28/03/2010

O APELO DA SELVA: Loja Gourmet

SOBRE A DEGUSTAÇÃO DAS LÍNGUAS

A predilecção do gosto humano pelo sabor e a textura das línguas de certos animais, muitas vezes pondo em risco de extinção a espécie com uma língua que agrada especialmente às populações que lhe têm acesso, vem dos confins da Antiguidade conhecida e chega praticamente aos nossos dias. Um bom exemplo, que só conheceu as primeiras medidas de travão a partir de meados do século XX, foi a quase extinção do símbolo das grandes pradarias do Oeste, o bisonte americano.

Sabe-se alguma coisa a brutalidade deste fenómeno, mas os seus passos mais íntimos são poucos conhecidos. Muita gente, por exemplo, sabe que os bisontes eram tão abundantes e pastavam tão perto da linha que, nos primeiros tempos do caminho de ferro, a gerência tinha a cortesia de emprestar uma carabina a cada passageiro, homem ou mulher, para eles se distraírem a disparar sobre estes alvos imponentes durante as longas horas da viagem. Mas pouca gente sabe da carnificina que acompanhou a expansão das linhas férreas. O famoso Buffalo Bill, inicialmente chacinador dos índios e no fim da vida dono de um circo onde se mostrava como isso se fazia e incluía personagens tão carismáticos como a própria Calamity Jane, desempenhou um papel impressionante em reduzir a população inicial de cerca de 60 milhões de bisontes até aos limites da ameaça de extinção. Em 1867, munido de um contrato para providenciar alimento substancial para as equipas de construção e condução das linhas do caminho de ferro, Bill e os seus homens mataram 4280 animais num período de apenas oito meses. Mas neste caso, ao menos, ainda podemos ter a consolação de que toda a carne foi aproveitada como elemento nutritivo. No mesmo período, outros caçadores houve que abateram centenas de bisontes sem qualquer espécie de escrúpulo, e deixaram as carcaças a apodrecer na padraria, para lhes retirarem apenas a língua –– porque a língua do bisonte era considerada um petisco incomparável em muitas áreas da região. Quando se começou a pensar na preservação dos bisontes, restavam tão poucos que tiveram que ser criteriosamente trancados em reservas.

O registo mais copioso que temos de consumo de línguas em grande profusão vem-nos do tempo das orgias romanas –– e da conhecida curiosidade dos romanos em experimentar gastronomicamente, das formas mais estranhas e elaboradas, tudo o que viesse das novas paragens da terra cognita. Nestes casos, a língua de eleição era a do flamingo.

Temos um registo interessante de um filósofo indignado do período do imperador adolescente e licencioso Heliogabalus. Em rimas precisas de métrica impecável, o filósofo descreve banquetes em que se serviram pratos enormes cobertos de cones de línguas de flamingo. Mais tarde, o historiador Suetonius conta-nos que o imperador Vitellius serviu uma confecção gigante chamada O Escudo de Minerva, feita de fígados de peixe-galo, miolos de faisão e papagaio, intestinos de lampreia, e línguas de flamingo, todos trazidos de mares distantes. A ideia destes pássaros belíssimos serem chacinados unicamente pela língua inspirou poetas e filósofos durante toda a duração do Império Romano, o que nos mostra que a degustação destas línguas foi extremamente abundante.

A maior parte das aves tem línguas finas e pontiagudas, totalmente contra-indicadas para manjares de imperadores e altos dignitários, mesmo se recolhidas em grande quantidade. O que se passa, então, com a língua do flamingo, para se ter tornado tão popular na Roma Antiga?

Os flamingos desenvolveram um modo extremamente complexo de alimentação, único entre as aves e muito raro entre todos os outros Vertebrados. Os seus bicos estão forrados com fileiras numerosas e complicadas de cornos lamelares, verdadeiros filtros, que actuam exactamente como as placas fibrosas das baleias gigantes. Incorrectamente, a ideia que fazemos dos flamingos é a de habitantes indolentes dos mares ou lagoas das ilhas tropicais luxuriantes, uma beleza que podemos contemplar da varanda do nosso hotel enquanto bebemos uma caipirinha ao por do sol –– e nada podia coincidir menos com a verdade. Na realidade, os flamingos exploram um dos habitats mais duros da Terra: os lagos hipersalinos de pouca profundidade. Hà muito poucas criaturas que aguentem a estranheza de condições destes desertos salinos. Mas aquelas que conseguem podem constituir populações enormes, porque não têm competição nem têm predadores. A estratégia de alimentação por filtragem permite aos flamingos o acesso a uma grande quantidade de presas, que apenas precisam de ser uniformes no seu tamanho. Os maiores flamingos de todos, por exemplo, filtram moluscos e crustáceos pequenos, e larvas de insectos. Mas os flamingos mais pequenos de todos têm filtros tão densos e elaborados que conseguem segregar células de algas azuis e diatomáceas com diâmetros de 0.02 a 0.1 mm.

E é depois deste processo que a famosa língua entra em acção.

Os flamingos podem limitar-se a ingerir o alimento filtrado passivamente, abanando a cabeça para a frente e para trás. Mas o sistema mais eficiente é, sem sombra de dúvida, o uso da língua.

A língua é larga e bem musculada, e funciona como uma bomba. Enche rapidamente um canal grande na porção posterior do bico. Move-se rapidamente para a frente e para trás, cerca de quatro vezes por segundo, sorvendo a água para o canal na inspiração e expelindo-a já sem alimento na expiração. Para ajudar ao processo, a superfície da língua possui vários dentículos que arrancam dos filtros a comida filtrada.

Estão a ver do que é que os romanos gostavam? Gostavam, a bem dizer, de um bom bife sem qualquer gordura e sabor a mar. Como as orgias se passavam em ambientes limitados, as populações de flamingos não chegaram a estar em risco por causa disso. Mas é bom que se note que esta língua é uma pérola complicadíssima da evolução, um daqueles exemplos complexos de livro de texto em que os defensores da biologia evolutiva se apoiam sempre que é preciso demonstrar que a evolução e a selecção natural existem mesmo. E esse magno mistério, esse sim –– os romanos estavam a engoli-lo sem desconfiar de nada.

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