteavam. A casa da Anaás era ali – ele era então Bispo dos Judeus. Ali está também um pedaço da mesa em que Cristo instituiu o Eucaristo e deu aos outros o Seu corpo na forma de pão e vinho. Foi aqui que Pedro negou Nosso Senhor três vezes antes de o galo cantar. Descendo trinta e dois degraus para baixo desta capela encontra-se o lugar onde Nosso Senhor lavou os pés dos discípulos – o vaso em que se encontrava a água ainda lá está. Ali perto fica o lugar onde Santo Estêvão foi enterrado. Há um altar onde Nossa Senhora ouviu os anjos cantarem a Missa. Foi nesse lugar que Cristo apareceu aos Apóstolos pela primeira vez desde a Sua Ressurreição, quando as portas estavam trancadas, e lhes disse, Pax uobis . E no Monte Sião Cristo apareceu a São Tomé e disse-lhe que tocasse nas Suas feridas, então ele acreditou pela primeira vez e disse, Dominus meus et Deus meus´ . Atrás do altar mais alto desta capela estavam todos os Apóstolos reunidos no Domingo de Pentecostes quando o Espírito Santo desceu sobre eles sob a forma de línguas de fogo. Foi ali que Cristo observou a Sua Páscoa com os Seus Apóstolos, e foi ali que São João Evangelista dormiu no joelho de Nosso senhor e no seu sono viu muitos dos mistérios do Céu.
O Monte Sião fica dentro da cidade, e de certa forma é mais alto que os seus outros lugares. A cidade é mais forte desse lado que dos outros; porque no sopé do Monte Sião o fica um castelo bem forte que o Sultão mandou construir. Este é o lugar onde São Pedro chorou copiosamente depois da renegação. É no Monte Sião que estão enterrados o Rei Salomão, o Rei David, e muitos outros. A cerca de uma pedrada de distância está uma outra capela, onde Nosso senhor foi condenado à morte. A casa de Caifás era aqui. A Leste deste capela, a sete passos quadrados de distância, fica uma gruta profunda debaixo de um rochedo que se chama Galilea Domini; São Pedro escondeu-se aqui depois de ter negado Cristo Três vezes. Entre o templo de Salomão e o Monte Sião fica o sítio onde Nosso senhor levantou a rapariga dos mortos. Abaixo do Monte Sião, na direcção do Vale de Jeosafate, fica um poço chamado o Lago de Siloão. Nosso Senhor foi aqui lavado depois de ter sido baptizado; e aqui devolveu a vista aos cegos. Aqui, também, está enterrado o profeta Isaías. Um pouco mais para trás, na direcção do lago, está uma escultura em pedra, um trabalho muito antigo. Chamam-lhe a mão de Absalão, porque Absalão a mandou fazer. Um pouco mais longe fica a figueira onde Judas se enforcou depois de ter atraiçoado Jesus Cristo. Depois fica a sinagoga onde o Bispo dos Judeus e os Fariseus se juntaram em concílio contra Jesus. E aqui Judas lhes atirou com as moedas de trinta dinheiros e gritou, Peccaui, tradens sanguinem iustum, o que quer dizer ´Pequei porque atraiçoei o sangue dos justos´ . E do outro lado do Monte Sião, para a direita, a uma pedrada de distância, fica o campo comprado com esses trinta dinheiros; e chama-se Acheldemak, o que quer dizer “O Campo de Sangue”. Neste campo estão os túmulos de muitos peregrinos Cristãos, porque é costume enterrar aqui os peregrinos. Há também muitas igrejas e capelas, e eremitérios onde vivem eremitas. A cem passos daqui em direcção a Leste fica a Casa-Mãe do Hospício de São João.
Uma milha a Oeste de Jerusalém fica uma bela igreja onde cresceu a árvore de que foi feita a Santa Cruz. A duas milhas dali fica uma igreja no lugar onde Nossa Senhora se encontrou com Isabel quando ambas estavam grávidas, e São João saltou na barriga da sua Mãe venerando o Seu Salvador. Debaixo do altar está o lugar onde nasceu São João Baptista. A apenas uma milha daí fica o Castelo de Emaús, para onde dois discípulos de Cristo iam depois da Ressurreição, e aqui reconheceram Nosso senhor quando o viram partir o pão. Também a duas milhas de Jerusalém fica o Monte da Alegria, que é um lugar bonito e aprazível; o profeta Samuel jaz aqui num belo túmulo. Chama-se Monte da Alegria porque é daqui que os peregrinos podem ter a sua primeira grande vista de Jerusalém; e depois da sua longa jornada sentem aqui uma grande alegria e imenso reconforto. Entre Jerusalém e o Monte Olivete fica o Vale de Jeosafate para lá das muralhas da cidade, como já disse antes; e no meio do vale há um ribeiro pequeno chamado Kedron. Sobre este ribeiro costumava estar a árvore que forneceu a madeira para a Cruz, usada então como ponte de madeira para que os homens pudessem atravessar as águas do Kedron. A pouca distância está um buraco no chão que é o sítio onde foi enterrado o poste a que Jesus foi amarrado quando O chicotearam. No meio do vale fica a igreja de Nossa Senhora, onde está o seu túmulo. E deveis saber que quando Nossa Senhora morreu tinha setenta e dois anos. Junto ao seu túmulo está o lugar onde Nosso Senhor perdoou a São Pedro todos os seus pecados. A apenas pouca distância, para Oeste, debaixo de um altar, vê-se uma nascente que vem directamente de um dos quatro rios do Paraíso. Embora esta igreja agora pareça mais baixa que todo o chão que está à volta dela, no entanto deveis saber que não se encontrava assim na altura em que foi construída; mas por causa do desmoronamento das muralhas da cidade, que foram caindo para ali, o nível do chão à volta da igreja subiu, e portanto agora o chão está mais alto que a igreja embora a igreja estivesse ao nível do chão quando foi construída. No entanto a opinião comum é que a terra tem crescido por si própria desde que Nossa Senhora foi enterrada, e que continua a crescer de dia para dia. Costumavam viver aqui frades pretos beneditinos que tinham um abade sobre eles. Por trás desta igreja há uma capela, junto da pedra chamada Gethsemane, onde Judas beijou Nosso Senhor quando Ele foi aprisionado pelos Judeus. Aqui Cristo deixou os Seus discípulos antes da Sua Paixão, quando se afastou deles para rezar e disse, Pater, si fieri potest, transeat a me cálix iste, o que quer dizer, ´Pai, se puder ser feito, afasta de mim este cálice´ . Na rocha ainda se vê a impressão das mãos de Nosso Senhor, onde empurrou a rocha quando os Judeus O levaram. A uma pedrada de distância, para Sul, fica outra capela, onde Nosso Senhor suou sangue. Ali ao pé fica o túmulo do Rei Jeosafate, de quem o vale toma o nome, pois ele foi o Rei daquele país. A uma flecha de distância, para Sul, está uma igreja onde foram enterrados São Tiago e o profeta Zacarias. De um dos lados do Vale de Jeosafate fica o Monte Olivete; e tem este nome por causa das muitas oliveiras que lá crescem. É mais alto que Jerusalém, e por isso de lá os homens conseguem ver todas as ruas da cidade. Entre essa montanha e a cidade só fica o Vale de Jeosafate, que não é muito largo. Foi no cimo dessa montanha que Nosso Senhor se ergueu antes de ser transportado para os Céus; os homens ainda conseguem ver a impressão do seu pé esquerdo na rocha onde Ele esteve de pé. Em tempos existiu aqui uma abadia de frades pretos Agostinhos mas agora só resta a igreja pequena. Um pouco mais à frente – a vinte e oito passos – há uma capela, e lá dentro está a pedra onde Nosso Senhor se sentou e pregou ao povo, dizendo, Beati pauperes spiritu, quoniam ipsorum est regum celorum, etc, o que quer dizer, ´Bem-Aventurados os pobres de espírito, porque deles será o Reino dos Céus`. Aqui Ele ensinou o Pater Noster aos discípulos, escrevendo o texto num rochedo; a escrita ainda é visível hoje. Ali ao pé fica uma igreja, onde Santa Maria do Egipto jaz no seu túmulo. Um pouco mais à frente, para Leste, fica Besfágio, onde Nosso Senhor ordenou a dois discípulos que fossem buscar-lhe o burro que montou no Domingo de Ramos. Um pouco para Leste de Monte Olivete há um castelo a que os homens chamam Betânia. Aqui vivia o Leproso Simão, que alojou Nosso Senhor e os Seus discípulos. Este Simão foi mais tarde baptizado pelos Apóstolos e chamado Juliano, e mais tarde foi feito bispo. É a este Juliano que os homens rezam para que possam arranjar bons alojamentos. Nesse mesmo lugar Nosso Senhor perdoou a Maria Madalena todos os seus pecados; e aqui ela lavou os Seus pés com as suas lágrimas e secou-Os com os seus cabelos. Aqui foi Lázaro levantado dos mortos quatro dias depois de morrer, quando o seu corpo no túmulo já cheirava mal. Aqui ficavam as casas de Lázaro e da sua irmã Marta. Era também aqui que vivia Maria Cleofa. Este castelo só fica a uma milha de Jerusalém. Um pouco afastado fica o lugar onde nosso Senhor chorou por Jerusalém. E aí ao pé fica o lugar onde Nossa Senhora deu a Sua cinta a São Tomé depois da Assunção. E um pouco mais à frente fica a pedra onde Jesus costumava sentar-se para pregar, e no mesmo sítio Ele aparecerá no Dia do Juízo. Um pouco para lá do Monte Olivete fica o Monte da Galileia, onde os Apóstolos estavam todos reunidos quando Maria Madalena veio dizer-lhes que Nosso Senhor ressuscitara dos mortos. A meio caminho entre o Monte Olivete e o Monte da Galileia fica a igreja onde o anjo avisou Nossa Senhora da chegada da Sua morte.
