"[Gilliatt] era um pensativo. Nada mais. Observava a natureza d'uma maneira um pouco extravagante. Tinha-lhe succedido, por diversas vezes, encontrar na agua do mar, perfeitamente limpida, animaes desconhecidos, um tanto volumosos, de fórmas diversas, pertencentes á especie medusa, os quaes, tirados do liquido, se assimilhavam a vidro coalhado, e immersos de novo, por serem identicos em diaphaneidade e em côr, confundiam-se com o ambiente, a ponto de não se differençarem ambos. Concluia elle d'isto que, se na agua habitavam transparencias vivas, era natural suppor que a atmosphera estivesse povoada d'outras tantas transparencias, egualmente com vida. As aves não são os habitantes do ar, são apenas os seus amphibios. Gilliatt não acreditava que o ar estivesse deserto. Dizia elle: se o mar está repleto, porque é que ha de estar vasio este espaço? Devia haver creaturas côr do ar, que, entranhando-se na luz, desapparecessem á nossa vista. Quem póde provar que não existem estas creaturas? Mesmo por analogia, é possivel que o ar tenha os seus peixes, da mesma forma que o mar. E se os tem, devem estes peixes do ar ser proporcionalmente diaphanos; beneficio da providencia creadora, tanto para nós como para elles; para nós, porque nos não turbam a claridade, para elles, porque não nol-a turbando, não são vistos, e, portanto, não podem ser agarrados. Imaginava Gilliatt que, se podessemos exgotar de atmosphera a terra, e pescar no ar, como podemos fazer em qualquer lagoa, haviamos de descobrir alli uma infinita quantidade de assombrosos entes. E, então, accrescentava elle, no meio das suas reflexões, muitas coisas ficariam explicadas."
Victor Hugo, Os Homens do Mar, Lisboa, Empreza da Historia de Portugal, 1901, pp. 42-43.