Cinco milhas separam Betânia de Jericó. Jericó era dantes uma cidade formosa, mas está destruída, e agora só resta uma pequena aldeia. Foi esta cidade que José capturou graças a um milagre de Deus, e arrasou até ao nível da terra, e ordenou que nunca fosse reconstruída; e também amaldiçoou todos os que alguma vez tentassem fazê-lo. Zaqueu, que segundo o Evangelho subiu a um sicómoro para conseguir ver Nosso Senhor, era desta terra. Também desta terra era a prostituta Raab, que acolheu os mensageiros de Israel quando vieram espiá-la; escondeu-os em sua casa no meio dos molhos de linho e disse que tinham abandonado a cidade antes de se fecharem os portões. Depois, à noite, ajudou-os a descer as muralhas por uma corda, e salvou-os da morte. E por isso quando Israel tomou a cidade foi bem gratificada, e merecidamente. Porque a Sagrada Escritura diz, Qui recipit prophetam in nomine prophete, mercedem prophete acciepte, o que quer dizer ´aquele que receber um profeta com o nome [nome do profeta] receberá a recompensa do profeta ` E portanto ela teve uma dádiva especial de Deus, porque disse aos mensageiros que conquistariam toda aquela terra, e assim foi. Depois Salomão, que era Príncipe da tribo de Judá, casou-se com ela; e, a seu tempo, foi desta linhagem que nasceu Nossa Senhora a Virgem Maria, mãe de Jesus Cristo.
De Betânia os homens atravessam o deserto até chegarem ao Rio Jordão – é cerca de um dia de jornada. Mas de Betânia até uma colina onde Nosso Senhor jejuou durante quarenta dias e quarenta noites são só seis milhas; essa colina chama-se Quarentena. Aqui veio o Demónio tentar Nosso Senhor, dizendo-lhe, Dic, ut lapides isti panes fiant, o que quer dizer, ´Manda a estas pedras que se transformem em pão` . Nesse lugar existia dantes uma bela igreja, mas agora só há um eremitério onde vivem uns religiosos chamados Jorgeanos, porque foi São Jorge quem os converteu. Abraão viveu por muito tempo nessa colina. Entre essa colina e o Rio Jordão corre um rio estreito, cuja água costumava ser maravilhosamente amarga, mas desde que o profeta Elias a benzeu tornou-se bastante doce e pode beber-se. No sopé desta colina, em direcção à planície, há uma grande nascente, que desagua no Jordão. Desta colina a Jericó vai só uma milha, quando se desce para o Rio Jordão. Na estrada para Jericó sentou-se em tempos o cego que bradou, lhesu, fili David, miserere mei, o que quer dizer, ´Jesus, filho de David, tem piedade de mim`.
12
Sobre o Mar Morto;
Sobre o Rio Jordão;
E da cabeça de São João Baptista,
E dos costumes no país dos Samaritanos.
A três milhas de Jericó fica o Mar Morto. Entre Jericó e esse mar fica o país de Engeddi. Em tempos crescia aqui o bálsamo, mas foi transplantado daqui para o Egipto, onde os arbustos em que o bálsamo cresce ainda hoje se chamam vinhas de Engeddi. Na costa deste mar a que se chega vindo da Arábia fica a colina dos Moabitas, a que se chama Arnon. Balak, filho de Zipor, levou Balaão o profeta ao cimo desta colina para amaldiçoar os filhos de Israel. Este mesmo Mar Morto separa as terras da Judeia e da Arábia; estende-se de Zoar à Arábia. A água deste mar é muito amarga e salgada, e se a terra for banhada por ele torna-se estéril e nunca dá colheitas. Esta água muda frequentemente de cor. Este mar deposita uma substância a que se chama asfalto. Todos os dias se encontram grandes bocados dele, do tamanho de um cavalo, atirados contra cada uma das margens; é como pez. E por isso há quem chame ao Mar Lago Asphaltis, o que quer dizer Lago de Pez. Chamam-lhe um Mar por causa do seu tamanho; porque tem setecentos e quatro oitavos de milha de comprimento e cento e cinquenta de largura. E chama-se o Mar Morto porque não tem marés, mas antes está sempre quieto, e não contém em si nenhuma coisa viva, nem homem nem besta, nem carne nem peixe. Isto foi já provado muitas vezes; porque já por muitas vezes que os homens atiraram lá para dentro criminosos condenados à morte pelos seus crimes, e o Mar deitou-os imediatamente fora. Os navios não podem navegar aqui se não estiverem bem untados com resina. Se uma lanterna acesa por atirada a estas águas, fica a flutuar; se for atirada apagada, vai ao fundo. E se for atirado um ferro, sobe até à superfície e flutua; mas se for atirada uma pluma, vai ao fundo. E isto é contra a natureza. E foi por pecados contra a natureza que as cinco cidades da sua orla foram destruídas – ou seja, Sodoma e Gomorra, Admah, Zeboiim e Zoar. Mas a maior parte de Zoar foi salva graças às preces de Lot, porque ficava numa colina. Em dias de bom tempo ainda se conseguem ver as suas muralhas acima da água. Nenhum homem se atreve a viver perto deste Mar, nem a beber a sua água. Alguns homens, conforme já disse, chamam-lhe o Lago Asphaltis, e outros o Lago do Demónio, e outros o Rio Malcheiroso, porque cheira mal. Na orla deste mar crescem árvores que dão maçãs de cores muito belas e deliciosas ao olhar; mas, quando se colhem e cortam, só se encontram lá dentro cinzas e poeira, como símbolos da vingança que Deus fez exercer sobre aquelas cinco cidades e sobre os campos à sua volta, queimando-os com os fogos do Inferno. Do lado direito deste mar a mulher de Lot foi transformada numa estátua de sal porque olhou para trás contrariando as ordens do anjo quando Deus estava a queimar as cinco cidades. E deveis saber que Lot era filho de Araão, e Araão era irmão de Abraão; e Sara, a mulher de Abraão, e Milca, a mulher de Nahor, eram irmãs de Lot. Quando Sara deu à luz Isaac já tinha noventa anos de idade. Abraão também tinha outro filho, que se chamava Ismael, e que foi circuncisado aos catorze anos . Mas Isaac foi circuncisado aos oito anos.
O Rio Jordão corre até ao Mar Morto, e desagua ali, porque dali já não prossegue o seu curso. Isto acontece a apenas uma milha para Oeste de uma igreja a São João Baptista, que marca o sítio onde São João baptizou Nosso Senhor. Os homens Cristãos costumam lavar-se aí. E a uma milha do Jordão há outro ribeiro, a que chamam Jabbok, que Jacob atravessou quando regressou da Mesopotâmia. O Rio Jordão não é muito grande, mas está muito cheio de peixes; corre a partir do Líbano, onde brota de duas fontes, uma chamada Ior e a outra Dão; e deve o seu nome a estas duas nascentes. Corre através de um país chamado Lago Merom, depois através do Mar da Tibéria e sob as montanhas de Gilboa; há uma planície muito rica de cada lado do rio. As montanhas do Líbano estendem-se até ao deserto de Faran, separando o reino da Síria do País dos Fenícios. Nestas encostas crescem cedros muito altos, e dão maçãs compridas tão grandes quanto a cabeça de um homem. O Rio Jordão separa a Galileia e o Reino da Iduménia e a terra de Bosra; nalgumas partes corre por baixo da terra, numa planície muito bela chamada Meldan , e aqui o Jordão é muito largo. Nesta planície fica o túmulo de Job. Neste rio Cristo foi baptizado por São João, e aqui ouviu-se a voz de Deus a dizer, Hic est filius meus dilectus, in quo michi bene complacui, o que quer dizer, ´Este é o Meu filho muito amado, escutai-O` . E aqui o Espírito Santo desceu sobre Ele em forma de pomba, e assim toda a Trindade esteve presente no Seu Baptismo. Através deste Rio Jordão passaram todos os Filhos de Israel a pé enxuto; deixaram pedras grandes no meio da água como símbolo do milagre. Naamão da Síria banhou-se neste rio sete vezes e ficou curado da sua lepra e feito são como um peixe. Há muitas igrejas junto ao Rio Jordão com homens Cristãos que vivem nelas. A pouca distância do rio fica a cidade de Ai que José cercou e tomou. Para lá do Jordão fica o Vale de Mamre, que é um vale muito belo. A duas milhas da colina – que já mencionei – onde Nosso Senhor jejuou e rezou durante quarenta dias e quarenta noites, em direcção à Galileia, fica uma montanha alta onde o Diabo levou Nosso Senhor para Lhe mostrar todos os reinos da terra e Lhe dizer ´Dou-te tudo isto se ajoelhares e me adorares` .
E deveis saber que quando se começa a jornada para lá do Mar Morto, em direcção a Leste depois das fronteiras da Terra Prometida, há um castelo belo e forte chamado Krak, o que quer dizer Monte Real. Balduíno, que foi Rei de Jerusalém, e que conquistou toda essa terra, mandou construir o castelo e manteve-o com guardas Cristãos. Por baixo desse castelo há uma boa cidade, chamada Shobek, onde muitos Cristãos vivem sob tributo aos Sarracenos com bastante segurança. Daqui os homens vão para Nazaré, de onde Nosso Senhor ganhou a Sua alcunha. Daqui para Jerusalém são três dias de jornada. Atravessa-se o país da Galileia, através de Ramah em Efrain e das montanhas de Efrain, onde viviam Elkanah e Hannah, o pai e a mãe do profeta Samuel. Samuel nasceu aí, mas foi sepultado no Monte da Alegria, como já disse antes. Depois chega-se a Shiloh, onde a Arca do Senhor era guardada por Eli, o padre da Lei. O povo de Hebron sacrificou-se aqui a Nosso Senhor. Foi aqui que Nosso Senhor falou com Samuel pela primeira vez. Aqui perto, para o lado esquerdo, ficam Shobek e Ramah em Benjamin de que fala a Sagrada Escritura. Daqui vai-se para Shechem, que por outro nome se chama Sychar, no país da Samaria, a dez milhas de Jerusalém. Alguns chamam-lhe Neopolis, o que quer dizer ´Cidade Nova`. Ali muito perto fica o poço de Jacob, onde Nosso Senhor falou com a Samaritana. Dantes existia aí uma igreja; agora está destruída. Ao lado desse poço Jeroboão Rei de Israel mandou fazer dois bezerros de ouro, e um foi mandado para Dan e outro para Betel, com ordens para que o povo os adorasse como deuses. A uma milha de Shechem há uma cidade chamada Betel onde Abraão habitou durante algum tempo. Um pouco mais adiante fica o sepulcro de José, filho de Jacob, que governou o Egipto; os seus ossos foram trazidos do Egipto e enterrados aqui. Na cidade de Shechem foi Dinah, a filha de Jacob, violada; e por causa disto os seus irmãos assassinaram muitas pessoas dessa cidade. A pouca distância dessa cidade fica o Monte Gerizim, onde os Samaritanos fazem os seus sacrifícios. Foi nessa encosta que Deus pediu a Abraão que lhe oferecesse em sacrifício o seu filho Isaac. Ali perto fica o Vale de Dothan. Nesse vale está a cisterna em que em que José foi aprisionado pelos seus irmãos antes de o venderem aos Ismaelitas – fica a duas milhas de Shechem. Daqui os homens vão para uma cidade na Samaria que se chama Sebastiyeh, e que é a maior cidade desse país, no meio de colinas como Jerusalém. Mas esta cidade já não é tão grande como o foi em tempos. São João Baptista está aqui enterrado entre dois profetas, Elias e Obadias. Mas foi decapitado no castelo de Macário junto ao Mar Morto, e os seus discípulos carregaram-no para Sebastiyeh. Aqui Juliano o Apóstata, quando foi Imperador, mandou exumar e queimar os seus ossos, e as suas cinzas foram espalhadas ao vento. Mas o dedo com que são João apontara para Nosso Senhor, dizendo, Ecce Agnus Dei etc, o que quer dizer ´Este é o Cordeiro de Deus`, nunca ninguém conseguiu queimar. Este dedo levou a virgem Santa Tecla para as montanhas, e aqui lhe são prestadas grandes honras. Em tempos houve aí uma grande igreja, mas agora está destruída, tal como todas as outras igrejas construídas à sua volta. Ali a cabeça de São João estava emparedada; mas o Imperador Teodósio mandou que a tirassem dali e descobriu que estava envolta num pano manchado de sangue. Por isso levou-o para Constantinopla, e metade dele ainda lá está; a outra metade está em Roma, na igreja de São Silvestre. O recipiente em que foi posta a cabeça depois de libertada está em Génova e todos lhe prestam grandes homenagens. Outros dizem que a cabeça de São João Baptista está antes em Amiens, na Picardia; e outros ainda que essa cabeça é antes a cabeça do Bispo São João. Eu não sei; Deus sabe .
De Sebastiyeh a Jerusalém são doze milhas. Entre as colinas desta terra há um poço que muda de cor quatro vezes no ano. Umas vezes é verde, outras vezes é vermelho; umas vezes está turvo e outras vezes está claro. Os homens chamam-lhe o Banho de Job. As pessoas desta terra chamam-se os Samaritanos, e foram convertidas e baptizadas pelos Apóstolos. Mas não mantiveram todos os ensinamentos dos Apóstolos, e por isso caíram em erros e acabaram por formar a sua própria seita, em que seguem uma lei diferente da dos Cristãos, da dos Judeus, da dos Sarracenos e da dos pagãos. Mesmo assim, acreditam num só Deus, e dizem que não há mais nada para além Dele, que todos fez e todos julgará. Seguem os Cinco Livros do Pentateuco à letra, e usam o Psaltério da mesma forma que os Judeus. Dizem que são os verdadeiros Filhos de Deus, e mais amados por Ele do que qualquer outro Homem. A sua forma de vestir também é diferente da dos outros homens, e enrolam os turbantes com um pano de linho encarnado para se distinguirem de todos. Porque os Sarracenos usam um turbante branco, os homens Cristãos que aqui habitam usam um turbante azul, e os Judeus usam um amarelo. Muitos Judeus vivem aqui, pagando tributos tal como pagam os Cristãos. E se souberdes o tipo de letras que os Judeus usam, podeis soletrá-las pelos seus nomes: Aleph, Beth, Gymel, Daleth, He, Vau, Zain, Cheth, Teth, Jod, Caph, Lamed, Mem, Nun, Samech, Ain, Pe, Tzaddi, Coph, Resh, Schin, Tau. Agora mostrarei quais as formas dessas letras:
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Sobre a Província da Galileia,
E sobre onde nascerá o Anticristo;
Sobre a Idade de Nossa Senhora;
Do Dia do Juízo;
E dos costumes dos Jacobitas Sírios.
Deste país de que falei os homens vão para as planícies da Galileia, deixando as colinas de um lado. A Galileia é um país na Terra Prometida, e nele ficam as cidades de Naym e Cafarnaum, Chorozin e Bethsaida, onde nasceram São Pedro e Santo André. O Anticristo nascerá em Chorozin. Mas alguns dizem que nascerá na Babilónia, e por isso a profecia diz, De Babilónia exiet coluber, qui totum [mundum] deuorabit , o que quer dizer, ´De Babilónia virá uma serpente que devorará todo o mundo`. O Anticristo há-de crescer em Bethsaida e reinar em Chorozin; e é por isso que a Sagrada Escritura diz delas, Ve tibi, Corozaym! Ve tibi Bethsaida! Ve tibi Capharnaum!, o que quer dizer, ‘Chora por ti, Chorozin! Chora por ti, Bethsaida! Chora por ti, Cafarnaum!`. Canaan da Galileia é aqui, a quatro milhas de Nazaré; foi aqui que nasceu São Simão. Também foi aqui que Nosso Senhor fez o Seu primeiro milagre, no casamento de Arquitríclino, quando transformou a água em vinho . Foi para os pântanos da Galileia, entre as montanhas, que levaram a Arca de Deus. Do outro lado fica a montanha de Endor em Hermon. Um pouco mais à frente Barak, filho de Abinoam, e a profetisa Deborah, venceram as hostes de Idumeia, quando o Rei Sisera foi morto por Jael, a mulher de Heber, tal como relata a Bíblia. Neste mesmo lugar Gideão e trezentos homens derrotaram três reis, Zebah, Zeeb e Zalmunna, e perseguiram-nos até para lá do Rio Jordão; mataram-nos e mataram a maior parte do seu exército. A cinco milhas de Naym fica a cidade de Jezrel, também chamada Zaraym. Jezebel, a rainha malvada, era dessa cidade; mandou injustamente matar Naboth para lhe ficar com a vinha. Um pouco para lá desta cidade fica a planície de Megiddo, onde o Rei da Samaria matou Josias, o rei de Judá , que foi depois transportado para o Monte Sião e aí sepultado. A uma milha de Jezrel ficam as colinas de Gilboa, onde o Rei Saul, o seu filho Jónatas, e um grande número dos Filhos de Israel pereceram na batalha. Por esta razão o Rei David amaldiçoou essas montanhas. A uma milha para Oeste fica a cidade de Citopolis, ou Betscham. Os Filisteus penduraram a cabeça do Rei Saul nas suas muralhas.
Por aqui os homens vão através da planície da Galileia até Nazaré, que dantes era uma cidade grande; mas agora só lá existe uma aldeia sem muralhas. Nossa Senhora nasceu em Nazaré, mas foi concebida em Jerusalém. Nosso Senhor ganhou o seu sobrenome de Nazaré, conforme já disse. Foi aqui que José se casou com Nossa Senhora, quando ela tinha catorze anos. Foi aqui que o Arcanjo Gabriel saudou Nossa Senhora dizendo Aue, gratia plena! Dominus tecum!, o que quer dizer ´Avé Maria, cheia de graça! O Senhor está contigo!´ Neste mesmo lugar há uma capela, construída por trás do pilar de um igreja que existia aqui nos velhos tempos; os peregrinos Cristãos fazem aí grandes oferendas. Está lá o Poço de Gabriel, onde Nosso Senhor costumava banhar-se em criança. E desse poço costumava Ele tirar água para a Sua Mãe, e era nele que Ela lavava as Suas roupas. De Jerusalém a Nazaré a jornada é de três dias. Nosso Senhor foi criado aqui. Nazaré quer dizer ´flor do jardim`; e merece ser chamada assim, porque aqui foi amamentada a Flor da Vida, Nosso Senhor Jesus Cristo. A duas milhas de Nazaré, na estrada que os homens seguem em direcção ao Acre, fica a cidade de Seffûrich. A meia milha fora de Nazaré fica o Salto de Nosso senhor; porque os Judeus levaram-no para cima de uma rocha íngreme, de onde tencionavam atirá-lo para O matarem, mas Nosso Senhor passou pelo meio deles e saltou para outra rocha, onde ainda se vê a marca dos Seus pés. E é por isso que alguns homens, quando estão com medo dos ladrões , recitam o verso que aqui ficou inscrito, lhesus autem transiens per médium illorum ibat, o que quer dizer ´Jesus passou pelo meio deles e seguiu o seu caminho`. E também dizem estes versos do Psaltério, Irruat super eos formido et pauor in magnitudine brachii Tui, Dominie. Fiant immobilis quasi lápis, donec persansedtristi populus tuus, Domine, donec pertransiat tuus ist, quem possedisti, o que quer dizer ´Deixa a grandeza do gesto do Teu braço cair sobre eles, oh Senhor. Que sejais tão quieto quanto uma pedra enquanto passa o Teu povo, que Tu trouxeste até aqui contigo’ . Depois de recitar isto, um homem pode seguir corajosamente em frente sem hesitação. E deveis saber que Nossa Senhora a Virgem Maria, quando estava grávida de Cristo, tinha quinze anos; e que viveu com Ele na Terra trinta e três anos e três meses, conforme já disse.
De Nazaré até ao Monte Tabor são três milhas; é uma montanha alta e linda. Dantes era uma cidade com muitas igrejas , mas agora estão todas destruídas . Há no entanto um lugar que foi poupado, a Escola de Nosso Senhor, onde Ele instruiu os Seus discípulos no respeitante aos segredos do Céu. No sopé dessa montanha fica o lugar onde Melchisedek, que era padre de Deus e rei de Jerusalém, conheceu Abraão quando ele descia a montanha, depois de ter derrotado os seus inimigos. Foi nessa montanha que Nosso Senhor se transfigurou perante Pedro, Tiago e João; estes viram-no a conversar com Moisés e Elias. E assim São Pedro disse, Bonum est nos hic. Faciamus hic tria tabernacula`,, o que quer dizer `È bom estar aqui. Façamos aqui três tabernáculos.` E Cristo disse-lhes que não falassem a ninguém daquela visão até Ele se ter levantado dos mortos. Na mesma montanha, naquele preciso lugar, no Dia do Juízo, virão os quatro anjos tocar as suas trompetas e levantar para a vida todos os que estiverem mortos. E todos estes virão, de corpo e alma, prostrar-se perante o Deus Soberano no Vale de Jeosafate, para escutarem o julgamento sobre si próprios; isto acontecerá num Domingo de Páscoa, à hora da Ressurreição de Cristo. Pois que, como dizem os estudiosos, no mesmo espaço e tempo em que Ele vagueou pelo Inferno virá Ele agora destruir o mundo e tomar os seus amigos e conduzi-los à felicidade sem fim, ao mesmo tempo que condena os maus a dores que nunca acabam.
Também a uma milha de Monte Tabor fica o Monte Hermon; aqui ficava a cidade de Naym, diante de cujas grades Nosso Senhor reergueu para a vida o filho da viúva. A três milhas de Nazaré fica o castelo de Seffûrich, onde nasceram os filhos de Zebedeu e de Alfeu. A sete milhas de Nazaré está o poço onde Lamech matou Caim com uma flecha, tomando-o por um animal selvagem. De Seffûrich os homens vão para uma cidade chamada Tibéria, erguida frente ao Mar da Galileia. Embora lhe chamem mar, não é um mar nem um braço de mar mas antes um lago de água doce; tem quase uma centena de passos de comprimento e quarenta de largura. Há lá muitos bons peixes, e o Rio Jordão atravessa-o. É de grande valor para o país. Onde o Rio Jordão deixa o Mar da Galileia há uma grande ponte, sobre a qual os homens abandonam a Terra Prometida e passam para a terra de Basan e para a terra de Gennesaret, que fazem fronteira com o Rio Jordão.
Daqui pode-se ir até Damasco em três dias, através do país de Gaulonite, que se estende do Hebron ao Mar da Galileia, que também é chamado Mar da Tibéria ou Lago de Gennesaret. Tem estes diferentes nomes conforme as cidades que se erguem nas suas margens. Foi sobre este mar que Nosso Senhor caminhou quando disse a Pedro, Modice fidei, quare dubitasti?, o que quer disser, ´Homem de pouca fé, porque duvidaste?´ . E isto foi quando Pedro foi ter com Cristo na água, e estava quase a afogar-se quando Cristo lhe deu a mão e o levantou, e disse as palavras que acabo de citar. Cristo também apareceu aos Seus discípulos depois da Sua Ressurreição quando eles estavam a pescar, e encheu-lhes as redes de peixe. Eles deram-lhe uma parte de um peixe grelhado e um favo de mel. Pedro e André também pescavam neste mar, e Tiago e João, quando Jesus os chamou para O seguirem; eles abandonaram imediatamente as redes e foram atrás Dele. Nesta cidade de Tibéria está a mesa onde Nosso Senhor comeu com os Seus discípulos depois de ter ressuscitado, sobre a qual a Sagrada Escritura diz, Cognouerunt Dominum in fractione panis, o que quer dizer, ´Reconheceram Nosso Senhor ao partir o pão` . Junto desta cidade fica a colina onde Nosso Senhor alimentou cinco mil homens com cinco pães e dois peixes. Nesta cidade, também, um homem mau atirou um tição em chamas a Nosso Senhor para despertar Nele a cólera; atingiu-O na cabeça, e o tição caiu para o chão e enterrou-se aí e cresceu, e com o tempo veio a dar fruto, uma grande árvore. Ainda lá está, e continua a crescer. Na extremidade Norte do Mar da Galileia, fica um castelo chamado Safed, junto a Cafarnaum, e não há castelo melhor na Terra Santa. Junto a esse castelo há uma pequena cidade, com o mesmo nome que o castelo. Santa Ana, a Mãe de Nossa Senhora, nasceu neste castelo, e esta era a casa de Centúrio . Esta região chama-se Galilea Gentium, e ficou para o lote de Zebulão e de Naftalio. A trinta milhas desse castelo fica a cidade Dan; ergue-se junto ao Líbano, onde o Rio Jordão aflora à superfície. Esta é outra fronteira da Terra Prometida, que se estende de Norte a Sul até Betsabé – quase nove milhas quadradas. Em largura vai de Jericó a Jaffa, e isto são quarenta milhas da Lombardia.
A Terra Santa fica na Síria porque a Síria se estende dos desertos da Arábia aos da Cilícia, o que é como dizer, a Arménia Maior, de Sul a Norte; de Leste a Oeste vai dos grandes desertos da Arábia ao Mar Ocidental . Mas existem muitos reinados dentro deste Reino da Síria – a Judeia, a Palestina, a Galileia, a Arménia Menor, e muitos outros. Quando os castelos ou as cidades destes reinos estão em guerra, usam pombos em vez de mensageiros para levar cartas de umas facções para as outras. Atam as cartas aos pescoços dos pombos e deixam-nos voar na direcção desejada. Os pombos, com o costume do hábito e do uso, voam para a outra parte, e quando tiram as cartas do seu pescoço voam outra vez para onde foram criados.
E deveis saber que entre os Sarracenos, em diferentes lugares, vivem muitos homens Cristãos que lhes pagam tributo; seguem diferentes tradições, e leis, e costumes, conforme a Constituição da área que habitam. No entanto, são todos baptizados e acreditam na Santíssima Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo. Mas em alguns aspectos diferem de nós. Há homens Cristãos chamados Jacobitas que foram convertidos por Santo André e baptizados por São João Evangelista. Defendem que a confissão só deve ser feita a Deus, e não a outros homens. Porque dizem que Deus nunca ordenou que um homem se confessasse a outro, e é por isso que David diz no Salmo, Confitebor tibi, Domini, in totó corde meo, o que quer dizer, ´Senhor, confesso-me a Ti com todo o meu coração` . E noutro lugar diz, Delictum meum tibi cognitum feci, o que quer dizer, ´Senhor, a Ti revelarei os meus maus actos` . E mais à frente ainda diz, Quoniam cogitacio hominis confitebitur tibi, o que quer dizer, ´Porque o pensamento do homem Te será revelado` . Os Jacobitas também dizem que só devemos pedir perdão àquele que ofendemos. Mas Deus nunca ordenou – nem nenhum dos seus Profetas, ao que dizem – que um homem revelasse os seus pecados a ninguém excepto a Deus. E para sustentar esta afirmação alegam a autoridade do Psaltério, como já vos disse. Também dizem que Santo Agostinho e São Gregório e outros Padres da Igreja afirmam a mesma coisa. Porque Santo Agostinho diz, Qui scelera sua cogitat et conuersus fuerit, ueniam sibi credat, o que quer dizer, ´Quem conhecer o seu pecado e se converter dele, pode acreditar que tem perdão`. E São Gregório diz isto: Dominus potius mentem quam uerba considerat, o que quer dizer, ´Nosso Senhor toma mais nota dos pensamentos que das palavras`. Santo Hilário também diz, Longorum temporum crimina in ictu oculi perient, si corde nada fuerit contemplacio -- ´Pecados cometidos há muito tempo morrerão num piscar de olhos, se o desagrado por eles nascer no coração de um homem`. Citam estas autoridades na sua própria língua, e não em Latim; e por causa das suas autoridades defendem que um homem só deve confessar-se a Deus, e não a outro homem. E por isso quando querem fazer uma confissão acendem uma fogueira junto deles, atiram-lhe incenso, e, quando o fumo sobe, dizem ´Faço a minha confissão a Deus e peço perdão pelo meu pecado`. E embora esta fosse a forma de confissão dos tempos antigos, São Pedro e outros Apóstolos que vieram depois ordenaram na sua sabedoria que os homens devem confessar-se a padres, que são homens como eles. Porque consideram que um homem doente não pode receber a medicação adequada se não se conhecer bem a sua doença, e portanto um homem não pode prescrever a penitência justa se não souber quantos e que tipo de pecados é que estão em causa. Porque há pecados mais graves que outros, e em certas alturas há mais pecados que noutros; e portanto é necessário que o homem que vai impor a penitência conheça o pecado e as suas circunstâncias.
Há outros Cristãos chamados Sírios. Seguem uma lei a meio caminho entre a nossa e a dos Gregos. Deixam crescer as barbas como fazem os gregos, e consagram no altar pão que não foi levedado como os Gregos, e usam o alfabeto Grego; confessam-se como fazem os Jacobitas. Há ainda outros que são os Jorgeanos, que São Jorge converteu. É a ele que eles honram e reverenciam antes de todos os outros Santos. Todos rapam o cabelo, o clero com uma tonsura redonda e os leigos com uma tonsura quadrada. Seguem a lei dos Gregos. Há ainda um outro grupo a que chamam Os Cristãos do Cinto , porque usam um cinto como o dos Franciscanos. Também há outros chamados Nestorianos , outros que são Arianos, outros Núbios, outros Gregos, e outros Índios, sendo que estes últimos vêm da terra do Preste João. São todos chamados Cristãos, e mantêm e seguem muitos artigos da nossa fé, mas em muitos pontos também variam da nossa fé. As suas diferenças seriam demasiadas para relatar.
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Sobre a cidade de Damasco;
Sobre três estradas para Jerusalém,
Uma por terra e por mar,
A outra mais por terra que por mar,
E a terceira por terra.
Agora que vos falei dos diferentes povos que vivem nestes países, voltarei ao meu tema principal para vos dizer como é que um homem pode regressar daqueles países até aos nossos. Quem quiser regressar das terras da Galileia de que falei antes passará por Damasco, que é uma cidade encantadora cheia de boas mercadorias. Fica a três dias de marcha do mar, e a cinco de Jerusalém. Os homens de Damasco transportam as suas mercadorias em camelos, mulas, dromedários, cavalos, e outras bestas; os seus bens chegam pelo mar da Índia, da Pérsia, da Caldeia, da Arménia e de muitas outras regiões. Esta cidade foi fundada por Eleazar de Damasco, que era o filho do criado do Patriarca Abraão, e a cidade foi baptizada com o seu apelido. Eleazar esperava ser senhor deste país depois da morte de Abraão, porque nessa altura Abraão ainda não tivera Isaac. Foi neste lugar que Caim assassinou o seu irmão Abel. Atrás de Damasco fica o Monte Seir. Em Damasco há muitos poços, tanto dentro como fora da cidade; também há muitos jardins bonitos, que dão frutos com abundância. Não há outra cidade como esta para árvores de fruto. Nessa cidade vive uma grande população, e está bem protegida e murada, com muralhas duplas. Vivem aqui muitos físicos, e em tempos São Paulo exerceu aqui Medicina, antes de se converter; São Lucas foi seu pupilo na aprendizagem de Medicina, e muitos outros o foram também. Porque naquela cidade Paulo manteve uma escola dessa Ciência, mas depois passou a ser médico das almas. Converteu-se em Damasco, e ficou aí três dias e três noites, e nem comeu nem bebeu, nem viu nada com os seus olhos corpóreos,; mas em espírito foi levado ao Céu, onde viu os segredos celestes. A pouca distância de Damasco está o castelo de Arqa – um castelo sólido e forte. Vindos de Damasco os homens passam por um lugar chamado Saidenaya, a cinco milhas de distância. Fica em cima de uma rocha. É um lugar muito belo e delicioso, de certa forma semelhante a um castelo – dantes havia aqui um. Agora há uma bela igreja onde vivem monges e monjas Cristãos. Fazem aqui excelente vinho. Nesta igreja, atrás do altar-mór, na parede, há um painel de madeira onde em tempos foi pintado um retrato de Nossa Senhora, e esta imagem ganhava vida muitas vezes.; mas agora raramente se vê essa pintura. No entanto o painel está constantemente a exudar um óleo que é como se fosse azeite; e há um vaso de mármore aos pés do quadro para recolher esse óleo. Dão algum aos peregrinos, porque cura muitas das suas doenças; e diz-se que se for bem guardado durante sete anos depois se transforma em carne e osso.
De Sadenaya os homens avançam através do Vale de Bekaa, que é de uma grande fertilidade, produzindo todos os tipos de frutos. Está rodeado por montanhas. Essas montanhas têm rios admiráveis, e belos arbustos, e pastagens nobres para o gado. Os homens viajam através das montanhas do Líbano, que se estendem da Arménia Maior ao Dan , que é o extremo Norte da Terra Prometida, como disse antes. Estas montanhas são muito frutíferas, e contam com muitos bons poços, cedros e ciprestes, e muitos outros tipos de árvores. Há várias cidades populosas no sopé destas colinas.
Entre a cidade de Arqa e a cidade de Rafina fica um rio, chamado o Sabatório. Aos Sábados corre depressa, e durante o resto da semana ou corre devagar ou não corre de todo, ou só tem agitação à superfície. Entre as colinas que já mencionei há outro curso de água que à noite congela completamente e fica sólido, enquanto que de dia não se vê lá qualquer gelo. Depois chega-se a uma cidade grande e bela, chamada Tripoli, onde vivem muitos bons homens Cristãos, que seguem os mesmos costumes que nós. Daqui os homens chegam a uma outra cidade chamada Beirute, onde São Jorge matou o dragão. É uma boa cidade, com um bom castelo, e fica a três dias de jornada de Saidenaya. É em Beitute que embarcam os peregrinos que querem seguir via Chipre, e chegam ao porto de Sûr, portanto chegam a Chipre em pouco tempo. Ou, se quiserem nem aportar a Chipre, seguem directamente para a Grécia, e daí para esta parte do mundo.
Contei-vos agora tudo sobre a via mais longa e longínqua que os homens seguem para Jerusalém, via Babilónia e Monte Sinai e muitos outros lugares de que me ouvistes falar, e também indiquei um caminho para os homens regressarem da Terra Prometida. Vou agora falar-vos da via mais curta e rápida para Jerusalém. Porque alguns homens não querem usar a outra via – alguns por falta de dinheiro, outros por falta de companhia, outros por falta de saúde, outros por medo dos perigos do deserto, outros porque querem voltar depressa para casa para se reunirem com a mulher e com os filhos, e por muitas outras causas razoáveis que os fazem querer voltar depressa. E portanto vou mostrar como é que os homens podem viajar mais depressa e fazer a sua peregrinação a Jerusalém no tempo mínimo. Um homem vindo das terras do Oeste atravessará a França, a Burgandia e a Lombardia, e prosseguirá até Veneza ou Génova, ou outro porto, e embarcará aqui para velejar até à ilha de Corfu, que pertence aos Genoveses. Depois chega à Grécia pelo porto de Mavrovo, ou de Valona, ou de Durazzo, ou qualquer outro porto na Grécia; descansa, compra mantimentos, e depois volta a navegar até ao Chipre. Chegará a Famagusta sem aportar em Rodes. Famagusta é o maior porto de Chipre, e aqui o viajante pode outra vez descansar e comprar comida; e depois volta a embarcar; se assim o desejar, já não volta a ir a terra até chegar ao porto de Jaffa, de todos os que está mais perto de Jerusalém. Fica apenas a um dia e meio de jornada de Jerusalém – digamos que trinta e seis milhas. De Jaffa vai-se até à cidade de Ramleh, só um pouco mais à frente; é uma bela cidade, onde vivem muitos homens bons. Fora dessa cidade, para Sul, há uma igreja de Nossa Senhora, onde Nosso Senhor se mostrou a Ela em três nuvens, representativas da Trindade. Um pouco mais para o lado há outra cidade, chamada Dispolis, mas que dantes se chamava Lûud; uma cidade bem habitada; há ali uma igreja de São Jorge, onde ele foi decapitado. Daqui os homens vão para o castelo de Emaús, e daí para o Monte da Alegria; e daqui que muitos peregrinos vêem Jerusalém pela primeira vez, conforme já disse. O profeta Samuel está sepultado no Monte da Alegria. Daqui os homens vão para Jerusalém. De um lado dessa estrada fica a cidade de Ramah e Latrão; Matatias, o pai de Judas Macabeu, nasceu aqui, e os túmulos dos Macabitas ainda aqui estão. Para lá de Ramah fica a cidade de Tekoa, de onde veio o profeta Amos; a sua sepultura está aqui.
Já vos falei dos lugares sagrados de Jerusalém e dos lugares à sua volta, e por isso por agora não vou dizer mais sobre eles. Mas vou voltar atrás para vos dizer de outros roteiros que podeis escolher, desta vez permanecendo sobretudo em terra firme – útil para aqueles que não aguentam viajar por mar, mas antes preferem viajar por terra, mesmo que o caminho seja mais longo e lhes dê mais trabalho. Vai-se até um dos portos da Lombardia, porque esse é o melhor lugar para comprar provisões; ou podeis antes ir para Veneza, ou para Génova, ou para qualquer outro porto. Daqui um homem atravessa o mar até à Grécia, ao porto de Mavrovo, Valona, Durazzo, ou um outro porto. Daqui irá por terra até Constantinopla, e cruzará o braço de água chamado o Braço de São Jorge, que é uma infiltração do mar. Daqui irá por terra até Bufinel onde há um bom castelo, muito forte; e daqui para Bafira e para o castelo de Sinope; daqui vai para a Capadócia que é um país grande, com muitas montanhas altas. Passará através da Turquia até chegar ao porto de Chiutok e à cidade de Niceia que fica só sete milhas mais à frente. Os Turcos conquistaram esta cidade ao Imperador de Constantinopla ; é uma bela cidade, bem murada de um dos lados, e do outro lado há um grande lago e um grande rio, chamados Lay. Daqui os homens vão através das Montanhas Negras da Frígia e dos vales de Mailbrins, e dos campos abertos; passa-se pela cidade de Kunya e daqui para a Antioquia Menor que fica na margem do Rio Heracleia. Há muitas belas montanhas nestas partes, muitos belos bosques e muito boa caça para caçar.
Quem quiser tomar um caminho diferente irá através das planícies do Império Grego na Ásia Menor, junto à orla do Mar Romano. Nessa costa fica um castelo chamado Florach e é um lugar muito forte. Mais para a frente nas montanhas há uma bela cidade chamada Tarso, e também as cidades de Longemaath, Adana e Mopsuestia. Quando um homem já atravessou essas montanhas e campos, atravessará ainda a cidade de Marash e Artah, onde há uma grande ponte sobre o rio Oronte – um rio volumoso, que é navegável; corre depressa das montanhas até Damasco. Perto da cidade de Damasco há outro rio que vem do Líbano, que se chama Abana. Foi durante a travessia deste rio que Santo Eustácio, que antes se chamou Plácido, perdeu a mulher e dois filhos. Este rio corre através da planície de Arcadas e daqui para o Mar Vermelho. Daqui os homens vão para a cidade de Filomélio, onde há nascentes e banhos quentes. Depois os homens vão para a cidade de Ilgun, e são dez milhas de Filomélio a Ilgun. Aqui há muitos belos bosques. Mais dez milhas para a frente os homens chegam à Antioquia Maior. É uma bela cidade, muito bem murada, com muitas torres e torreões; continua a ser uma grande cidade, mas já não é tão grande como era dantes. Costumava ter duas milhas de comprimento e meia milha de largura. Através da cidade corria o rio Orontes, com uma grande ponte por cima. Dantes a cidade tinha 350 torres e cada poste da ponte era uma torre. É a principal cidade do Reino da Síria. A dez milhas da cidade fica o porto de São Simão onde o rio desemboca no mar. Da Antioquia vai-se para uma cidade chamada Latakia, daí para Gebal, e depois para Tortosa. Ali ao pé é aterra de Edessa onde fica um castelo forte chamado Baalbek. De Tortosa os homens viajam por mar até Tripoli, ou então vão por terra através de passagens na montanha. Há uma cidade chamada Djebeil. De Tripoli os homens vão para o Acre, e daqui há dois caminhos para Jerusalém, um pela direita e outro pela esquerda. O caminho da esquerda leva-vos por Damasco e pelo Rio Jordão. O caminho da direita leva-vos pela costa e através da terra da Flagrâmia, e perto das montanhas até à cidade de Haifa, a que os homens chamam Castelo dos Peregrinos. Daqui a Jerusalém é uma jornada de três dias, durante a qual os homens vão através da Caesarea Philippi, depois por Jaffa, Ramleh, o castelo de Emaús, e daqui até Jerusalém.
Agora falei-vos de alguns dos caminhos por mar e por terra que os homens podem seguir para a Terra Santa, de acordo com os países de onde começam. Todos vêm aqui com o mesmo objectivo. Há ainda outro caminho para Jerusalém, totalmente por terra, e, da França e da Flandres, não há necessidade de cruzar qualquer mar. Mas esse caminho é longo e perigoso e cheio de dificuldades, e por isso poucos o tomam. Mas se um homem quiser, pode ir até à Alemanha e à Prússia, e daqui avançar até à Tartaria . Esta Tartaria tem como suserano o Grande Khan de Cathay, de quem tenciono falar mais tarde. É uma terra dura, arenosa e estéril. Aqui não crescem nem milho, nem vinha, nem feijão, nem ervilhas, nem nenhum outro fruto destinado a manter um homem vivo. Mas há uma grande quantidade de bestas, e portanto os Tártaros comem muita carne, sem pão, e fazem canja com os ossos, e também bebem o leite de toda a ordem de bestas; e como têm pouca madeira cozinham a carne em fogos feitos com o estrume dos animais. Comem cães e gatos, ratazanas e ratos, e toda a outra sorte de bestas. Só comem uma vez por dia, príncipe ou servo, e mesmo nessa única refeição comem muito pouco. São pessoas diabólicas, cruéis e cheias de más vontades. A terra raramente não tem grandes tempestades. E no verão há grandes trovadas, que matam homens e bestas. A temperatura do ar também muda muito depressa – agora muito quente, e logo a seguir muito frio – e portanto é um sítio onde é difícil viver. O príncipe que governa esta terra chama-se Batu e vive numa cidade chamada Orda . Com toda a certeza, nenhum homem bom viverá nesse lugar, porque só é bom para cicuta e urtigas e outras ervas daninhas; não é bom para mais nada, tal como ouvi (porque eu próprio nunca lá estive). Estive, no entanto, noutras terras que fazem fronteira com esta, tais como a Rússia, a Livónia, a Lituânia, o Reino de Cracóvia e o Reino de Silistria e muitos outros lugares. Mas nunca segui esse caminho para Jerusalém, e portanto não posso falar dele. Ouvi dizer que ninguém pode facilmente passar por aqui no Inverno por causa dos rios e pântanos que lá existem, que só podem ser atravessados se tiverem por cima uma camada sólida de gelo, que se forma depois de ter caído muita neve. Se não houver neve, ninguém pode progredir sobre o gelo. Três dias de jornada desta poderão levar um homem da Prússia até uma terá habitável de Sarracenos. E, quando os homens Cristãos tomam este caminho todos os anos, transportam provisões com eles em trenós e carros sem rodas; porque não encontrarão nada senão o que levarem consigo. Podem ficar lá o tempo que durar a comida, e nem mais um dia. Quando os espiões dessa terra vêem Cristãos aproximarem-se para a guerra, correm para as cidades gritando “Kera, Kera, Kera! ”, e armam-se imediatamente para se defenderem. E deveis saber que o gelo e a neve são muito mais fortes ali que nos nossos países; e por isso cada homem tem um fogão em casa, onde come e bebe. Porque ali é chocantemente frio, uma vez que se trata do lado Norte do mundo, onde o frio é geralmente mais intenso do que nas outras partes porque o sol brilha menos. E do lado Sul do mundo há lugares que são tão quentes que nenhum homem consegue lá viver.
15
Sobre os costumes dos Sarracenos e sobre as suas leis;
Como o Sultão falou com o Autor deste Livro;
E sobre o princípio de Maomé, etc.
Agora, como falei dos Sarracenos e das suas terras, irei dizer-vos algumas coisas sobre as suas leis e o seu credo, tal como está escrito no livro da sua lei, o Corão. Alguns chamam-lhe o Mashaf , e outros o Horme , dependendo da linguagem dos diferentes países. Maomé deu-lhes este livro. Entre outras coisas nesse livro está contida a afirmação, e eu várias vezes o li e vi nas suas páginas, de que depois da Morte os homens bons e justos vão para o Paraíso e os homens maus vão aguentar as dores sem fim do Inferno. Todos os Sarracenos acreditam firmemente nisto. E se lhes perguntarem de que Paraíso é que estão a falar, eles respondem que é um lugar de delícias, onde um homem encontrará todos os tipos de frutos em todas as estações do ano, e rios de vinho correndo em pequenas cascatas, e leite, e mel, e águas claras, e dizem que terão belos palácios e grandes mansões, dependendo dos hábitos dos seus desertos, e que esses palácios e mansões são feitos de pedras preciosas, ouro e prata. Cada homem terá quatro mulheres, que serão quatro jovens muito belas, e poderá estar com elas sempre que quiser, e há-de encontrá-las sempre virgens. Todos acreditam que encontrarão tudo isto no Paraíso, e isto é contra o nosso credo. Os Sarracenos acreditam na Encarnação, e estão sempre dispostos a falar na Virgem Maria; dizem que ela foi ensinada por um anjo, e que Gabriel lhe disse ter ela sido escolhida por Deus, antes do Princípio do Mundo, para dar à luz o Seu filho; e que o teve e no entanto era virgem antes, e que permaneceu virgem depois. E o Corão concorda com isto. Também dizem que Cristo começou a falar assim que nasceu e que foi (e é) um santo e verdadeiro profeta em palavras e obras, e justo e misericordioso para todos, e sem pecado. Também dizem que quando o anjo saudou Nossa Senhora e lhe falou da Encarnação Ela se sentiu muito envergonhada e estupefacta com as suas palavras; dizem que isto foi principalmente porque por essa altura vivia ali perto um homem diabólico chamado Takyna, que praticava feitiçaria, fazendo-se passar por um anjo com os seus encantamentos e assim enganando as donzelas por forma a seduzi-las. Por isso Maria teve medo, e enfrentou Gabriel para que lhe dissesse se era ou não Takyna. E o anjo respondeu-lhe e disse-lhe para não ter medo, porque ele era o verdadeiro mensageiro de Deus. O livro deles, o Corão, também diz que quando Maria teve o seu filho, à sombra de uma palmeira, rompeu em soluços e desejou estar morta. Nessa altura a Criança voltou-se para Ela e confortou-a com as seguintes palavras: “Não chores, porque em Ti Deus fez o Tabernáculo de onde virá a salvação do Mundo”. E o Corão testemunha em várias outras passagens que Jesus Cristo falou assim que nasceu. Esse livro diz que Deus mandou Jesus ao mundo como um exemplo e um espelho para todos os homens. Também fala do Dia do Juízo, quando Deus virá para julgar todos os homens; trará os bons para o Seu lado para lhes dar glória e alegria para sempre, e condenará os maus às dores intermináveis do Inferno. Dizem que Cristo é o melhor entre todos os profetas, o mais valioso, o mais próximo de Deus, e que fez os Evangelhos, nos quais há boa doutrina, verdade, e exaltação para os que acreditam em Deus; dizem que Ele era mais que um profeta, uma vez que viveu sem pecado, deu vista aos cegos, curou os leprosos e ressuscitou os mortos – e subiu aos Céus com o Seu corpo. Quando conseguem encontrar cópias dos Evangelhos honram-nas deveras, especialmente o Evangelho do Missus est ; esse Evangelho aqueles que são letrados beijam com devoção, e recitam-no com frequência nas suas orações. Todos os anos jejuam durante um mês inteiro, e só comem ao cair da noite, e afastam-se das suas mulheres durante todo esse mês. Os doentes, no entanto, não são obrigados a seguir este jejum. O livro, o Corão, também fala dos Judeus dizendo que são maus e amaldiçoados, porque se recusam a acreditar que Jesus foi mandado por Deus; também diz que mentem sobre Maria e sobre o seu filho Jesus Cristo, quando dizem que O crucificaram. O Corão diz que eles não crucificaram Jesus, porque Deus O chamou para junto de si sem morte e transferiu a forma e aparência do Seu corpo para Judas Iscariote, e foi ele que os Judeus crucificaram, pensando que era Jesus. Mas Jesus, dizem eles, foi levado vivo para os Céus, e na Sua carne voltará para julgar o Mundo. Os Cristãos não acreditam nisto, e por isso os Sarracenos defendem que os Cristãos estão enganados quando insistem que Jesus morreu na Cruz. Todas as suas ideias principais estão no Corão. Os Sarracenos também dizem que, se Jesus tivesse sido crucificado, Deus teria actuado contra a Sua própria justiça, deixando um tal inocente ter uma morte tão horrível; dizem que estamos enganados a este respeito. Mas são eles que estão enganados. Admitem livremente que todas as acções de Cristo, os Seus dizeres, os Seus ensinamentos e os Seus Evangelhos são bons e verdadeiros; e que os Seus milagres também são verdadeiros. Confessam sem problemas que a Virgem Maria também era uma donzela pura, santa, e sem mácula, tanto antes como depois do nascimento de Cristo; e que aqueles que acreditam perfeitamente em Deus serão salvos. E como se aproximam tanto da nossa fé nestes pontos – e em muitos outros – parece-me que seriam muito mais facilmente convertidos ao nosso credo através de pregação de homens Cristãos. Dizem que bem sabem, a partir das suas próprias profecias, que a lei do Corão falhará no fim tal como a lei dos Judeus já falhou, e que só o credo Cristão viverá até ao Juízo Final. Se um homem lhes perguntar qual é o seu credo, eles respondem sem hesitação “Acreditamos em Deus, que fez os Céus e todas as outras coisas a partir do nada, e nada foi feito sem ser por Ele. Acreditamos que virá o Dia do Juízo, quando cada homem será recompensado de acordo com os seus feitos. Também acreditamos verdadeiramente que tudo o que Deus disse através dos Seus santos profetas enquanto estes estavam na Terra é a verdade”. Também dizem que, no Corão, Maomé ordenou que cada homem tivesse três ou quatro mulheres. Mas agora tomam mais, porque alguns têm nove, e cada homem mantém tantas concubinas quantas a sua riqueza lhe permitir manter. Se alguma destas mulheres pecar contra o seu marido deixando qualquer outro homem vir para a sua cama, a lei permite então ao marido divorciar-se dela e tomar outra mulher; mas tem que dar-lhe uma porção da sua propriedade. Quando os homens lhes falam da Trindade eles dizem que existem três pessoas, mas não um só Deus. Porque o Corão não fala da Trindade. No entanto concedem que Deus é o Verbo, pois de outra forma seria mudo; e que também é um Espírito, senão não teria vida. Quando os homens lhes falam da Encarnação de Cristo, de como pela palavra de Deus o anjo trouxe sabedoria à Terra e se envolveu pela Virgem Maria, eles dizem que é tudo verdade e nisso acreditam, e que a Palavra de Deus tem um grande poder, e que o homem que não conhece a Palavra de Deus não conhece Deus. Também dizem que Cristo foi a Palavra de Deus; é o que diz o Corão, onde se lê que o anjo falou a Maria dizendo, “Maria, Deus vai mandar-te a Palavra da Sua boca, e o Seu nome vai chamar-se Jesus Cristo”. E também dizem que Abraão foi amigo de Deus, Moisés foi o representante de Deus, e Jesus Cristo foi a Palavra e o Espírito de Deus, e Maomé foi o verdadeiro mensageiro de Deus; e que, destes quatro, Jesus foi o mais valoroso e mais excelente. Parece portanto que os Sarracenos têm muitos artigos da nossa fé, mesmo que não sejam perfeitos; pelo que deveria ser mais fácil convertê-los para a nossa verdade – especialmente aqueles que são letrados e sabem ler as Escrituras. Porque entre eles têm os Evangelhos e os Profetas, e toda a Bíblia, escritos na língua Sarracena. Mas não compreendem a Sagrada Escritura espiritualmente, antes a seguem à letra, como fazem os Judeus; e São Paulo diz, Litera occidit, spiritus autem uiuificat, o que quer dizer ‘a palavra mata, mas o espírito dá vida’ . E assim os Sarracenos dizem que os Judeus são homens maldosos, e amaldiçoados, porque quebraram a lei que Deus lhes deu através de Moisés, e também dizem que os homens Cristãos são maus e diabólicos porque não seguem os ensinamentos dos Evangelhos, que lhes foram deixados por Jesus Cristo .
Vou agora contar-vos o que o Sultão me disse nos seus aposentos . Fez toda a gente sair, os senhores e todos os outros que lá estavam, porque queria ter uma conversa privada só entre nós os dois. Quando já todos tinham saído, perguntou-me como nos governávamos nos nossos países. E eu disse, “Meu Senhor, bastante bem – graças a Deus”. E ele respondeu e disse, “Na verdade, não. Não é assim. Porque os vossos padres não servem Deus adequadamente com vidas exemplares, tal como deveriam fazer. Porque deveriam dar aos homens menos letrados um exemplo de como viver bem, e fazem exactamente o oposto disso, dando exemplos de todo o tipo de malícia. E, como resultado, nos dias santos, quando as pessoas deveriam ir à igreja servir a Deus, vão para a taberna e passam o dia inteiro – e talvez também a noite inteira – entregues ao álcool e à gula, como bestas sem razão que não sabem parar a tempo. E depois de bêbedas todas se entregam a grandes discursos, lutando e discutindo até que alguém mata alguém. Os homens Cristãos enganam-se frequentemente uns aos outros, porque juram falsamente as mais importantes das juras. E estão, também, tão inchados de orgulho, e de glória vã, que nem sabem como vestir-se quando saem à rua – umas vezes usam roupas curtas, outras vezes longas, umas vezes largas, outras vezes justas. Todos devemos ser simples, parcos e verdadeiros, e prontos a dar caridade e esmolas, tal como Cristo, em quem dizeis que acreditais. Mas tudo se passa de outra maneira. Na realidade, os homens Cristãos são tão orgulhosos, tão invejosos, de tal forma comilões, tão devassos, e mais ainda tão cheios de desejo pelo que não é deles, que por um punhado de prata são capazes de vender as irmãs, as filhas, e até as próprias mulheres, a homens que queiram deitar-se com elas. E todos tomam a mulher do próximo e ninguém é fiel a ninguém: é assim que cruelmente quebrais e desrespeitais as regras que Jesus Cristo vos deixou. É certamente por causa da vossa maldade que perdestes estas terras que nós conquistámos e guardamos. Foi por causa da vossa vida maldosa e do vosso pecado, e não por causa da nossa superioridade física, que Deus as pôs nas nossas mãos. E sabemos bem que, quando decidis servir o vosso Deus, e servi-Lo de forma dedicada e limpa, ninguém consegue atravessar-se no vosso caminho. Também sabemos pelas nossas profecias que os Cristãos hão-de recuperar esta terra num tempo que há-de vir, quando servirdes o vosso Deus bem e devotamente. Mas enquanto viverdes, como viveis, em maldade e pecado, sabemos que nada temos a temer de vós, porque o vosso Deus não vos ajudará”. Quando ouvi o Sultão pronunciar estas palavras – e muitas outras, que não repetirei aqui – perguntei-lhe, com grande respeito, como é que tinha um conhecimento tão completo do estado da Cristandade. E então ele mandou todos os senhores e os poderosos que tinham saído dos aposentos voltarem lá para dentro. E ordenou a quatro desses senhores que falassem comigo. Estes descreveram-me todos os modos do meu país, e de outros países da Cristandade, tão completamente e com tantos detalhes como se sempre tivessem lá vivido. Estes senhores e o Sultão falavam Francês maravilhosamente bem, e eu fiquei estupefacto com isso. Finalmente, percebi que o Sultão manda os seus senhores para os nossos países e terras como mercadores, uns com ouro, outros com jóias, outros com pedras preciosas, e que estes nos espiam para conhecerem as maneiras de ser dos Cristãos e descobrirem as nossas fraquezas. Pareceu-me motivo de grande vergonha que os Sarracenos, que não têm nem uma fé correcta nem uma lei perfeita, possam desta forma criticar-nos pelos nossos falhanços, mantendo melhor a sua falsa fé do que nós mantemos a nossa em Jesus Cristo; e aqueles que devíamos com o nosso bom exemplo converter à lei de Jesus Cristo são assim afastados da fé Cristã. E não é de admirar que nos chamem pecadores e maldosos, porque isto é verdade. E eles são muito piedosos e honestos na sua fé, seguindo de perto o Corão, que Deus lhes enviou pelo seu profeta Maomé, a quem, dizem eles, o arcanjo Gabriel falava com frequência, dizendo-lhe qual era a vontade de Deus.
Deveis saber que Maomé nasceu na Arábia, e ao princípio era um homem pobre, que tratava de cavalos e camelos e viajava por vezes com eles até ao Egipto, que nessa altura era habitado por Cristãos. Nos desertos da Arábia, na estrada principal para o Egipto, havia uma capela, e aqui vivia um eremita. E Maomé foi a essa capela falar com este eremita. E quando entrou na capela, a soleira da porta, que era muito baixa, cresceu de repente e ficou tão grande como a de um palácio. Este, dizem eles, foi o primeiro milagre que ele fez, quando ainda era muito novo. Depois disso Maomé começou a ficar sábio, e rico, e um grande astrónomo. O príncipe de Khorasão fê-lo chefe e governador dessa terra; e ele governou-a sábia e graciosamente, de tal forma que, quando o príncipe morreu, ele casou com a princesa, que se chamava Khadija. Este Maomé sofria de epilepsia, e caía com frequência sob a violência dessa doença; e a senhora arrependia-se amargamente de o ter desposado. Mas ele fê-la acreditar que de cada vez que caía era porque Gabriel aparecia e falava com ele, e que ele tombava devido ao brilho estonteante do anjo. E por isso os Sarracenos dizem que o arcanjo Gabriel falava muitas vezes com ele. Este Maomé reinou na Arábia no Ano de Nosso Senhor 620; era da raça de Ismael, filho de Abraão, que ele teve de Hagar, a sua criada. E por essa razão alguns Sarracenos chamam-se Ismaelitas, alguns Hagaritas, e outros Amonitas por causa dos dois filhos de Lot, que ele teve das suas filhas. Alguns, muito apropriadamente, são chamados Sarracenos segundo a cidade de Sarras . Também deveis saber que a certa altura Maomé gostava de ouvir um eremita que vivia no deserto a uma milha do Monte Sinai, na estrada que vai da Arábia à Caldeia e à Índia – a um dia de jornada do mar, onde os mercadores de Veneza vêm muitas vezes comprar mercadorias. E Maomé ia tantas vezes escutar este eremita que os seus servos começaram a ficar irritados e impacientes com tantas viagens e tantas noitadas, pois foi-se tornando cada vez mais frequente ele fazer os seus homens ficarem acordados até ao amanhecer. Então aconteceu que uma noite Maomé estava bêbedo com vinho e caiu num sono profundo; e, enquanto ele dormia, os seus servos desembainharam-lhe a espada, e mataram o eremita com ela; depois voltaram a por a espada dentro da bainha, ainda toda suja de sangue. De manhã, quando acordou e viu o eremita morto, Maomé acusou os seus criados; mas eles responderam a uma só voz que ele mesmo matara o eremita, enquanto dormia, ainda sob o efeito da embriaguês. Primeiro Maomé não quis acreditar neles; mas, quando viu a sua própria espada toda suja de sangue, acreditou. Então amaldiçoou o vinho, e proibiu todos os homens da sua fé de o beberem; e, por isso, os Sarracenos devotos não lhe tocam. Mas têm outro tipo de bebida que é boa e deliciosa e muito fortificante, que é feita de diferentes especiarias; especialmente cálamo, de que se faz um bom açúcar. No entanto alguns Sarracenos bebem vinho em privado, mas não o fazem em público – porque se beberem vinho publicamente serão censurados por isso. Às vezes acontece os homens Cristãos tornarem-se Sarracenos, devido à pobreza, à tolice, ou à maldade; e o homem que é o mestre das suas leis, quando os recebe, diz-lhes La elles ells silla Machomet rores alla hec, o que quer dizer, ‘Não há senão um Deus, e Maomé é o seu mensageiro’.
Como vos contei alguma coisa sobre a lei dos Sarracenos, sobre as suas maneiras e costumes, dir-vos-ei agora que letras eles usam, com os seus nomes e formas:
Almoy, betach, cathi, delphoi, ephoti, fothi, garophi, hethim, iocchi, kacchi, lothyn, malach, nahalet, orthi, porizeth, qutholath, routhi, salathi, totinthus, uzazoth, yirtim, theth.
Estes são os nomes das letras, e esta é a sua semelhança:
1º ESQUEMA pg. 110
E aqui desenharei as letras de outra forma, como as vi noutros livros; e desta maneira gosto mais que da primeira:
almoy, bethath, cathi, delphoi, ephoti, fothi, garophi, hechim, hechim, iocchi, kaythi, lothim, malach, nahalot. Orthi, corizi, 3och, rutolath, routhi, salathi, thatimus, yrthom, azazoth, arotthi, 3otipin, ichet.
Estas são as letras:
2º ESQUEMA pg. 110
Têm mais quatro letras do que nós no nosso alfabeto porque a sua língua é muito diferente, falam de forma muito gutural. De qualquer forma, nós, em Inglaterra, temos mais duas letras na nossa linguagem que não existem na deles.
Sejam dadas graças a Deus.
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